Saltar para o conteúdo

O Imperio brazileiro/II

Wikisource, a biblioteca livre


CAPITULO II
O Imperio e os partidos politicos

Em certas democracias acontece por vezes, notar-se a ausencia de partidos politicos. O detentor do poder exercendo suas funcções temporariamente, pelo menos segundo o espirito constitucional, galga a posição com a ajuda dos esforços de um grupo ou das intrigas de uma facção, mesmo de um partido, mas uma vez installado e dispondo dos favores e graças do Estado, a unanimidade tende a formar-se em redor delle. Um unico partido subsiste — o partido governamental, que se debilita, se fragmenta e se dispersa quando está por expirar o periodo do eleito, ou se urde sua queda, com o fim de procurar cada um seus interesses individuaes ou de parceria, reconstituindo muito embora o agrupamento no dia immediato para se pôr ao serviço do novo chefe d'Estado eleito ordeira ou violentamente. É claro que as coisas assim se passam nas pseudo democracias. N'outras, menos convencionaes ou mais verdadeiras, ha partidos com programmas que encobrem os interesses pessoaes. Nos Estados Unidos os partidos politicos deram, desde os primeiros tempos, prova da sua vitalidade e de sua continuidade.

Os republicanos e democratas da actualidade descendem em linha recta dos federalistas e republicanos de Hamilton e de Jefferson por uma evolução que os fez passar por successivas metamorphoses consoante os problemas politicos e sociaes do momento. Os rotulos de conservadores e liberaes reproduzem-se por toda America Latina e correspondem seguramente a correntes de opinião entre as gentes cultas desses paizes, mas na pratica é problematico que taes correntes hajam guiado ou inspirado os caudilhos, mormente os que tomam de assalto as presidencias, como é de regra. Os acontecimentos sendo todavia mais poderosos que os homens, succede que caudilhos personifiquem por fim idéas absolutamente oppostas ás que agitaram diante dos seus sequazes, no periodo da maior lucta. Rosas, por exemplo, que fez fuzilar ou degolar bom numero dos seus inimigos sob pretexto de que elle só defendia com real patriotismo a autonomia e dignidade das Provincias Unidas do Rio da Prata e que assignava quotidianamente proclamações odientas contra os «selvagens umitarios, immundos e asquerosos» de facto estabeleceu a unidade da Confederação Argentina, tornando o poder central, isto é, o de Buenos Ayres, (que constitucionalmente não comportava mais do que a representação exterior da Nação e que na verdade era o da sua tyrannia pessoal), robusto e incontroverso com relação aos regulos provinciaes. Rosas fracassou diante de um destes, o de Entre-Rios, Urquiza, a quem o Brazil deu a mão, quando o seu papel já estava, porem, desempenhado e a sua obra executada. Vencido por Urquiza, o espirito nacional resurgiu com Mitre, sob outra denominação e um aspecto liberal, ficando esmagado em Pavom o espirito regional.

Os partidos politicos no Brazil datavam da Regencia, porque antes, durante o reinado de D. Pedro I, houve espiritos amantes da liberdade e espiritos amantes da ordem, virtualmente avançados e moderados, constitucionaes, reaccionarios e republicanos, mas o soberano fazia as vezes de eixo do Estado. O pessoal politico gyrava em redor delle, attrahidos uns pelo seu magnetismo, afastados outros pelo seu caracter desigual, sem se agruparem em bandos disciplinados. A tendencia commum era democratica, portanto anti-autocratica, mas sympathias e antipathias visavam directamente o monarcha e os principios mais se regulavam pelos sentimentos assim manifestados. Depois da abdicação predominaram idéas e paixões: Os republicanos uniram-se quasi todos aos avançados, que foram mais tarde os liberaes, certo numero permanecendo fiel ao federalismo; os constitucionaes fundiram-se com os moderados e rodearam a bandeira conservadora quando as aspirações dos radicaes foram parcialmente satisfeitas pelo Acto Addicional, a ellas igualmente adherindo os reaccionarios, depois do tallecimento do duque de Bragança, em 1834.

O programma dos liberaes em 1831 abrangia a monarchia federativa; a abolição do Poder Moderador; a eleição biennal da Camara; o Senado electivo e temporario; a suppressão do Conselho d'Estado; assembléas legislativas provinciaes, com duas Camaras; infendentes municipaes desempenhando nas communas o papel dos presidentes nas provincias. O Acto Addicional creando o legislativo provincial, reduziu-o porem a uma só camara e Bernardo de Vasconcellos julgou que se fôra ainda assim demasiado longe. Outros topicos esperaram melhores tempos. À desforra do partido liberal foi a anticipação da maioridade do Imperador para preservação da união. A força das circumstamcias approximou muito do throno esse partido, do qual uma fracção foi até denominada a «facção aulica». Seu consulado foi perturbado por constantes contendas com os seus adversarios, não vacillando os liberaes em appellar para as armas, cada vez que os conservadores levavam a melhor nos escrutinios ou nos conselhos do joven monarcha: haja vista as revoluções de Minas Geraes — São Paulo em 1842 e de Pernambuco em 18458. Esta ultima, inhabil e infeliz demonstração de odios locaes, o ultimo grito de guerra de uma sociedade acalentada pela desordem, marcou para os liberaes um prolongado ostracismo e para os conservadores uma correspondente supremacia.

O soberano, que em 1848 contava 23 annos, é que até ahi tivera como principaes ministros individualidades de menos relevo, relativamente, do ponto de vista do vigor e prestigio politicos, passou a ter perto de si collaboradores de governo cuja sombra se alteava até os primeiros degráãos do throno. Por sua vez cessaram os partidos de ser representativos de opiniões e aspirações definidas para se tornarem «simples aggregados de clans organizados para a exploração em commum das vantagens do poder» (!). Antes d'esta nova phase, os liberaes apegavam-se à maxima cunhada em França sob Luiz Felippe -- O rei reina e não governa, ao passo que os conservadores aventavam que o espirito do poder moderador impedia o monarcha de ser um simples automato, estranho por assim dizer à marcha dos negocios publicos. Os liberaes admittiam o direito de resistencia armada toda vez que o governo commettesse arbitrariedades e offendesse as leis e a Constituição do Imperio; os conservadores repudiavam como illegal qualquer revolução, visto que era livre toda propaganda doutrinaria e que a imprensa, as umas e os tribunaes offereciam meios sufficientes de reparar os abusos das auctoridades e emendar os actos contrarios ao interesse publico. Os liberaes permaneciam addictos ao principio de descentralização administrativa, queriam reduzir ao minimo a acção da policia e pregavam a eleição popular dos magistrados, agentes judiciaes que deviam ser da livre escolha da nação e não instrumentos do poder; os conservadores julgavam a centralização politica indispensavel à integridade do Imperio, e a independencia e inamovibilidade do poder judiciario, arredado dos favores do suffragio, necessarias à dignidade da sua missão protectora dos direitos dos cidadãos e organizadora da resistencia legal (2).

