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O Guarani/III/IV

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Alguns esclarecimentos são necessários aos acontecimentos que acabavam de passar.

Quando Loredano viu-se obrigado pela ameaça de Álvaro a partir para o Rio de Janeiro, ficou sucumbido; mas, depois de alguns momentos, um sorriso diabólico tinha enrugado os seus lábios.

Este sorriso era uma idéia infame que luzira no seu espírito como a flama desses fogos perdidos que brilham no seio das trevas em noites de grande calma.

O italiano lembrou-se que no momento em que todos o supunham em viagem, podia preparar a execução do seu plano que ele realizaria naquela mesma noite.

Na conversa que tivera com Rui Soeiro transmitiu-lhe as suas instruções, breves, simples e concisas; consistiam em livrarem-se dos homens que podiam pôr embaraços à sua empresa.

Para isso os seus cúmplices receberam ordem de quando se recolhessem para dormir, colocarem-se ao lado de cada um dos homens da banda fiéis a D. Antônio de Mariz.

Naquele tempo e naqueles lugares não era possível que os aventureiros tivessem cada um o seu cubículo; poucos gozavam desse privilégio, e assim mesmo eram obrigados a partilhar o seu aposento com um companheiro: os outros dormiam na vasta alpendrada que ocupava quase toda essa parte do edifício.

Rui Soeiro tinha, conforme as instruções de Loredano, arranjado as coisas de tal modo que naquele momento cada um dos aventureiros dedicados a D. Antônio de Mariz tinha a seu lado um homem que parecia adormecido, e que só esperava ouvir pronunciar a senha convencionada para enterrar o seu punhal na garganta do seu companheiro.

Ao mesmo tempo havia pelos cantos da casa grandes molhos de palha seca colocados junto das portas ou metidos pela beirada do telhado, e que só esperavam uma faisca para atear o incêndio em todo o edifício.

Rui Soeiro, com uma sagacidade e uma prudência dignas de seu chefe, dispusera tudo isto; parte durante o dia, e parte nas horas mortas da noite em que tudo estava recolhido.

Não se esqueceu da recomendação especial de Loredano, e ofereceu-se voluntariamente a Aires Gomes para fazer a guarda noturna com um dos seus companheiros, visto recear-se ataque do inimigo; o digno escudeiro que o conhecia como um dos mais valentes da banda, caiu no laço e aceitou o oferecimento.

Senhor do campo, o aventureiro pôde então acabar livremente seus preparativos, e para mais segurança arranjou traça de ver-se livre do escudeiro, que podia de um momento para outro vir incomodá-lo.

Aires Gomes em companhia de seu velho amigo mestre Nunes esvaziava uma botelha de vinho de Valverde, que eles bebiam lentamente, trago a trago, para assim disfarçarem a módica porção do liquido destinado a umedecer as goelas de dois formidáveis bebedores.

Mestre Nunes aplicou voluptuosamente os lábios à borda do canjirão, tomou uma vez de vinho, e dando um ligeiro estalinho com a língua no céu da boca, repimpou-se na tripeça em que estava sentado, cruzando as mãos sobre o seu ventre proeminente com uma beatitude celeste.

— Ora estou desde que cheguei para perguntar-vos uma coisa, amigo Aires; e sempre a passar.

— Não a deixeis passar agora, Nunes. Aqui me tendes para responder-vos

— Dizei-me cá, quem é um tal que acompanhava D. Diogo, e a quem dais um diabo de nome que não é português?

— Ah! quereis falar de Loredano? Um tunante?

— Conheceis esse homem, Aires?

— Por Deus! se ele é dos nossos!

— Quando pergunto se o conheceis, quero dizer se sabeis donde veio, quem era e o que fazia?

— À fé que não! Apareceu-nos aqui um dia a pedir hospitalidade; e depois como saísse um homem, ficou em lagar dele.

— E quando isso, se vos lembra?

— Esperai! Estou com os meus cinqüenta e nove...

O escudeiro contou pelos dedos consultando o seu calendário, que era a sua idade.

— Foi por este tempo, há um ano; princípios de março.

— Estais bem certo? exclamou mestre Nunes.

— Certíssimo; é conta que não engana. Mas que tendes?

Com efeito mestre Nunes se erguera espantado.

— Nada! Não é possível!

— Não acreditais?

— É outra coisa, Aires! É um sacrilégio! uma obra de Satã! uma simonia horrenda!

— Que dizeis, homem, explicai-vos lá de uma vez.

Mestre Nunes conseguiu restabelecer-se da sua perturbação e contou ao escudeiro as suas desconfianças a respeito de Frei Ângelo di Luca e da sua morte, que nunca fora possível explicar: notou-lhe a coincidência do desaparecimento do carmelita com o aparecimento do aventureiro, e o fato de serem da mesma nação.

— Depois, concluiu Nunes, aquela voz, aquele olhar!... quando o vi hoje, estremeci, e recuei espavorido julgando que o frade tinha saído de baixo da terra.

Aires Gomes levantou-se furioso, e saltando sobre o seu catre, agarrou o espadão que tinha à cabeceira.

— Que ides fazer? gritou mestre Nunes.

— Matá-lo e desta vez às direitas; que não torne.

— Esqueceis que vai longe?

— É verdade, murmurou o escudeiro rangendo os dentes de raiva.

Ouviu-se um ligeiro rumor na porta; os dois amigos o atribuíram ao vento e não se voltaram; sentados em face um do outro, continuaram em voz baixa a sua conversa interrompida pela brusca revelação de Nunes.

Entretanto fora passavam-se coisas que deviam excitar a atenção do digno escudeiro. O rumor que ouvira fora produzido pela volta que Rui dera à chave, fechando a porta.

