O Imperio brazileiro/IV
A unica phase verdadeiramente militar, no sentido preciso
da palavra, da Historia do Brazil independente e monarchico
foi o primeiro reinado. O Imperador D. Pedro I prezava o exercito,
a carreira das armas e o brilho das proezas guerreiras
tanto quanto seu filho detestava tudo isso e prezava a paz,
as sciencias e o desenvolvimento civil da sociedade. O temperamento
do povo brazileiro estava muito mais de harmonia com
D. Pedro II, e a infeliz campanha do Sul muito cedo desgostou
o paiz das aventuras bellicas. Já antes, o governo imperial
experimentava difficuldades para recrutar os soldados de que
carecia — primeiro para manter no interior a ordem constitucional
varias vezes e em varios pontos alterada, logo depois
para defender no exterior a conquista da Provincia Cisplatina,
por longo tempo ambicionada e por longo tempo disputada por
trazer sua posse ao Brazil a fronteira meridional natural que
lhe faltava e de que D. João VI o deixou provido.
Ao lado do exercito nacional, composto de elementos recalcitrantes e facilmente levados á indisciplina e á rebeldia sanguinaria, outro exercito teve que ser creado de mercenarios estrangeiros, composto não pouco de elementos indesejaveis e que frequentemente se entregavam á embriaguez e dahi passavam á pilhagem. Estes lansquenets e rufiões, engajados na Allemanha, na Suissa, na Irlandia, por Schaeffer e por outros agentes da mesma escola, o Imperador, na sua ingenuidade politica que ia por vezes ao extremo, os reunira para que dessem aos seus subditos o exemplo das virtudes militares e não para com elles organizar uma guarda pretoriana exotica, defensora do throno, porque a sua grande ambição era ser guardado pelo amor do seu povo e pela fidelidade das suas tropas e não impôr a sua tyrannia. Ser constitucional não era ser uma figura de papelão no governo — elle piamente o acreditava. Ser chefe da nação não era abdicar toda vontade e toda iniciativa e reduzir-se á passividade.
Os motivos de que foram responsaveis e culpados os soldados estrangeiros perderam-se aliás na confusão geral de uma sociedade mui pouco estavel em suas linhas geraes, onde os elementos mais conservadores eram representados por um alto funccionalismo deferente para com a Corôa, que o patrocinava, tanto quanto timorato com relação ao espirito revolucionario que o espicaçava, e pela parte do pessoal politico que via no regimen monarchico uma garantia. Do exercito se não podia dizer que fosse conservador, porque andava habituado a poupar a auctoridade com tão escassa reserva que só aspirava convertel-a em instrumento dos seus caprichos e dos seus despeitos. Sua attitude era, portanto, pelo menos equivoca, tendo todavia o Imperador que buscar nelle o apoio para arrostar uma indisciplina que transpunha os limites dos quarteis, indo da imprensa ao Parlamento e da justiça ao clero. A politica militarizou-se no sentido do appello ás armas.
O Sete de Abril foi simultaneamente — um pronunciamento militar e popular. Em vez de conservar-se um elemento de ordem, o exercito tornava-se o maior elemento de desordem; e o povo comprehendera que não lhe restava senão praticar justiça por suas proprias mãos, si não quizesse ser esmagado. Para melhor conseguir seus fins, fazia concorrencia ao exercito num steeple-chase de anarchia que se extendia a todo o paiz. Os paizanos eram della culpados porque subornavam soldados para as revoluções em que seus interesses ou suas paixões se achavam em jogo, e não menos culpados eram os officiaes em tolerar taes crimes, apressando a decomposição duma sociedade, aproveitando-se quando preciso dessa situação para levar a cabo seus designios ambiciosos. O espectaculo foi commum na America Latina e a bella unidade brazileira entrou a perigar, nessa confusão gerada por attrictos e discordias de todo genero, em que os individuos começaram por oppôr seus ideaes e as facções acabaram por derramar o sangue na sanha dos seus odios ferozes. A segurança publica por essa forma estava tão reduzida a uma expressão sem sombra de realidade que bandos de assassinos e quadrilhas de ladrões infestavam as ruas da capital, onde de Abril a Julho de 1831, quer dizer, durante os mezes que se seguiram logo á abdicação, mais de 300 victimas cahiram sob seus golpes.