De 1840 à 1848, sobretudo a partir de 1844, hberaes e conservadores sentavam-se junto em gabinetes pouco homogeneos e fatalmente de curta duração que, pretendendo afastar-se da potica partidaria, de facto encaravam com indifferença os conflictos de idéas e testemunhavam tamanha inereia em materia de disciplinas que permittiam a discordia lavrar no seio das maio-

(1) Oliveira Vianna, 4 queda do Imperio, no volume do Instituto Historico commemorativo do centenario de D. Pedro II (1925). (2) Pereira da Silva, Memorias do meu tempo. rias parlamentares que os sustentavam e os presidentes de provincias, seus delegados, desobedecerem às suas instrucções. Cita-se, como o melhor resultado da sessão legislativa de 1846, uma reforma eleitoral, abolindo o voto por procuração, exigindo a inclusão dos votantes no registro annual, confiando a presidencia das mesas eleitoraes ao juiz de paz, mesmo quando suspenso das suas funcções pelo governo, estabelecendo a fiscalização dos candidatos nos escrútinios e reduzindo o intervallo de tempo entre as eleições e a reunião do Parlamento.

Esses gabinetes, que se proclamavam imparciaes, dispostos a apagar os resentimentos do passado e a acceitar o concurso de todos os homens moderados dos dois partidos, não pareciam despertar sympathia alguma e vegetavam politicamente sem suscitar interesse publico ou parlamentar. Quanto aos gabinetes de mais pronunciada côr liberal, Wanderley (Cotegipe) d'elles fazia a critica na sessão de 1848, dizendo que o partido condemnava: na opposição as leis existentes, mas, uma vez no poder, as executava em seu proveito -- uma observação que, aliás, se pode applicar a todos os partidos de opposição em todos os paizes.

Da resistencia do espirito de auctoridade que se seguiu a 1848 foi Carneiro Leão (Paraná) a cabeça. Politico de um extraordinario bom senso, aguçado pela clarividencia e realçado por uma tenacidade que roçava pela obstinação, tratou em 1853 de fundir elementos de grande valia sob um programma sympathico de paz. Foi a chamada conciliação. Seu ministerio englobou antigos liberaes — Limpo de Abreu (Abaeté), Pedreira (Bom Retiro) e Paranhos (Rio Branco) — e conservadores de tradição — Nabuco e mais tarde Wanderley (Cotegipe) — todos convencidos da utilidade de uma approximação. A opinião publica favorecia aliás essa orientação que a opposição parlamentar preconizava, que a imprensa exaltava e que merecia tanto o apoio da eloquencia emphatica de Timandro, rugindo como Danton, quanto a preferencia do faro de Paraná, um Guizot sem philosophia da historia.

O marquez de Olinda, cuja vida politica se extendeu desde as Córtes de Lishôõa, de 1821, onde teve assento, até ao ministero liberal de 1865 a que presidiu, attribuiu um dia a politica de conciliação a um pensamento augusto, e é pelo menos certo que D. Pedro II a patrocinou cordialmente, pois ninguem melhor do que elle, acima dos partidos, se inteirava das suas disposições reciprocas — «a força destruidora, a intolerancia, a perseguição implacavel do vandalismo partidario» (*). Este escriptor politico ajunta que succedeu com ella o que occorre com toda politica nova, que cada um interpreta a seu modo e foma um desenvolvimennto maior do que o tinham previsto aquelles que a inventaram. O effeito foi além do impulso porque o instrumento era de escól. Joaquim Nabuco traça de Paraná um dos mais felizes dos seus perfis historicos com as feições que o distinguiam —«o temperamento. imperioso, a decisão prompta, a intuição de estadista », ao mesmo tempo que a tendencia ao desdem, melhor dito ao orgulho, a um excesso de seljconfidence, provocado por certa ausencia de tacto porque nelle «a energia era superior à habilidade e sabia melhor destruir as resistencias do que as desfazer». Essencialmente pratico e positivo, Paraná «observava friamente os homens, accumulava a notação de pequenas circumstancias diarias de preferencia a buscar as idéas geraes, os principios syntheticos da politica. Deixando aos outros a historia, a imaginação, a sciencia, os livros, contentava-se com trabalhar com seus simples utensilos que não eram outros senão a cautela, o bom senso, a penetração astuta, aperfeiçoada por uma longa experiencia dos altos negocios e pelo trato com os homens notaveis do paiz, que elle pela maior parte desprezava um pouco, sendo um fino conhecedor dos seus semelhantes e sabendo descontar-lhes as pretenções ».

Não foram sómente fortes sympathias que gerou o movimento da conciliação: tambem engendrou poderosas antipathias. Indifferença é que não mereceu e opportunidade teve-a toda. Succedeu a um gabinete de acção e de resistencia que tinha

(3). Joaquim Nabuco, Um Estadista do Imperio. dirigido a politica nacional durante uma phase, senão das mais agitadas, pelo menos das mais criticas, e se vira a braços com uma campanha estrangeira apenas assegurada a pacificação interior. Tambem o momento era propício a uma transformação politica do ponto de vista domestico. Os principios combativos do liberalismo cediam da sua intransigencia sob o influxo dos negocios originados nas necessidades do progresso material do paiz. Primavam as preoccupações utilitarias: as actividades desviavam-se das doutrinas em beneficio das concessões. Chesara o desejo: de uma orientação positiva, traduzindo-se pela construcção de estradas de ferro, por ensaios de navegação a vapor, por emprezas de colonização, pelo estabelecimento de bancos emissores, pelo fomento de serviços municipaes taes como iluminação, esgotos, etc. Os recursos naturaes avantajavam-se às controversias constitucionaes. Paraná podia bem, como O fez, definir o seu governo como «conservador progressista e progressista conservador ». À dissidencia conservadora, pela bocca de Angelo Ferraz (barão de Uruguayana) censurava, porem, essa conciliação de homens e não de idéas, como a indicava, a qual falseava o systema parlamentar, rebaixava os caracteres, satisfazendo os instinctos e estimulando as ambições e dava uma expansão mesperada às politicas locaes, ao mesmo tempo que suffocava a politica geral. A expressão — opportunismo -— ainda não fôra creada, mas respondia mais ou menos ao programma que Paraná apresentava como muito alheio à extineção dos velhos partidos, tratando-se apenas de subtrahilos ás polemicas abstractas e estereis e tornal-os mais praticos e mais harmonicos com a marcha dos acontecimentos.