O aventureiro tinha ouvido toda a conversa; a princípio aterrado, cobrou animo, e lembrou-se que em todo o caso era bom estar senhor do segredo do italiano para qualquer emergência futura. Confiado nessa excelente idéia, Rui meteu a chave no peito do gibão e foi reunir-se a seu companheiro que estava de vigia junto da escada.

Esperava por Loredano, que devia entrar na casa alta noite, para dirigir toda essa trama que havia urdido com uma inteligência superior.

O italiano tinha facilmente iludido a D. Diogo de Mariz; sabia que o ardente cavalheiro ia de rota batida, e que não se demoraria em caminho por motivo algum.

As três léguas do Paquequer, inventou um pretexto de ter-se quebrado a cilha de sua cavalgadura e parou para arranjá-la; enquanto D. Diogo e seus companheiros pensavam que os seguia de perto, ele tinha voltado sobre os passos, e escondido nas vizinhanças, esperava que a noite se adiantasse.

Quando percebeu que tudo estava em silêncio, aproximou-se; trocou o sinal convencionado, que era o canto de coruja; e introduziu-se furtivamente na habitação.

O mais já vimos. Sabendo que tudo estava preparado e pronto ao primeiro sinal, Loredano deu começo à execução de seu projeto e conseguiu penetrar no quarto de Cecília.

Tomar a menina nos braços, raptá-la, atravessar a esplanada, chegar à porta da alpendrada, e pronunciar a senha convencionada, era coisa que ele contava realizar num momento.

Quando Cecília arrancada do seu leito lançasse um grito que ele não pudesse abafar, isto pouco lhe importava; antes que alguém despertasse, teria chegado ao outro lado, e então a uma palavra sua o fogo e o ferro viriam em seu socorro.

Rui lançaria a chama à palha preparada para esse fim; e a faca de cada um dos seus cúmplices se enterraria na gorja dos homens adormecidos.

Depois, no meio desse horror e confusão, os vinte demônios acabariam a sua obra, e fugiriam como os maus espíritos das lendas antigas, quando a primeira luz da alvorada terminava o sabbat infernal.

Iam ao Rio de Janeiro; ai, ligados todos por um mesmo laço do crime, por um mesmo perigo e uma só ambição, Loredano contava ter neles agentes fiéis e dedicados para levar a cabo a sua empresa.

Enquanto a traição solapava assim o sossego, a felicidade, a vida e a honra dessa família, todos dormiam tranqüilos e descuidados; nem um pressentimento os vinha advertir da desgraça que os ameaçava.

Loredano, graças à sua agilidade e à sua força, tinha conseguido chegar até ao leito da menina, sem que o menor rumor traísse a sua presença, sem que na habitação alguém tivesse podido perceber o que se passava.

Certo pois do resultado, o italiano advertido pela inocente avezinha, que não sabia o mal que fazia, cuidou em consumar a sua obra. Abriu a cômoda de Cecília, tirou roupas de seda e linho e fez de tudo isso um embrulho tão pequeno quanto era possível; depois envolveu-o em uma das peles que serviam de tapete, e colocou numa cadeira, a jeito de o poder apanhar com facilidade.

Era coisa original o pensamento deste homem. Ao passo que cometia um crime, tinha a lembrança delicada de querer suavizar a desgraça da menina fazendo que nada lhe faltasse na viagem incômoda que tinha de fazer.

Quando tudo estava preparado, abriu a portinha que dava para o jardim, e estudou o caminho que tinha de seguir. Era preciso; porque apenas tomasse Cecília nos braços devia partir e chegar de uma só corrida, direita, rápida e cega.

A porta ficava num canto do aposento, defronte do vão que havia entre o leito e a parede; colocado nesse lagar não tinha senão um movimento a fazer, agarrar a menina e lançar-se fora do aposento.

Na ocasião em que ele se aproximava, ouviu-se um gemido, quase um suspiro,- abafado e cheio de angústia.

Os cabelos eriçaram-se sobre a fronte do italiano; gotas de suor frio e gelado sulcaram as suas faces pálidas e contraídas.

A pouco e pouco foi saindo do estupor que o paralisara, e volvendo lentamente ao redor de si uns esgares de olhos alucinados.

Nada! Nem um inseto parecia acordado na solidão profunda da noite em que tudo dormia exceto o crime, o verdadeiro duende da terra, o mau gênio das crenças de nossos pais.

Tudo estava em sossego; até o vento parecia se ter abrigado no cálice das flores e adormecido nesse berço perfumado, como num regaço de amante.

O italiano restabeleceu-se do violento abalo que sofrera, deu um passo, e inclinou-se sobre o leito.

Cecília sonhava nesse momento.

Seu rosto esclareceu-se com uma expressão de alegria angélica; sua mãozinha, que repousava aninhada entre os seios, moveu-se com a indolência e a moleza do sono e recaiu sobre a face.

A pequena cruz de esmalte que tinha ao colo e que estava agora presa entre os dedos da mão, roçou-lhe os lábios; e uma música celeste escapou-se, como se Deus tivesse vibrado uma das cordas de sua harpa eólia.

Foi a princípio um sorriso que adejou-lhe nos lábios; depois o sorriso colheu as asas e formou um beijo, por fim o beijo entreabriu-se como uma flor e exalou um suspiro perfumado.

— Peri!

O colo arfou docemente, e a mão descaindo foi de novo aninhar-se entre o talho da sua anágua de cambraia.

O italiano ergueu-se pálido.

Não se animava a tocar naquele corpo tão casto, tão puro; não podia fitar aquela fisionomia radiante de inocência e de candura.

Mas o tempo urgia.

Fez um esforço supremo sobre si mesmo; firmou o joelho à borda do leito, fechou os olhos e estendeu as mãos.