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O Guarani/I/II

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II.
UM ANTIGO FIDALGO.

A habitação, que acabamos de descrever, pertencia a D. Antonio de Mariz, fidalgo portuguez cota d’armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro.

Era um dos cavalheiros que mais se havião distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos francezes e os ataques dos selvagens.

Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro, e depois da victoria alcançada pelos portuguezes, auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa capitania,

Fez parte em 1578 da celebre expedição do Dr. Antonio de Salema contra os francezes, que havião estabeleoido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de páo-brasil.

Servio por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfandega do Rio de Janeiro; e mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela fazenda, e a sua dedicação ao rei.

Homem de valor, experimentado na guerra, activo, affeito a combater os indios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espirito Santo.

Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma legua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devolutas

A derrota de Alcacerquibir, e o dominio hespanhol que se lhe seguio, veio modificar a vida de D. Antonio de Mariz.

Portuguez de antiga tempera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza, e que só a elle devia preito e menagem.

Quando pois, em 1582, foi acclamado no Brasil D. Filippe II como o successor da monarchia portugueza, o velho fidalgo embainhou a sua espada e retirou-se do serviço.

Por algum tempo esperou pela projectada expedição de D. Pedro da Cunha, que pretendeo transportar ao Brasil a corôa portugueza, collocada então sobre a cabeça do seu legitimo herdeiro, D. Antonio, prior do Crato.

Depois, vendo que esta expedição não se realisava, e que o seu braço e a sua coragem de nada valião ao rei de Portugal, jurou que ao menos lhe guardaria a sua fidelidade até a morte.

Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua familia, e foi estabelecer-se naquella sesmaria que lhe havia sido concedida por Mem de Sá.

Ahi, de pé sobre essa eminencia em que ia assentar o seu solar, D, Antonio de Mariz erguendo o seu vulto direito, e lançando um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que se abrião em torno delle, exclamou:

— Aqui sou portuguez! Aqui póde respirar á vontade um coração leal, que nunca desmentio a fé do seu juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus filhos. Eu o juro!

Descobrindo-se, curvou o joelho em terra, e estendeo a mão direita sobre o abysmo, cujos échos adormecidos repetirão ao longe a ultima phrase desse juramento prestado sobre o altar da nalureza, em face do sol que transmontava.

Isto se passava em abril de 1593; no dia seguinte, começarão os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que servio de residencia provisoria, até que os artesãos vindos do reino construirão e decorárão a casa que já conhecemos.

D. Antonio tinha ajuntado fortuna durante os primeiros annos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas em attenção á sua familia, procurava dar a essa habitação construida no meio de um sertão, todo o luxo e toda as commodidades possiveis.

Além das expedições que fazia periodicamente á cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e generos de Portugal, que trocava pelos productos da terra; mandara vir do reino alguns officiaes mecanicos e hortelãos, que aproveitavão os recursos dessa natureza tão rica, para proverem os seus habitantes de todo o necessario.

Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo portuguez, menos as ameias e a barbacan, as quaes havião sido substituidas por essa muralha de rochedos inaccessiveis, que offerecião uma defeza natural, e uma resistencia inexpuguavel.

Na posição em que se achava, isto era necessario por causa das tribus selvagens, que, embora se retirassem sempre das visinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas florestas, costumavão comtudo a fazer correrias e atacar os brancos á traição.

Em um circulo de uma legua da casa, não havia senão algumas cabanas em que moravão aventureiros pobres, desejosos de fazer fortuna rapida, e que tinhão-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas, que ião vender na costa,

Estes, apezar das precauções que tomavão contra os ataques dos indios, fazendo palissadas e reunindo-se uns aos outros para defeza commum, em occasião de perigo vinhão sempre abrigar-se na casa de D. Antonio Mariz, a qual fazia as vezes de um castello feudal na idade media.

O fidalgo os recebia como um rico-homem que devia protecção e asylo aos seus vassallos; soccorria-os em todas as suas necessidades, e era estimado e respeitado por todos que vinhão, confiados na sua visinhança, estabelecer-se por esses lugares.