N'esta perturbação profunda foi revivendo o espirito da ordem civil, como que em reacção aos effeitos desastrosos que se verificavam de norte a sul. A propria sorte das armas brazileiras contribuiu para desacreditar o militarismo como systema de governo ou como instrumento de mando. O auctor inglez que continuava a historia de Southey até á Regencia, com tão evidente bom senso e tão notavel equidade que o seu trabalho chegou a ser attribuido a Evaristo da Veiga[1], lembra que os successos da campanha terminada com a independencia do Uruguay foram causa entre os hespanhoes do Prata do prestigio de que quasi até agora gozou a espada que tanto se tingiu de rubro nas luctas fratricidas. Ao contrario, no Brazil, o erro desviou os espiritos da gloria dos campos de batalha e cavou mais o fosso que separava o Imperador, ancioso em restabelecer o bom renome de suas armas, do Parlamento, pacifista ao ponto de querer reduzir ao quinto do effectivo proposto as forças navaes da nação.
A alliança das tropas insubordinadas com a opposição ultra-liberal de 1830, que provocou a abdicação, foi de mui curta duração. No dia immediato ao da victoria os paizanos só tinham um desejo — dissolver esse exercito em orgia revolucionaria, que os queria sujeitar ao seu jugo brutal. Foi a urgencia de restaurar a ordem civil que emprestou a força necessaria ao elemento moderador para afastar do poder o elemento exaltado, que trabalhara com o maior afinco para demolir o Imperio e substituil-o pela Republica federativa, que era e continuava a ser o sonho do partido avançado. Justiniano José da Rocha, o grande jornalista, chamava-lhe o «véo transparente» que cobria as aspirações republicanas.
Joaquim Nabuco notou que a fatalidade das revoluções consiste em que não é possivel leval-as a termo sem os exaltados e que com elles é impossivel governar. Durante os nove annos que durou, a Regencia teve que soffrer do flagello do mal separatista que se propagara por todo o Imperio, grassando por ultimo especialmente no Sul, e que por um triz não produziu a desaggregação do Brazil. A idéa da patria grande não se havia ainda sobreposto á da pequena patria, legado da dispersão do espirito colonial; e a animosidade entre os portuguezes, como nacionalidade e como povo, servia aos nativistas de grito de adhesão em vez do interesse superior da cultura nacional. Que não era uma sã concepção de liberalismo que os guiava e que orientava o federalismo brazileiro, prova-o o facto do sacrificio por este perpetrado do espirito municipal que no tempo colonial fôra uma salvaguarda posto que debil da independencia moral. Legislação e organização constitucional só pensavam á porfia em immolar esses nucleos tradicionaes de civilização portugueza no seu aspecto politico-social. No seu empenho de fortalecer o poder central na Italia, o dictador Mussolini começa por supprimir as eleições communaes, voltando ao systema dos podestás da Edade Media, e acabou pelo Senado, de nomeação real, conservado no topo da hierarchia, em desafio ao processo eleitoral.
A reacção conservadora de 1837 tivera por effeito robustecer
de algum modo a obra liberal no espirito, mas igualmente conservadora nos resultados da regencia Feijó. N'alguns pontos mesmo
a tradição conservadora teve, ou ameaçou ter, consequencias
dissolventes. O pendor regalista de Feijó quasi levou o paiz
ao schisma religioso, encarnando no Novo Mundo a feição
gallicana, que era n'um dos seus aspectos a do extremo padroado.
Não se limitava elle, aliás, á supremacia do poder temporal
nos actos eclesiasticos: ia até á intervenção no dogma,
ainda além da disciplina do clero, cujo celibato desejaria ver
abolido como regra obnoxia á moral.
Foi entretanto a situação conservadora de 1841 que assegurou o prestigio do poder central, euphemismo liberal pelo qual era designado o throno, nome que repugnava ao sentimento democratico. Os liberaes tinham no anno anterior feito a maioridade e o paiz, fatigado de revoluções e tomado de incerteza quanto ao futuro, estava com elles de coração, mas ainda mais o estaria com os conservadores que não tardaram a occupar o poder onde proseguiriam a obra de reacção, já restabelecendo a 23 de Novembro de 1841 o Conselho d'Estado, supprimido pelo Acto Addicional, já retirando ás assembléas provinciaes (decreto de 18 de Setembro de 1841) o direito de designarem os vice-presidentes respectivos, já revogando leis provinciaes por contrarias á Constituição, accusação immerecida, de facto reduzindo (pela lei de 3 de Dezembro foi reformado o codigo de processo criminal) a quasi federação de 1834 a uma muito moderada descentralização. A tão diffamada «facção aulica» servia ao mesmo tempo fielmente ao principio monarchico: alliando-se ora aos liberaes, ora aos conservadores, Aureliano agrupava realmente em redor do throno doutrinarios e cortezãos, e si não poude evitar as duas revoluções, de 1842 e de 1848, pelo menos lhes oppoz uma resistencia tenaz e victoriosa por meio dos fortes gabinetes contra os quaes se insurgiu o fanatismo liberal.
No Libello do Povo, fructo doutrinario da revolução franceza de Fevereiro de 1848, Salles Torres Homem, que não estudara impunemente na França de Luiz Felippe, mas não perdera todavia em Pariz o seu torneio classico, escrevia com a larga envergadura da sua phrase: «Não é quando o sol da liberdade se ergue radiante no horizonte da Europa e illumina com seus reflexos magnificos todo o mundo civilizado, que nós, Americanos, desmaiariamos á vista da sombra projectada por uma nuvem passageira... Vêde como o verbo reformador de Pio IX, que a principio cahira como o orvalho da manhã no sulco onde germinam os destinos da liberdade, immediatamente se transfigurou pela opposição dos reis n'uma faisca que leva o incendio á massa do immenso combustivel que accumularam por toda a parte os interesses novos da nova civilização, a industria crescente e a illustração mais desenvolvida das classes conservadas n'um desprezo ultrajante».
Em 1840, antes de D. Pedro II tomar nas suas mãos as redeas do governo, o paiz estava á mercê dos despeitos pessoaes, tão communs nas republicas, onde o poder supremo se acha aberto ás ambições individuaes. Bernardo de Vasconcellos, que fôra a alma da reacção de 1837, afastara-se do Regente e fallava em propôr a regencia da princeza D. Januaria, irmã mais velha do Imperador, a qual acabava de attingir a maioridade. No seu entender, desde o momento em que existia uma princeza maior, a Constituição não podia reconhecer como legal senão o direito que a esta assistia de exercer a interinidade, e a proposta respectiva foi apresentada á Camara dos Deputados. A regencia de uma mulher não era, comtudo, sympathica ao sentimento geral do paiz que, consciente ou instinctivamente, aspirava ao advento de uma auctoridade forte, que era o que lhe faltava.
Com o regimen parlamentar o Brazil travou conhecimento mais intimo desde 1831. Bernardo de Vasconcellos havia, o primeiro, formulado nas Camaras um programma de governo; Feijó estabelecera como condição prévia da sua entrada no ministerio que todas as resoluções do poder executivo seriam tomadas em conselho de gabinete presidido pela Regencia que, antes de ser una e escolhida pelos eleitores, fôra trina e eleita pelo Parlamento. Estava portanto enraizada a dualidade dos poderes, mas essas experiencias democraticas, ou melhor dito republicanas porque eram tentadas independentemente da instituição monarchica, a qual foi em si democratica, não tinham comtudo correspondido ás esperanças. «Materialmente nada tinhamos, intellectualmente tinhamos leis que se não executavam e governos que não eram obedecidos»[2]. Foi quando, no dizer deste publicista e parlamentar, «a representação emanada do suffragio popular sagrou o joven soberano, e o sentir publico ratificou seu direito ao throno. Os politicos procuravam todos manter a ordem, mas não o conseguiam, e a maioridade foi em resumo uma revolta do instincto de conservação. Ninguem se preoccupou de indagar propriamente dos meritos do regio adolescente: a confiança geral residia no principio que elle encarnava e que era o symbolo da paz e a garantia da segurança da nacionalidade. N'esse dia de 22 de Julho de 1840 o prestigio da instituição salvou o Brazil».
N'essa data historica uma commissão parlamentar dirigiu-se ao Paço afim de apresentar a D. Pedro II o voto da representação nacional, cujas minorias liberaes, do Senado e da Camara, tinham, reunidas no Senado, votado a declaração immediata da maioridade do Imperador. Era, nem mais nem menos do que um golpe d'Estado parlamentar, a coroar uma propaganda feita em todo paiz, exercendo-se por meio da imprensa e dos clubs maioristas e agitando a opinião com as discussões vehementes travadas nas duas Camaras. O regente Araujo Lima (Olinda) não se oppunha absolutamente a ceder a sua auctoridade ephemera, mas era de parecer que se aguardasse o dia 2 de Dezembro, quando D. Pedro II completaria 15 annos. N'este intuito chamara até ao ministerio dois elementos de influencia e valor, Rodrigues Torres (visconde de Itaborahy) e Paulino José Soares de Souza (visconde do Uruguay), e no ultimo momento appellara para Bernardo de Vasconcellos, o qual acceitara occupar a pasta do Imperio afim de preparar o advento do joven monarcha, cercado de instituições conservadoras, nomeadamente o Conselho d'Estado, destinado a supprir sua inexperiencia de governo com as luzes de um verdadeiro cenaculo politico.
Era, porem, em demasia tarde para resistir á pressão da opinião habilmente manobrada. Consultado, o Imperador proferia o seu famoso — quero já, e ordenou que o Parlamento, que acabava de ser adiado para fins de Novembro, fosse convocado para o dia immediato para elle prestar juramento e assumir o governo. D. Pedro II teve ensejo de declarar mais tarde, e mais de uma vez o repetiu, que não obedecera nessa occasião a suggestões de pessoa alguma, negando toda e qualquer intelligencia anterior com personagens politicas pela agencia de funccionarios do Paço. Só no proprio dia consultou seu tutor, o marquez de Itanhaem, e seu preceptor, o visconde de Sapucahy, que ambos, de começo hostis á anticipação da maioridade, acabaram por ceder á corrente nacional. Tão claramente conservadora era esta corrente que Antonio Carlos, que por vezes fazia com os irmãos de demagogo, embora volvessem depois a sentimentos reaccionarios e a methodos auctoritarios, mudou inteiramente de idéas e de modos, só não deixando de guindar bem a voz para as suas tiradas sarcasticas, tanto quanto Martim Francisco punha a sua em surdina para as dissertações metaphysicas.
Compunha-se o primeiro gabinete da maioridade de liberaes e de um conservador dissidente ou descontente, Aureliano, possuidor de varios dotes de homem d'Estado — a instrucção juridica, a energia, o talento de angariar e conservar amigos politicos — nutria uma ambição digna de um estadista, que era a de sobrepôr aos interesses dos partidos o prestigio da Corôa. A Camara estava impregnada de sentimento monarchico, mas mesmo assim não foi sem alguma surpreza que escutou as declarações do novo ministro do Imperio, Antonio Carlos, ao sustentar a manutenção das leis que vivamente atacara e crivara de doestos na opposição, não só a lei recentissima da interpretação do Acto Addicional, ainda sanccionada pelo regente Araujo Lima a 12 de Maio de 1840, como algumas mais antigas, que não tinham sido revogadas porque eram outras tantas armas de defesa da auctoridade contra a anarchia. Entre estas figurava a lei de 1831 contra os desordeiros, que fôra considerada inconstitucional, por offender os direitos individuaes e as regalias politicas dos cidadãos brazileiros.
O accordo feito em redor do throno permittiu a votação dos differentes orçamentos, das propostas de fixação das forças de terra e mar, da lista civil do Imperador e das dotações das Princezas, mas a harmonia dessa primeira tentativa de conciliação foi rota pela parcialidade manifestada pelo governo, intervindo por occasião das eleições dos conselhos municipaes e dos juizes de paz das parochias, pelo menos na capital, e montando a sua machina eleitoral, em vista das proximas eleições legislativas. Para este fim foram substituidos altos funccionarios e simples empregados de administração, magistrados e officiaes da guarda nacional, suspensos estes, dos seus commandos, da mesma forma que supplentes obedecendo ás injuncções do poder central tomaram o lugar dos juizes de paz, incumbidos pelas suas funcções de presidir ás mesas eleitoraes, que davam promessas de uma menor docilidade politica. N'estas condições, que foram justamente taxadas de «fraude, de violencia e de suborno» o suffragio favoreceu o governo, mas não logrou impedir a entrada de uma vigorosa opposição de 25 membros.
A sessão de 1841 ainda decorreu, porem, com a antiga Camara, que não fôra dissolvida: as eleições legislativas tinham então lugar anno e meio antes da reunião da nova assembléa. O pendulo inclinava-se visivelmente para a direita, e os conservadores tiveram uma partida facil a jogar, criticando o espirito faccioso e a politica ao mesmo tempo aventurosa e medrosa, de repentes e de palliativos, experimentada na intentada pacificação do Rio Grande do Sul. Para novos processos, mais efficazes, appellavam elles e, apoz a recomposição quasi total, em 1841, do gabinete de 1840, sahido da maioria, recomposição de que apenas escapou Aureliano, concediam os conservadores sua confiança ao novo ministerio em que figuravam personalidades de fibra e de tino do primeiro Reinado e da Regencia, quer dizer, José Clemente Pereira, Paranaguá (Villela Barboza), Sapucahy, Abrantes, e tambem uma grande esperança do partido, Paulino José Soares de Souza.
A distincção entre conservadores e liberaes data mais precisamente d'essa epocha. O primeiro Conselho d'Estado, no seio do qual o soberano encontrava competencias para o estudo dos problemas politicos e pareceres auctorizados por todas as questões publicas, constituindo uma collaboração preciosa para a sua acção, compoz-se de conservadores, de liberaes e de independentes, todos nomes respeitaveis como Carneiro Leão (Paraná), Bernardo de Vasconcellos, Alves Branco (Caravellas), Lopes Gama (Maranguape), bispo de Anemuria e outros. Mercê de certo destas circumstancias do seu renascimento, «jamais se apagaram as prevenções do povo contra essa instituição que parecia, mais do que qualquer outra, representar o espirito anti-democratico», mas cujos trabalhos foram «luminosos e patrioticos»[3].
Paulino de Souza regulamentou sabiamente a lei de 3 de Dezembro, da reforma do codigo de processo criminal, no sentido de tornar mais effectivo o papel das auctoridades na organização da policia e da magistratura, na formação dos processos e nos julgamentos pelo jury. Separou-se o administrativo do contencioso; definiram-se as attribuições dos jurados; creou-se um viveiro de juizes de direito entre os juizes municipaes; distinguiram-se as faculdades dos juizes de direito das dos chefes de policia, aos quaes cabia o poder de nomear os delegados dos termos e os sub-delegados das parochias, sob approvação dos presidentes de provincias. Esta lei foi sempre acerbamente combatida pelo espirito liberal, mas só veio a ser emendada trinta annos depois. No emtanto, Euzebio de Queiroz, quando ministro da justiça em 1850, ao ser abolido o trafico, conseguiu posto que conservador, para dar satisfacção aos seus antagonistas, alteral-a parcialmente, afim de reprimir os abusos do arbitrio policial, separando as funcções judiciarias, e administrativas, garantir melhor a independencia da magistratura, impedindo as remoções forçadas de juizes de direito, classificar os termos e estabelecer as promoções regulares para os tribunaes.
Outra alteração, ao tempo do ministerio de Conciliação presidido por Paraná (1853) e por proposta do jurisconsulto Nabuco, ministro da justiça e então conservador, representou, na opinião da opposição moderada d'outro jurista, Nebias, e de alguns legistas mais da Camara, um passo para traz com relação á garantia dos direitos individuaes, pois que o jury ficara privado de attribuições importantes, seus julgamentos eram sujeitos á decisão final dos magistrados e o poder arbitrario da policia era augmentado de novas faculdades no tocante por exemplo ás prisões preventivas.