Como si tivesse empenho em justificar o ultimo topico da acecusação que lhe era assacada, de favorecer a politica de campanario, Paraná poz mãos a uma reforma eleitoral que, contimuando a ser indirecta ou de dois grãos, substituia o escrutinio de lista ou de provincia pelo de districto ou circulo, com um supplente para cada deputado. O Imperador, ao que se diz, insistia por eleições mais livres e de uma mais fiel expressão da opinião do paiz, e a reforma de Paraná teve o applauso dos libetaes que por meio della esperavam sahir de um longo ostracismo. Combatiam-na, porem, e com acrimonia, conservadores eminentes: Eusehio de Queiroz profligava-a como devendo produzir o triumpho da mediocridade. Com effeito, as eleições de 1856, a que presidiu o mesmo gabinete, mas sob a chefia de Caxias porque Paraná morrera no exercicio das suas funeções de uma febre perniciosa que em poucos dias o victimou, eliminaram não poucos homens politicos de distincção para collocar nos seus lugares entidades desconhecidas e resultaram nas provincias mais proveitosas às familias influentes do que ao partido no poder. A maioria ficou no emtanto corservadora, si bem que voltasse ao Parlamento um pequeno numero de Jliberaes, que d'elle estavam afastados. E o marquez de Olinda, que pugnara contra a politica de conciliação, ao organizar em 1857 um novo gabinete, não julgou util alterar a lei e preferiu mantel-a. As condições sociaes do paiz, cujo povo era em grande maioria destituido de educação politica e não podia mesmo possuil-a, dada a sua geral ignorancia, eram as unicas responsaveis da adulteração das eleições e, portanto, da falta de elevação do suffragio..

Em 1860, sob o gabinete Ferraz, as Camaras approvaram uma reforma apresentada pelo gabinete anterior (Abaeté) creando districtos de trez deputados no lugar dos cireulos de um só representante, e abolindo os supplentes, cujos conchavos por vezes vergonhosos com os titulares effectivos tinham sido um dos motivos do descredito da reforma. Esse systema durou até quasi as vesperas do consulado liberal que trouxe a eleição directa, porque uma ultima modificação da eleição de dois grãos, occorreu sob o gabinete Caxias-Cotegipe (1875-178) e fóra proposta pelo gabinete Rio Branco (1871-75). De accordo com ella apenas se verificou uma eleição geral, a de 1876. O influxo de Paraná sobre a politica brazileira sobreviveu-lhe, pois que a conciliação durou até 1860, quando a resurreição liberal ao som da trombeta vibrante de Theophilo Ottoni, eleito triumphalmente na Côrte com Francisco Octaviano, e Saldanha Marinho, lançou o panico entre os conservadores e determinou a formação do partido progressista. Salles Torres Homem apreciou com imparcialidade e com subtileza num dos seus discursos parlamentares de 1857 esse periodo de transição, antecipando portanto o seu vaticinio à realidade de transformação: «Entre a decadencia dos velhos partidos «que tiveram sua epocha e o advento dos novos partidos a que pertence o futuro, interpoz-se uma phase, sem physicnomia, sem emoções, sem enthusiasticas, possuindo entretanto a inestimavel vantagem de romper a continuidade de cadeia de tradições funestas e de favorecer pela sua calma e pelo seu silencio a taina domestica de reorganização administrativa e industrial do paiz. Todos os povos, mesmo os mais ricos de seiva e de vigor, carecem d'essa suspensão da sua actividade politica para reparar e fortificar os outros elementos da sua vitalidade. As nações jovens que, como o Brazil, ainda não estabeleceram: completamente os fundamentos da sua civilização necessitam mesmo mais d'essas interrupções e não podem desperdiçar suas forças vivas em luctas incessantes e estereis sem se exporem aos efíeitos de uma decrepitude prematura ».

Uma nova fusão dos partidos operou-se entre 1860 e 1869, quando o liberalismo se libertou completamente da pressão official e appareceu como partido quasi anti-dynastico. Em 1868 o seu programma já radical abrangia de novo, como em 1831, a descentralização; a abolição do poder moderador; o Senado electivo e temporario; a eleição dos presidentes de provincias pelas proprias províncias, de modo a formarem uma verdadeira federação e offerecia novidades — a liberdade de ensino, que soava admiravelmente, embora significasse pouco; a policia eleita como nos Estados Unidos, a abolição da guarda, nacional, taxada de sustentaculo das instituições; O sulfragio directo generalizado a caminho de ser universalizado; a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, a sempiterna questão da emancipação do elemento servil; a suspensão e à responsabilidade dos magistrados, postas na alçada dos tribunaes superiores e do poder legislativo, em vez de dependentes do executivo; a magistratura independente, incompatível e retirada na sua escolha à acção do governo; a incompatibilidade entre as funcções eleitoraes e os cargos publicos e mesmo os titulos e condecorações.

Este programma contava na tribuna parlamentar é nos comicios populares defensores como Silveira da Motta (depois senador por São Paulo), Silveira Martins (depois senador pelo Rio Grande do Sul) e Rangel Pestana, que, este, igualmente o sustentava, na imprensa com reconhecida auctoridade moral.

O appello feito pelo soberano em 1869 ao partido conservador, organizando-se o gabinete Itaborahy, recebido na Camara com uma moção de desconfiança que reuniu 85 votos contra 10, congregou todos os liberaes — progressistas e historicos — n'um só partido, o novo partido liberal, que sob este nome tradicional durou até o fim do Imperio. Seus chefes eram Nabuco, Zacharias, Silveira Lobo, Theophilo Ottoni e Francisco Octaviano e seu fito declarado n'um longo e brilhante manifesto, «a realidade e o desenvolvimento do elemento democratico da Constituição e: a maior amplitude e garantias das liberdades individuaes e politicas ». Os doze artigos basicos ou essenciaes do seu programma fornecem uma idéa perfeita do seu espirito reformista, dentro da esphera constitucional, onde se declarava conservar. Eil-os:

I — A responsabilidade pelos ministros dos actos do Poder Moderador.

II — A maxima —o rei reina e não governa.

III — A organização do conselho de ministros de accordo e como resultado pratico dos dois artigos precedentes. IV — A descentralização no verdadeiro sentido do self government, executando o pensamento do Acto Addicional com relação às franquias provinciaes, emprestando ao elemento municipal a vida e a acção de que elle carecia, garantindo o direito e promovendo o exercicio, da iniciativa individual, animando e robustecendo o espirito de associação e restringindo o mais possivel a interferencia da auctoridade.

V — A maxima liberdade em materia de commercio e industria e a consequente extincção dos privilegios e dos monopolos.

VI — Garantias effectivas da liberdade de consciencia.

VII — Plena liberdade para os cidadãos de fundarem escolas e propagarem o ensino, ampliando-se ao mesmo tempo que o Estado offerecia até que a iniciativa individual e de associação pudessem dispensar tal cooperação.

VIII — Independencia do poder judiciario, como condição essencial para ella, — independencia dos magistrados.

IX — Unidade de jurisdicção do poder Judiciario, creado pela Constituição do Imperio, e conseguintemente derogação de toda jurisdicção administrativa.