Além dos aventureiros, o mais proximo habitante que havia era um cavalheiro portuguez, Marcos da Costa, amigo de D. Antonio, e que estabelecêra a sua morada á tres leguas, na margem do Parahyba.

Deste modo, em caso de ataque dos indios, os moradores da casa do Paquequer não podião contar senão com os seus proprios recursos; e por isso D. Antonio, como homem pratico e avisado que era, havia-se premunido para qualquer occurrencia.

Elle mantinha, como todos os capitães de descobertas daquelles tempos coloniaes, uma banda de aventureiros que lhe servião nas suas explorações e correrias pelo interior; erão homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo a força e o recurso do homem civilisado à astucia e á agilidade do indio de quem havião aprendido; erão uma especie de guerrilheiros, soldados e selvagens ao mesmo tempo.

D. Antonio de Mariz, que os conhecia, havia estabelecido entre elles uma disciplina militar rigorosa, mas justa; a sua lei era a vontade do chefe; o seu dever a obediencia passiva , o seu direito uma parte igual na metade dos lucros.

Nos casos extremos, a decisão era proferida por um conselho de quatro, presidido pelo chefe; e cumpria-se sem appellação, sem demora, sem hesitação.

Pela força da necessidade, pois, o fidalgo se havia constituido senhor de baraço e cutello, de alta e baixa justiça dentro dos seus dominios; devemos porém declarar que vara vez tinha sido precisa a applicação dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o effeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia.

Quando chegava a epocha da venda dos productos, que era sempre anterior á sahida da armada de Lisboa, metade da banda dos aventureiros ia á cidade do Rio de Janeiro, apurava o ganho, fazia a troca dos objectos necessarios, e na volta prestava suas contas.

Uma parte dos lucros pertencia ao fidalgo, como chefe; a outra era distribuida igualmente pelos quarenta aventureiros, que a recebião em dinheiro ou em objectos de consumo.

Assim vivia, quasi no meio do sertão, desconhecida e ignorada, essa pequena communhão de homens, governando-se com as suas leis, os seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo habito da obediencia e por essa superioridade moral que a inteligencia e a coragem exercem sobre as massas.

Para D. Antonio e para seus companheiros a quem elle havia imposto a sua fidelidade, esse torrão brasileiro, esse pedaço de sertão, não era senão um fragmento de Portugal livre, de sua patria primitiva: ahi só se reconhecia como rei ao duque de Bragança, legitimo herdeiro da corôa; e quando se corrião as cortinas do docel da sala, as armas que se vião, erão as cinco quinas portuguezas, diante das quaes todas as frontes se inclinavão.

D. Antonio tinha cumprido o seu juramento de vassallo leal; e, com a consciencia tranquila por ter feito o seu dever, com a satisfação que dá ao homem o mando absoluto, ainda mesmo em um deserto, rodeado de seus companheiros que elle considerava como amigos, vivia feliz no seio de sua pequena familia.

Esta se compunha de quatro pessoas.

Sua mulher, D. Lauriana, dama paulista, imbuida de todos os prejuizos de fidalguia e de todas as abusões religiosas daquelle tempo; no mais, um bom coração, um pouco egoista, mas não tanto que não fosse capaz de um acto de dedicação.

Seu filho, D. Diogo de Mariz, que devia mais tarde proseguir na carreira de seu pai, e que lhe succedeo em todas as honras e foraes; ainda moço, no vigor da idade, quasi sempre estava ausente ou em correrias, ou na cidade do Rio de Janeiro.

Sua filha, D. Cecilia, que tinha dezoito annos, e que era a deusa desse pequeno mundo que ella illuminava com o seu sorriso, e que alegrava com O seu genio travesso e a sua mimosa faceirice.

D. Isabel, sua sobrinha, que os companheiros de D. Antonio, embora nada dissessem, tinhão suas suspeitas de que era o fructo dos amores do velho fidalgo por uma india que havião captivado em uma das suas explorações.

Demorei-me em descrever a scena e fallar de algumas das principaes personagens dessa historia, porque assim era preciso para que se comprehendão os acontecimentos que depois se passarão.

Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos.