O Guarani/IV/IX

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O dia declinava rapidamente e as sombras da noite começavam a estender-se sobre o verde-negro da floresta. D. Antônio de Mariz, apoiado ao umbral da porta, junto de sua mulher, passava o braço pela cintura de Cecília. O sol a esconder-se iluminava com o seu reflexo esse grupo de família digno do quadro majestoso que lhe servia de baixo-relevo.

O fidalgo, Cecília e sua mãe, com os olhos no horizonte, recebiam esse último raio de despedida, e mandavam o adeus extremo à luz do dia, as montanhas que os cercavam, as árvores, aos campos, ao rio, a toda a natureza.

Para eles esse sol era a imagem de sua vida; o ocaso era a sua hora derradeira: e as sombras da eternidade se estendiam já como as sombras da noite.

Os Aimorés tinham voltado, depois do combate em que os aventureiros venderam caro a sua vida; e cada vez mais sequiosos de vingança, esperavam que anoitecesse para assaltar a casa. Certos desta vez que o inimigo extenuado não resistiria a um ataque violento, tinham tratado de destruir todos os meios que pudessem favorecer a fuga de um só dos brancos.

Isto era fácil: além da escada de pedra, o rochedo formava um despenhadeiro por todos os lados; e só a árvore, que lançava os galhos sobre a cabana de Peri, oferecia um ponto de comunicação praticável para quem tivesse a agilidade e a força do índio.

Os selvagens, que não queriam que lhes escapasse um só inimigo, e ainda menos que esse fosse Peri, abateram a árvore, e cortaram assim a única passagem por onde um homem poderia sair do rochedo, no momento do ataque.

Ao primeiro golpe do machado de pedra sobre o grosso tronco do óleo, Peri estremeceu, e saltando sobre a sua clavina, ia despedaçar a cabeça do selvagem; mas sorriu-se, e encostou tranqüilamente a arma à parede. Sem inquietar-se com a destruição que faziam os Aimorés, continuou no seu trabalho interrompido, e acabou de torcer uma corda com os filamentos de uma das palmeiras que serviam de esteio à sua cabana.

Ele tinha o seu plano: e para realizá-lo, começara por cortar as duas palmeiras e trazê-las para o quarto de Cecília; depois rachou uma das árvores, e durante toda a manhã ocupou-se em torcer essa longa corda, a que dava uma extraordinária importância.

Quando Peri terminava a sua obra, ouviu o baque da árvore que tombava sobre o rochedo; chegou-se de novo à janela, e seu rosto exprimiu uma satisfação imensa. O óleo, cortado pela raiz, deitara-se sobre o precipício, elevando a uma grande altura os seus galhos seculares, mais frondosos e mais robustos do que uma árvore nova da floresta.

Os Aimorés, tranqüilos por esse lado, continuaram nos seus preparativos para o combate que contavam dar durante as horas mortas da noite.

Quando o sol desapareceu no horizonte e a luz do crepúsculo cedeu às trevas que envolviam a terra, Peri dirigiu-se à sala.

Aires Gomes, sempre infatigável, guardava a porta do gabinete; D. Antônio de Mariz estava recostado na sua cadeira de espaldar; e Cecília, sentada sobre seus joelhos, recusava beber uma taça que seu pai lhe apresentava.

— Bebe, minha Cecília, dizia o fidalgo; é um cordial que te fará muito bem.

— De que serve, meu pai? Por uma hora, se tanto nos resta viver, não vale a pena! respondia a menina, sorrindo tristemente.

— Tu te enganas! Ainda não estamos de todo perdidos.

— Tendes alguma esperança? perguntou ela incrédula.

— Sim, tenho uma esperança, e esta não me iludirá! respondeu D. Antônio, com um acento profundo.

— Qual? Dizei-me!

— És curiosa? replicou o fidalgo sorrindo. Pois só te direi se fizeres o que te peço.

— Quereis que beba essa taça?

— Sim

Cecília tomou a taça das mãos de seu pai, e depois de beber, volveu para ele o seu olhar interrogador.

— A esperança que eu tenho, minha filha, é que nenhum inimigo passara nunca do limiar daquela porta; podes crer na palavra de teu pai e dormir tranqüila. Deus vela sobre nos.

Beijando a fronte pura da menina, ele ergueu-se, tomou-a nos seus braços, e recostando-a sobre a poltrona em que estivera sentado, saiu do gabinete e foi examinar o que se passava fora da casa.

