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O Homem que Fuma

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Vou deixar o hábito de ler no bonde, hábito estúpido. Ver o homem viver é mais interessante do que ler as histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa que pensa.) É certo que no bonde, geralmente, salvo numerosas exceções, vai quieto e sorumbático. Mas onde quer que esteja, e como quer que esteja respira humanidade. E os seus gestos e momos mais fugitivos são debuxos descosidos do grande jogo de cena que faz a dramaticidade da história.

"Todo ser humano é para mim um templo, e eu gostaria mais de distinguir os traços originais, as leves pinceladas que aí se encontram, do que de ver o famoso quadro da Transfiguração de Rafael." Esta opinião de Sterne em sua Viagem Sentimental, é justamente a minha. Honra a Sterne. - Só divirjo dele em que não gosto apenas dos traços originais, mas de todos. Aliás, no fundo, cada homem é sempre uma síntese original, um composto único, um exemplar sem parelha. A nossa visão grosseira ou a nossa necessidade e sede de catalogação é que nos obriga a converter as semelhanças em identidades e as analogias em semelhanças, a criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única realidade tangível, único depósito real de humanidade vivente e vibrante.


Viajei ao lado de um homem que, pela casca, devia ser negociante de secos e molhados. Era, de fato. Cheirava a suor, tinha os dedos grossos e encardidos, trazia um casaco de casimira cinzenta semeado de respingos, coscorões e tintas de varias cores. Contudo, carregava relógio com uma grossa cadeia de ouro, guardava na pupila a chispa da independência e, enfim, tinha esse ar de cavaleiro garbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tão próprio dos homens classificados e prósperos.

Mascava um toco de charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entre os quais havia senhoras de várias idades, formatos e cores. Não lhe ocorria sequer a idéia de que pudesse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmo homem, em mangas de camisa, por trás do balcão a desfazer-se em mesuras com os habítués do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.

Portanto, um abjeto ganhador de níqueis? um tipo que se faz calculadamente macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quando não depende? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com a freguesia é uma forma de virtude. Disto se ufana. Ensina essa virtude ao caixeirinho, ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado na convicção de que o Bem é uma coisa que logo se reflete na gaveta.

No bonde, o Sr. Joaquim já não é um negociante, é um passageiro. Aí, já não sente os limites que de ordinário lhe circunscrevem a personalidade, pungindo-lhe a carne; dá liberdade ao corpo; reveste, como uma roupa larga, os gestos e modos comuns do passageiro.

A este não lhe incumbem senão três coisas: pagar a passagem, não fumar nos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar de uma pessoa - o que não é difícil, a menos que tenha um volume incapaz de redução à unidade, na aritmética dos bondes. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos podem, ser brutos, dentro das regras, bastante amplas, que presidem a vaga polícia dos carros. - O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado deste princípio, que da mesma forma já se lhe incorporou à maquinalidade dos reflexos.

Ora, quem estiver isento de culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos, nesta vida, cada um a seu modo, não fazem senão aquilo que faz o Sr. Joaquim. Todos, no fundo, vendeiros amabilíssimos com a freguesia, e passageiros que fumam nos bondes da vida muito à sua vontade.

Onde estão a originalidade do Sr. Joaquim? Eis o que não pude descobrir, mas tenho a certeza de que lá está, dentro dele, como uma pérola no ventre de um galo. Questão de tempo e de paciência. - Há criaturas difíceis de decifrar. São enigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o grande matador de todas as charadas.