X — O Conselho d'Estado como mola auxiliar da administração e não como corpo pohtico.

XI —- Reforma do Senado no sentido de supprimir a inamovibilidade, com o fim de corrigir à immobilidade e a oligarehia e com o intuito primordial do justo equilibrio e reciproca influencia dos dois ramos do poder legislativo.

XIL — Reducção dos effectivos militares em tempo de paz.

O programma incluia ainda a reforma eleitoral directa; a reforma judiciaria e policial; a abolição do recrutamento, substituido pelo alistamento de voluntarios, à moda imgleza; a dissolução da guarda nacional, substituida por uma guarda ei vica municipal, qualificada annualmente por freguezia e que, sem organização militar, os seus commandantes mesmo sendo nomeados pelos conselhos municipaes, auxiliaria a policia em caso de urgencia e na ausencia dos respectivos destacamentos; emfim a abolição da escravidão, primeiro pela libertação do ventre escravo, depois pela emancipação gradual.

A simples redacção desse programma, em que se attribue tão larga proporção às reformas administrativas e judiciarias, revela que o seu auctor foi o senador Nabuco, chefe por excellencia do novo partido e jurisconsulto eminente, cujo nome está ligado a todas as medidas de justiça realizadas durante o Imperio. Foi elle de resto o primeiro a assignal-o, seguindo-se- lhe Souza Franco, Zacharias, Chichorro da Gama, Furtado, Dias de Carvalho, Paranaguá, Theophilo Ottoni e Francisco Octaviano, todos, com excepção de Ottoni, senadores do grupo Liberal.

O que fôra feito do programma liberal, vinte annos depois? Tinha por acaso sido realizado? Em grande parte sim.

O Imperador despira-se cada dia mais das suas faculdades constitucionaes para engalanar os seus ministros, e o Parlamento lucrara naturalmente com a mudança, o contrapeso do poder moderador, perdendo o que ganhava a auctoridade de representação nacional ou de sua delegação executiva.

A reforma eleitoral por meio do suffragio directo foi a obra do gabinete liberal Saraiva, o primeiro dos dois presididos por esse chefe comparado a (Gladstone pelo prestigio pessoal e chrismado de Nestor pela prudencia. O corpo eleitoral do Brazil era reduzido por isso mesmo, interprete mais adequado do seu estado de cultura, e poude-se assistir ao espectaculo edificante e pouco conhecido de ministros, membros do governo, derrotados pelos candidatos da opposição. O novo systema, lealmente applicado pelos que o introduziram, prestou este serviço de offerecer menos flanco à fraude ou à pressão, ainda superior à fraude.

Por occasião da ultima transformação da lei anterior, que empregava o methodo indirecto, bom numero de conservadores, entre elles Francisco Belisario, que foi depois no gabinete Cotegipe, de 1885 a 1888, um excellente ministro da fazenda, a condemnaram, opinando que o seu grande defeito era o uso: para a escolha dos eleitores do suffragio universal exercido por analphabetos e dependentes de todo genero. As eleições realizavam-se «pela corrupção das classes miseraveis, pelas violencias de que eram alvo por parte das auctoridades policiaes e administrativas, pela ignorancia do povo miudo que não conhecia sequer seus direitos e muito menos sabia defendel-os, pela facilidade, emfim, de falsificar os alistamentos e as actas parochiaes da eleição primaria » (£).

Nos Estados Unidos, onde as convenções partidarias pareciam prestar-se de preferencia à influencia desmoralizadora, as assembléas primarias para escolha dos candidatos estão neste momento sofirendo novas criticas pelos vicios de que se apresenta inquinado o seu funccionamento.

No Brazil com a lei vigente a opposição não podia absolutamente pensar em victoria, quando mesmo dispuzesse da grande maioria dos suffragios, porquanto qualquer abalo da vitalidade politica, como o de 1860 na capital, era annullado pelo peso morto das votações nas provincias. Para remediar esse estado de coisas a derradeira modalidade da eleição indirecta determinara a representação das minorias por meio de listas incompletas para os eleitores e para os deputados e restabelecia o escrutínio por provincia no lugar do escrutinio por districto.

A aspiração geral tendia comtudo para a eleição directa e de censo limitado e o proprio Cotegipe que a defendera calorosamente no Senado, porque a sua ironia não exeluia a vibração occasional, só recommendava o outro systema modificado para fazer frente a uma situação politica difficil e que reclamava uma solução prompta no interesse dos dois partidos. A sessão legislativa chegara ao seu termo e faltava de todo o tempo para pensar a serio em experimentar outro systema,

(4) Pereira da Silva, Memorias do meu tempo. tentando uma reforma radical. No consenso geral tratava-se apenas de uma solução provisoria que exigia no emtanto ser manejada com tolerancia, no que se empenhou o governo, hostil a nenhuma propaganda, o que aliás tendia a restringir-lhes o ardor. À propaganda republicana, por exemplo, que sob o ministerio precedente conduzira a excessos lamentaveis como a destruição sob os olhares benevolos, senão por inspiração da policia, da typographia do jornal-— 4 Republica (alguns dizem que obra mesmo de policiaes disfarçados), desacato que produzira vivo descontentamento no animo do Imperador, arrefeceu muito e assistiu-se mesmo a contricções de nota.

“As eleições de 1876 não foram isentas da fraude e dos abusos, communs desde a maioridade, mas permittiram a entrada na Camara de 16 deputados liberaes, dos 25 que assegurava ao seu partido o terço concedido à minoria e de que n'alguns casos tirou vantagem adversa a divisão intencional dos candidatos. À promessa formulada no Parlamento por Cotegipe de apresentar a questão da eleição directa ao debate foi considerada a razão principal da queda do gabinete Caxias, quando o marechal, combalido pela idade e pela doença, se retirou do poder e apontou ao soberano o seu collaborador como a melhor selecção para a presidencia do conselho, a personalidade mais propria para proseguir à testa da administração, tanto mais quanto dispunha da confiança da Camara. Os presidentes da Camara e do Senado declararam-se altamente em favor da reforma eleitoral e o primeiro, que era Paulino de Souza, emittiu o parecer de que ella podia ser elaborada por legislação ordinaria, pois que outras alterações precedentes nas leis organicas se tinham effectuado sem recurso a uma Constituinte, toda reforma de caracter inequivocamente constitucional afigurandose-lhe arriscada. O Imperador, para quem a reforma não era de especial agrado, preferiu, porem, chamar ao governo os liberaes, que a tinham levantado e apregoado.