Peri, que tinha assistido a esse diálogo entre o pai e a filha, estava ocupado em procurar no gabinete vários objetos de que tinha necessidade aparentemente:

Logo que achou quanto desejava, o índio encaminhou-se para a porta.

— Onde vais? disse Cecília, que tinha acompanhado todos os seus movimentos.

— Peri volta, senhora.

— E por que nos deixa?

— Porque é preciso.

— Ao menos volta logo. Não devemos morrer todos juntos, da mesma morte?

O índio estremeceu.

— Não; Peri morrerá; mas tu hás de viver, senhora.

— Para que viver, depois de ter perdido todos os seus amigos?...

Cecília, que há alguns momentos sentia a cabeça vacilar, os olhos cerrarem-se e um sono invencível apoderar-se dela, deixou-se cair sobre o espaldar da cadeira.

— Não!... Antes morrer como Isabel! murmurou a menina já entorpecida pelo sono.

Um meigo sorriso veio adejar nos seus lábios entreabertos, por onde se escapava a respiração doce, branda e igual.

Peri a princípio assustou-se com esse sono repentino que não lhe parecia natural e com a palidez súbita de que se cobriram as feições de Cecília.

Seus olhos caíram sobre a taça que estava em cima da mesa; deitou nos lábios algumas gotas do liquido que tinham ficado no fundo e tomou-lhes o sabor: não podia conhecer o que continha; mas satisfez-se em não achar o que receara.

Repeliu a idéia que lhe assaltara o espírito, e lembrou-se que D. Antônio sorria no momento em que pedia à sua filha para beber, e que a sua mão não tremera apresentando-lhe a taça. Tranqüilo a este respeito, o índio, que não tinha tempo a perder, ganhou a esplanada, correu para o quarto que ocupava, e desapareceu.

A noite já estava fechada, e uma escuridão profunda envolvia a casa e os arredores. Durante esse tempo nenhum acontecimento extraordinário viera modificar a posição desesperada em que se achava a família a calma sinistra, que precede a grandes tempestades, plainava sobre a cabeça dessas vitimas que contavam, não as horas, mas os instantes de vida que lhes restavam.

D. Antônio passeava ao longo da sala, com a mesma serenidade de seus dias tranqüilos e plácidos de outrora; de vez em quando o fidalgo parava na porta do gabinete, lançava um olhar sobre sua mulher que orava e sua filha adormecida; depois continuava o passeio interrompido.

Os aventureiros grupados junto à porta seguiam com os olhos o vulto do fidalgo que se perdia no fundo escuro da sala, ou se destacava cheio de vigor e de colorido na esfera luminosa que cingia a lâmpada de prata suspensa ao teto.

Mudos, resignados, nenhum desses homens deixava escapar uma queixa, um suspiro que fosse; o exemplo de seu chefe reanimava neles essa coragem heróica do soldado que morre por uma causa santa.

Antes de obedecerem à ordem de D. Antônio de Mariz, eles tinham executado a sua sentença proferida contra Loredano; e quem passasse então sobre a esplanada veria em torno do poste, em que estava atado o frade, uma língua vermelha que lambia a fogueira, enroscando-se pelos toros de lenha.

O italiano sentia já o fogo que se aproximava e a fumaça, que, enovelando-se, envolvia-o numa névoa espessa; é impossível descrever a raiva, a cólera e o furor que se apossaram dele nesses momentos que precederam o suplício.

Mas voltemos à sala em que se achavam reunidos os principais personagens desta história, e onde se vão passar as cenas talvez mais importantes do drama.

A calma profunda que reinava nessa solidão não tinha sido perturbada; tudo estava em silêncio: e as trevas espessas da noite não deixavam perceber os objetos a alguns passos de distancia.

De repente listras de fogo atravessaram o ar, e se abateram sobre o edifício; eram as setas inflamadas dos selvagens que anunciavam o começo do ataque; durante alguns minutos foi como uma chuva de fogo, uma cascata de chamas que caiu sobre a casa.

Os aventureiros estremeceram; D. Antônio sorriu.

— É chegado o momento, meus amigos. Temos uma hora de vida; preparai-vos para morrer como cristãos e portugueses. Abri as portas para que possamos ver o céu.

O fidalgo dizia que lhe restava uma hora de vida, porque, tendo destruído o resto da escada de pedra, os selvagens não podiam subir ao rochedo senão escalando-o; e por maior que fosse a sua habilidade, não era possível que consumissem nisso menos tempo. Quando os aventureiros abriram as portas, um vulto resvalou na sombra, e entrou na sala.

Era Peri.