A abolição da escravidão estava feita mediante as trez leis conservadoras de 1571, 1885 e 1888 que depois da extincção do trafico pelos conservadores alforriaram suecessivamente o ventre escravo, os sexagenarios e todos os escravos sem distincção de idade ou de sexo. Aos liberaes cabe, entretanto, a honra de terem com o gabinete Dantas convertido n'uma questão politica, sujeita à discussão legislativa, o que não passava amda de uma questão sentimental popular, exeitando as paixões nas cidades e nas plantações. Na historia parlamentar ingleza não é raro o faeto do partido conservador realizar as reformas suggeridas, pregadas e defendidas pelo partido liberal. Foi o caso da, reforma aduaneira anti-proteccionista que com sir Robert Peel trouxe o livre cambio e com a reforma eleitoral de Disraeli — o famoso leap in the dark ou salto nas trevas — que abriu o caminho à democracia pelo alargamento do suffragio.

A contradicção é, porem, apenas apparente e nenhuma analogia offerece com o disfarce de ambições pessoaes, sob o manto vistoso dos programmas, nem com a exhibição de idéas por parte dos que teem por habito recorrer à força. Naturalmente os conservadores inspiravam maior confiança ao sentimento de ordem da nação e parlamentarmente lhes seria mais facil fazerem vingar projectos adiantados suggeridos pelo espirito de progresso. Este devia-se contentar da gloria da iniciativa, sem a qual a victoria. final fôra impossivel pois que na mór parte dos casos os adversarios tão sómente se resignam, embora recolhendo a fama. O senador Nabuco, que era sobretudo um legista e professava em materia politica um scepticismo de bom quilate, não descobria mesmo lugar no Brazil para partidos profundos, partidos, segundo elle dizia, transmissiveis de geração em geração, como os houvera outr'ora em França, ou dynasticos como os da Inglaterra, cujas denominações, no conceito de lord Aberdeen, nada mais significavam depois da reforma de sir Robert Peel.

Nabuco baseava-se sobre o facto de que nada dividia essencialmente a sociedade brazileira, tão homogenea, onde o feudalismo não deixara vestigios e se achavam completamente fóra de lugar as chimeras politicas e os programmas abstractos. Os partidos, como os ministerios, duravam ou deviam durar o tempo que duravam as idéas que os legitimavam. Os partidos seriam, portanto, todos de oceasião, liheraes ou conservadores, de accordo com as circumstancias e os interesses, não de aceordo com principios de doutrina ou escola, ou com tradições historicas. A ausencia de privilegios condemnava os partidos a defenderem sómente principios de actualidade, idéas ondeantes às quaes não podiam sobreviver. Elle pessoalmente evoluira das fileiras dos conservadores, emperrados da maioridade para as dos liberaes do ultimo matiz radical atravez da Conciliação do marquez de Paraná e da Liga do marquez de Olinda.

Tambem o ensino official fôra convertido em livre e quasi sem entraves, assim como a consciencia acatholica o fôra por meio da igualdade civil e politica. Todos os privilegios, por poucos e superficiaes que fossem, tendiam a desapparecer e a reforma judiciaria de 1871, realizada pelos conservadores, seguira em grande parte ás idéas do manifesto liberal de 1869, que o seu auctor acompanhara de um estudo da politica liberal na França e na Belgica e annexos abundantes impregnados de espirito juridico e de ideal democratico. A independencia da magistratura estava assegurada e o Imperador em pessoa a fiscalizava com meticulosidade. O Conselho d'Estado correspondia mais ou menos à missão que lhe traçara o programma e que era, como em França, a de preparar as propostas de lei e igualmente de as interpretar, cooperando deste modo na administração n'uma forma consultiva, mas importante. O militarismo, que a guerra do Paraguay fazia suspeitar que se tornaria porventura um perigo possivel, fôra arredado pela attitude de mal occulto desfavor que as classes armadas encontravam junto ao throno como um dos seus sustentaculos: D. Pedro II caprichava em ser um paizano e não concebia exercito e marinha senão como instrumento de guerra, nunca como peças do mechanismo politico e administrativo.

O programma liberal tão adiantado de 1869 fôra tão integralmente executado que em 1889 a opposição não reclamava mais do que a federação e iu obtel-a si não tivesse sobrevindo o golpe militar que fez cahir o regimen imperial. O partido republicano existia officialmente, isto é, como partido desde 1870, porque antes apenas consistia de convicções isoladas, talvez bastante numerosas porque as palavras sempre exerceram grande influencia sobre as imaginações dos povos, não só latinos, e nenhumas teem um som mais crystallino do que as de democracia e liberdade, que por occasião da- ultima guerra revestiram sentimentos de desforra e cobiça. A Revolução Franceza é a maior feiticeira da historia e não perdeu a sua magia.

Contavam-se, porem, no Imperio, antes da organização do partido anti-dynastico, poucas individualidades militantes em prol de semelhante idéa. Quizeram attribuir designios republicanos à revolução pernambucana de 1848, mas a verdade é que ella não desertou o campo constitucional. Um unico republicano conhecido n'ella desempenhou um papel secundario, Borges da “Fonseca, agitador febril, especie de Blanqui tropical que sonhava exclusivamente, no seu dizer, com a igualdade social. Foi elle quem, pregando a probibição aos portuguezes natos de negociarem na sua antiga colonia, isto é, por um euphemismo patriotico, a chamada nacionalização do commercio a retalho, introduziu o communismo nos campos das idéas politicas do Imperio, como sempre em proveito do Estado explorador representado pelos elementos ociosos e improductivos da collectividade. De 1848 data tambem o primeiro livro publicado no Brazil sobre socialismo, de que foi auctor o general J. T. de Abreu Lima, combatente na grande Columbia de Bolivar e mais tarde celebrizado pelo seu agnosticismo ou melhor dito anti-romanismo.

Gambetta e Castelar foram os padrinhos do partido republicano brazileiro, intencionalmente baptizado ou antes civilmente registrado no dia immediato ao do anniversario natalicio de D. Pedro Il, que cahia a 2 de Dezembro. Gambetta escreveu uma carta de animação, no estylo das que Victor Hugo distribuia pelo mundo para applaudir as vocações poeticas e semear os prineipios democraticos e os ideaes humanitarios. Castelar, com a proverbial cortezia hespanhola, e com o bom senso do companheiro de Quixote, mandou um especialista em conspirações e manobras oceultas que, solennemente posto que clandestinamente recebido pelo directorio do novo partido, explicou-lhe o mechanismo secreto das revoluções e insistiu na importancia maxima dos medios de escape, que aconselhava nunca se perdessem de vista (*). No directorio figuravam o grande jormnalista Quintino Bocayuva, que foi o primeiro ministro das relações exteriores da Republica, em 1889; o illustre jurisconsulto Lafayette Rodrigues Pereira, auctor do conhecido tratado sobre Direito das Gentes, que foi depois um dos vultos politicos da monarchia e representou o Imperador n'um tribunal internacional em Santiago, onde a D. Pedro II foi confiado o papel de arbitro desempatador: Aristides Lobo, jacobino exaltado que no governo exerceu as funcções de ministro do interior; Salvador de Mendonça, homem de lettras de real talento que da propaganda republicana passou para o serviço consular do Imperio e, às avessas de Prevost Paradol, foi mais tarde ministro plempotenciario da Republica em Washington, e Rangel Pestana, publicista doutrinario sincero, persuasivo e probo. Uma pequena fracção dos liberaes adheriu ao programma anti-dynastico, entre outros Campos Salles, que occupou a presidencia da Republica e nella se distinguiu por concertar as finanças avariadas e governar quatro annos sem recorrer um dia ao estado de sitio e Americo Braziliense, que occupou a presidencia de São Paulo. O partido numericamente ficou fraco, mas encerrava algumas personalidades de valor. Em São Paulo e no Rio Grande do Sul sómente chegou a ter uma organização séria, que lhe permittiu disputar as eleições e fazer mesmo triumphar candidatos seus: Campos Salles e Prudente de Moraes foram deputados geraes, e na assembléa de Porto Alegre tiveram assento varios republicanos. Alhures, como em Pernambuco e Bahia, o partido compunha-se de dois ou trez chefes, desconfiados uns dos outros, quando não inimigos.

Consummada a abolição, o partido liberal do Imperio impoz-

(5) Salvador de Mendonça, Reminiscencias publicadas no jornal do Rio de Ja- neiro — O Imparcial. se a missão «pôr de harmonia os interesses na união politica com a grande aspiração da autonomia administrativa dos poderes locaes». Completaria assim a obra dos moderados de 1831, que «no momento em que .as provincias ameaçavam escapar-se uma por uma pela tangente de anarchia, representaram o centro de resistencia, a força de inercia necessaria à estabilidade do equilibrio politico (*)». A descentralização datava de então, do momento historico em que o partido victorioso, installado no poder, condescendeu n'uma transacção com o partido federalista, e os conservadores tinham-na de começo abraçado com cordialidade; mas a divisão das rendas publicas fôra mal concebida e ageitada, e as provincias viam-se privadas dos meios sufficientes para com sua receita activarem seu progresso material.

O snr. Elpidio de Mesquita escreve com razão que nos ultimos annos do Imperio o problema brazileiro se tornara a este titulo exclusivamente financeiro, e a sua solução mal podia ser adiada desde que uma fracção da maioria governamental apresentava na sessão de 8 de Agosto de 1888 (menos de trez mezes depois da abolição da escravidão) «um projecto de reforma constitucional no sentido de tornar o Imperio uma monarchia federativa. Excepção feita no que dizia respeito á defesa exterior e interior do paiz, à sua representação externa, à arrecadação dos impostos geraes e às instituições necessarias para garantir e desenvolver a unidade nacional e proteger effectivamente os direitos constitucionaes dos cidadãos brazileiros, os govermos provinciaes ficariam inteiramente independentes do poder central». Tal era o theor geral do projecto, o qual deixava os detalhes da nova organização brazileira à Constituinte que se reuniria. Foi na verdade uma Constituinte que a elaborou e modelou essa federação, mas sob o regimen republicano e segundo o figurino americano. O figurmo inglez deixara de ser o copiado, mesmo porque já não correspondia ás exigencias da epocha no nosso meio.

(6) Elpidio de Mesquita, Dois regimens. O congresso do partido liberal puzera mãos à obra annunciada, ainda sob o regimen imperial. Sua reunião em 1889 precedeu apenas de um mez a queda do gabinete conservador João Alfredo e a volta dos liberaes ao poder sob a direcção de um chefe energico, competente e confiante em si e nas instituicões que se propunha salvaguardar, qual era Affonso Celso (Visconde de Ouro Preto). Aquelle congresso prudentemente afastou a miragem americana que illudia o senador Saraiva, bastante leigo no assumpto e surdo à observação conceituosa do seu collega Silveira Martins, de que provincias federadas, com um governo imperial isolado no Rio de Janeiro, não mais seriam do que a impotencia organizada. A posterior centralização repubhcana O provou.

Saraiva encontrara, porem, um collaborador inestimavel na pessoa da maior esperança do partido liberal naquelles dias, Ruy Barbosa, então na plena maturidade das suas faculdades insignes, com 40 annos de idade, nutrido de idéas e transbordante de brio, homem de estudo e homem de combate, escriptor e orador de uma fecundidade inesgotavel, -publicista e parlamentar sempre na brecha, jurisconsulto e humanista, advogado emerito e estylista incomparavel. Quantos puderam admirar a actividade de Ruy Barbosa na Republica, suas eloquentes campanhas em prol das liberdades politicas e mesmo das liberdades | cavis, seu desafio ao militarismo e suas exhortações repassadas de paixão litteraria pelo direito e pela justiça, poderão ajuizar no seu justo valor do que teria significado o concurso dessa inteligencia privilegiada na defesa do throno assaltado a um tempo pelo espirito philosophico sectario dos positivistas, pela indisciplina. do exercito parcamente retribuido, pelo ardor redivivo do idealismo revolucionario e pelo despeito dos senhores de escravos pela espoliação legal de que tinham sido alvo da parte dos poderes publicos.

O programma liberal de 1869 satisfazia melhor as necessidades politicas do paiz do que o enxerto que na revolta trrumphante soube habilmente inserir a auctoridade espiritual de um dos raros conhecedores no meio brazileiro de então, do direito constitucional americano e dos poucos familiares com à historia dos Estados Unidos. Esse programma, que o gabinete Ouro Preto tencionava executar, extendia o voto a todos os cidadãos sabendo ler e escrever, como o fez a Constituição republicana, mas introduzia o voto secreto, aspiração de muitas mentalidades de hoje no Brazil à vista especialmente dos seus felizes resultados na Argentina, e à que se oppõe a subserviencia de caudilhismo ancioso por não perder a arma certeira de pressão official. Os presidentes de provincias seriam eleitos por suffragio directo nas respectivas unidades administrativas escolhidos pelo Imperador n'uma lista triplice, conforme acontecia com o Senado, o qual passaria a temporario, com mandatos de 9 annos. Os dois outros cidadãos compondo a lista iriplice ficariam ipso facto vice-presidentes, e todos trez só poderiam perder seus cargos por sentença judicial expressa, ou em virtude de condemnação implicando a perda dos direitos de cidadão brazileiro ou a suspensão do exercicio dos direitos politicos; tambem por incapacidade physica ou moral assim julgada e devidamente provada. Outra causa possivel de destituição seria a acceitação, sem consentimento do Imperador, de titulo, condecoração ou qualquer outra mercê estrangeira. Durante seu termo de governo ficariam incompativeis com qualquer outro emprego e não poderiam receber pensão alguma nem teriam direito a vantagem pecuniaria mais do que os seus vencimentos fixados por lei. Mesmo os titulos e condecorações nacionaes serlhes-hiam vedados durante esse periodo. Os presidentes de provincias da monarchia gozariam, pois, de tanta autonomia quanto os actuaes governadores de Estados, salvo a de prejudicarem a União com os seus focos de amarchia.

Os serviços federaes que anteriormente pertenciam ao presidente representante da auctoridade central, especie de prefeito de departamento, escolhido pela sua côr partidaria, caberiam nas attribuições de delegados directos do governo nacional, trabalhando separadamente ou reunidos n'uma junta, os serviços provinciaes sendo ampliados de modo a restabelecer em toda sua plenitude o regimen do Acto Addicional que as leis conservadoras tinham cerceado no intuito de preservar uma cohesão que agora se considerava solida bastante para resistir a uma descentralização mais radical, Ocioso é ajuntar que os recursos financeiros das provincias seriam augmentados pela transferencia por elles de certas fontes de receita tributaria.

O regimen republicano não se adiantou positivamente mui- to ao programma liberal, que condemnava os direitos de exportação, de que hoje vivem principalmente os Estados, aos quaes os concedeu a Constituição de 1891, sem cuidar do quanto onerariam a producção. Tambem recommendavam uma larga immigração europea, canalizada, porem, de forma a não lançar o descredito sobre o paiz pela sua distribuição ás tontas, nem servir de pretexto ás especulações de terras e de trabalho, e acompanhada de leis tendo por fim favorecer o credito agricola, facilitar a acquisição de terras devolutas pelos pequenos proprietarios, reduzir os fretes e desenvolver os meios de communicação. Sob a Republica a colonização estrangeira proseguiu na tendencia progressiva dos ultimos tempos do Imperio e alcançou na sua expansão uma proporção relativa, mas o governo da União viu-se obrigado por motivos de abusos e de conflictos a suspender, pelo menos abertamente, a immigração paga ou subsidiada; os terrenos devolutos foram attribuidos aos Estados, o que restabeleceu regimens differentes para sua alienação, segundo as condições economicas de cada Estado: os transportes augmentaram consideravelmente, mas os fretes, sobretudo os maritimos, fornecidos pela exclusão estrangeira da cabotagem, cresceram a ponto de embaracar o commercio inter-estadual.

Em dois pontos foi a Republica além do programma hberal. Este reclamava com a liberdade completa do ensino a sua melhoria: a Republica libertou-o do officialismo ao ponto de perder parte da sua efficiencia, felizmente mantida no restante pela idoneidade dos professores, de certo numero pelo menos. Em materia religiosa a Republica não só decretou a plena liberdade dos cultos, como a mais tolerante, generosa e, portanto, habil separação da Igreja do Estado, que logicamente tornou obrigatorios os casamentos civil e o registro civil. O sentimento da familia tem-se até aqui opposto com vantagem à dissolução do laço matrimonial pelo divorcio.

Acima dos partidos pairava a Corôa, cuja influencia atdava sempre exposta a ser exaggerada e criticada pela opposição, invariavelmente desolada por ter que ceder o lugar, quando no poder, a outro governo e desejosa de reconquistar o que Martinho Campos, senador liberal e presidente do conselho, chamava pittorescamente «o emprego». O «poder pessoal» do Imperador foi uma expressão proverbial da phraseologia política do Brazil durante o longo remado de D. Pedro II, o qual, entretanto, se defendeu de haver jamais exhorbitado das suas attribuições constitucionaes, que o revestiam da dignidade de moderador ou arbitro, mas não o deveriam reduzir a um titere mechanico, joguete de todos os ambiciosos. Um senador da Republica, Moniz Freire, assim apreciava, 24 annos decorridos do novo regimen (7), essa lenda politica: «O paiz anda, senhores, entregue às tenazes de um systema que não é mais do que o poder pessoal universalmente organizado. Poder pessoal praticamente irresponsavel do Presidente da Republica; poder pessoal dos individuos, familias ou facções que se assenhorearam dos Estados, peor, muito mais directo, muito mais offensivo, muito mais em contacto com a carne do que o outro; poder pessoal dos chefes politicos que dirigem o serviço da servidão parlamentar, encarregados de fiscalizar à boa marcha do trabalho, o seu rendimento, a lubrificação, u mudança de peças, o asseio e o polimento dos metaes de todo o mechanismo... O Imperio desmoronou-se, o poder pessoal do monarcha foi destruido e no seu lugar surgiu essa ve-

(7) Discurso de 26 de Agosto de 1913. setação damninha de poderes pessoaes muito mais intoleraveis. O outro carecia, ao menos, de tornar-se vigoroso pela apparencia de inspirações e de fitos desinteressados; não dava origem, em parte alguma do territorio nacional, à colonia de abjecção moral, onde o brio se torna cada vez mais alheio: toda à gente sabia que as situações más e os dias aziagos não se etermizavam; havia para cada alma a esperança de uma epocha melhor. Hoje a esperança parece para todo sempre cerrada a todos os amargores... Em resumo: o poder pessoal do Imperador. aliás muito attenuado depois da lei de 9 de Janeiro de 1881, consistia em mudar os govemos e as situações sem outra criterio que o seu. Era um arbitrio que tinha o objectivo impessoal de manter na governança as differentes competencias separadas umas das outras pelas arregimentações partidarias e de permittir que cada uma dellas pudesse gozar por sua vez das honras, vantagens e responsabilidades da direeção politica. Fazia officio de balança para o equilibrio d'essas forças e procurava telas satisfeitas, vigiando-se mutuamente e competindo no serviço da patria. O objectivo do poder pessoal que hoje domina em toda a parte é de garantir aos seus detentores suas lamilias, seus parentes e sequazes o emprego que fornece o ganha-pão ou a posição que dá o prestigio à sombra do qual augmentam os bens, se fazem as fortunas, honradamente quando se é honrado, por todos os meios, mesmo os mais cynicos e criminosos, quando se não possue escrupulo, nem probidade, nem decoro... O Brazil politico pode ser considerado um aggregado de ventres ».

Um traço interessante a notar é o appello que os partidos ou antes as personalidades em opposição faziam quasi invarravelmente ao Imperador que combatiam e mesmo quando oestavam combatendo, para exercer esse «poder pessoal» que, no seu juizo, devia ser a expressão da auctoridade soberana e que elles pretendiam não se exercer assaz para purificar a atmosphera politica. Dir-se-hia que só pensavam em justificar seus ataques. «Aquilo de que accuso o Imperador — escrevia Joaquim Nabuco em 1886 —- não é de exercer o governo pessoal, é

> Oliveira Lima — O Imperio Braziteiro. de se não servir do mesmo para grandes fins nacionaes. À accusação que faço a esse despota constitucional é de não ser um despota civilizador, é de não ter decisão ou vontade de romper as ficções de um Parlamento nascido da fraude, como elle sabe que é o nosso, para ir buscar o povo nas suas senzalas ou nos seus mocambos e visitar a nação deitada no seu leito de paralytica». Para esse publicista, que se dizia monarchista, difficilmente se podia pôr de accordo a intelligencia esclarecida, a vasta sciencia do homem que era D. Pedro IH, com a indifferença moral que testemunhava como chefe do Estado pela condição dos escravos — o que aliás não impedia que no mesmo pamphleto o auctor reconhecesse que o pouco que havia sido legalmente feito lhe era principalmente devido.

Tive o ensejo de dizer um dia (*) que o Imperador assumira com effeito uma dictadura —-a da moralidade. Suas escolhas procuravam ser justiceiras e por coisa alguma no mundo as teria degradado. Os senadores vitalicios que D. Pedro IL nomeava dentre os eleitos pelo povo, os magistrados que promovia na carreira judiciaria, os diplomatas que mandava representarem o paiz no estrangeiro, tinham todas as probabilidades de ser respeitaveis e honestos: si vinha a saber a menor coisa em contrario à sua reputação, e a accusação fosse justificada, seus nomes iam para o canhenho, a famosa «lista negra», rabiscada pelo «lapis fatidico» da secretaria imperial. O alto pessoal politico do Imperio testemunha de um modo Telicissimo da judiciosa selecção do soberano. Não admira que todos comprehendessem e alguns confessassem que o «poder pessoal», na boa e legitima occupação do termo, comb a que se applica ao papel constitucional de D. Pedro II, era mais do que necessaro, indispensavel, por faltar à sua acção o contrapeso de uma avultada opinião esclarecida, Não podia haver uma consulta à nação, como é de praxe ingleza, regulada pela sã politica, quando a fraude e a pressão fabricavam Camaras quasi unanimes ao sabor da situação partidaria de cima, e a voz publica,

(8) Formation de lt Nationatité brésilicnne, Conferencias na Sorbonne. expressão da consciencia nacional, não tinha quer a amplitude, quer a forca precisas para corrigir aquelle peccado original do nosso systema representativo.

Nos ultimos tempos do regimen, a vida dos partidos tornara-se mais agitada, obedecia a influxos mais desencontrados, essas aggremiações politicas tendiam mesmo a esphacelar-se ellas tinham deixado de seguir uma direcção exclusiva. Conservadores e Jiberaes reconheciam varios chefes, pela mór parte regionaes. Cotegipe, entre os primeiros, ainda era appelidado o pontifex maximus, e todavia achou-se um dia em conflicto de idéas com João Alfredo. Entre os segundos, de 1878 a 1865, sete annos, organizaram-se sete gabinetes, com seis presidentes do Conselho differentes. Em 1878 o Imperador, em vez de chamar o senador Nabuco, que presidira o movimento reformista. de 1869, confiou o poder ao senador Sinimbú, politico de irreprehensivel integridade, typo de estadista inglez da epocha victoriana, mesmo no physico, austero e ao mesmo tempo imbuido de doutrina liberal, de uma eloquencia um pouco antiquada, mas de planos ousados: Foi elle quem especialmente se preoceupou de imtroduzir no Brazil a colonização chineza, para tornar menos sensivel no Norte, de que era filho como alagoano, a abolição da escravidão, que no sul seria remediada pelo alfluxo da colonização branca. O livro de Salvador de Mendonça — Trabalhadores asiaticos, toi escripto de accordo com esse projecto do governo.

Saraiva era comtudo dos chefes liberaes o mais escutado, o que reunia maior numero de suffragios dos seus correligionarios, O que provocava a maior dose de disciplina e de respeito. Diziam-no digno de figurar na galeria de Plutarcho e possuia mcontestavelmente, segundo Affonso Celso (?), e mau grado sua instrucção ou antes sua illustração limitada, o dom da anctoridade de que fala Emile Ollivier como precioso para o homem de governo, porque os seus partidarios achavam naturalissimo, dado tal prestigio, que elle mandasse e que obedecer-lhe não

(9) Oito umnos de Parlamento. envolvia uma diminuição moral, Saraiva possuia tambem uma visão muito lucida dos acontecimentos, faculdade antes espontanea do que adquirida, e sabia prever, o que na politica é indispensavel ao exito. Gozando da maior confiança do Imperador, soubera impór-se a todo o paiz, a amigos e a adversarios, pelo seu ar distante, que arredava familiaridades, pela sua imcompatibilidade, que não deixava de fóra ensejo para fazer apreciar, e por uma proclamada indifferença ao mundo, que occultava uma viva ambição. Conta-se, e Salvador. de Mendonça fez mesmo a tal proposito revelações curiosas (1º), que o chefe hberal recusou seus servicos ao Imperio na occasião da queda dos conservadores, em 1889, a menos que não fosse auctorizado a declarar ao Parlamento que a sua tarefa era a de preparar legislativamente a Republica, e que teve mesmo a dureza de responder a D. Pedro Il, ao lembrar-lhe este os direitos de sua filha, que o reino da Princeza Izabel «não era deste mundo », fazendo deste modo uma allusão injuriosa aos sentimentos de piedosa devoção da herdeira” do throno, accusada de espirito clerical pelos que só nella descobriam virtudes. Eu proprio pude vertficar, por uma conversa que tive com o senador Saraiva em Lisboa dois mezes antes da implantação do novo regimen, que a sua falta de deferencia para com a realeza era flagrante e que nutria o desejo muito pronunciado de chegar à presidencia da Republica, que presentia muito proxima. Adheriu aliás promptamente à Republica e apresentou-se à eleição para a Constituinte de 1890, sendo eleito e continuando desta maneira a fazer parte do Senado Brazileiro, mas não se sentiu bem no novo ambiente. A moldura era outra, o pessoal mudara completamente, os recemvindos pouco o conheciam, seu magnetismo cessara de operar. Isolado, tratado de resto, julgado um fossil politico, renumciou seu mandato e retirou-se para à sua Thebaida da Pojuca, na Bahia, onde a confiança do regimen desapparecido o fôra tantas vezes buscar para pôr à prova o seu bom senso, o seu modo pratico de encarar as questões arduas, a sua habilidade

(10) Cousas do men tempo. O Imparcial. do Ria de Janeiro. que não era do genero de prestimano porque andava associada à altivez, realçando as aptidões do homem de governo que sabia O que queria e queria o que se propunha.

Era primis inter pares, entre homens que se chamavam Martinho Campos, com sua mascara de Coquelim (11), expressão do seu espirito chocarreiro que só se sentia à vontade nas fileiras da opposição, a discutir de omni re seúbilta com sua voz mordente e sua eloquenca piltoresca; o marquez de Paranaguá, calmo, grave, serio, typo do primeiro reinado, com sua eterna sobrecasaca preta, sua barba de passa-piolho, seu bigode raspado, sua exquisita urbanidade; Lalavyette Rodrigues Pereira, jurista e humanista, sabendo manejar a saivra com singular pericia.

(11) Affonso Celso, Oito anmos de Parlamento.