Começou-se a fallar, melhor dito a murmurar, contra o poder
pessoal em 1852, por occasião da sahida de Euzebio de Queiroz
do gabinete, attribuida a uma desintelligencia com o Imperador,
que fez prevalecer sua opinião sobre a do seu ministro.
Era aliás naturalissimo que, ganhando diariamente experiencia
de governo, o soberano occasionalmente exercesse seus
poderes constitucionaes e fizesse vingar o seu ponto de vista.
A Constituição de 1824 fundara uma monarchia até certo ponto
restrictamente pessoal pois que, segundo a interpretação dos
espiritos conservadores, apezar de sempre impugnada pelos
espiritos liberaes, os actos do poder moderador dispensavam
a referenda por ministros responsaveis. O incidente alludido
parece receber confirmação do facto de Euzebio de Queiroz,
em 1858, recusar substituir Olinda na presidencia do conselho,
quando a opinião geral o indicava para o posto e D. Pedro II
o assegurou instantemente da sua confiança pessoal e politica.
Já então assistia aos chefes de gabinete escolherem livremente os seus collaboradores: anteriormente não recebiam na verdade
das mãos do monarcha a lista do ministerio, mas deviam obter
o seu placet para cada convite separadamente.
O poder pessoal só se tornou todavia um leit-motiv jornalistico e um estribilho parlamentar, depois que Theophilo Ottoni, voltando á Camara, da qual estava arredado desde 1848, rompeu a opposição contra o gabinete Alves de Lima (Caxias) que agrupara em torno da sua aureola de militar victorioso todos os matizes conservadores. Referindo-se a um discurso pronunciado no Senado em 1858 (Ottoni fôra reeleito deputado em 1860) pelo antigo regente Araujo Lima, em que este dissera que no Brazil ninguem podia prever quando cahiam os ministros ou apontar seus successores, Theophilo Ottoni deduziu a consequencia de existir uma entidade que o systema constitucional representativo desconhecia e que, chamando e despedindo os gabinetes, envolvia a negação do mesmo systema e desprezava as maiorias da Camara, expressão legitima, directa e immediata da vontade nacional. As dissoluções por sua vez estavam longe de obedecer a rigorosas manifestações parlamentares. Tal entidade apoiava-se sobre uma legislação reaccionaria, na qual figuravam as leis do recrutamento e da guarda nacional, e fazia em todos os pontos recordar o governo de Jorge III como o descreveu Macaulay — os escriptores inglezes, tanto os politicos como os humoristas, estavam então em grande voga entre o pessoal parlamentar, sobretudo liberal —, quando os chamados «amigos do Rei» brotavam como cogumellos em terriço. Ora alliando-se a um partido, ora desertando-o por uma traição covarde, esses reptis politicos tinham tanto mais facil sua acção quanto a Corôa praticava cautelosamente o processo de conservar os verdadeiros homens de bem da vida publica divididos entre si, dependentes exclusivamente do bel prazer do monarcha.
Foi n'essa occasião e em seguimento a uma rixa de ministros que a fracção mais adiantada do partido conservador, comprehendendo Zacharias, Sinimbú, Saraiva, Paranaguá, Nabuco, outros mais, muitos delles corypheus da politica e futuros presidentes de Conselho se separaram dos seus correligionarios e sob a egide do marquez de Olinda, de quem Joaquim Nabuco escreveu que possuia o prestigio de um vice-rei, se alliaram aos liberaes, formando o que se chamou a Liga. O primeiro gabinete sahido das suas fileiras, com Zacharias á frente, não se poude sustentar no poder mais do que alguns dias, o Imperador não querendo consentir na dissolução solicitada porque a opposição batera o governo por um voto de surpreza, com a maioria tão sómente de um voto. Mais uma vez se recorreu ao proprio Olinda, que, cercando-se de senadores, de um general e de um almirante, na maior parte septuagenarios e tendo como benjamins alguns quasi sexagenarios — foi o denominado «ministerio dos velhos» — organizou um governo a principio indefinido, sympathico a alguns e a ninguem desagradavel, mas pouco depois perdendo o feitio equivoco e tornando-se decididamente partidario. Este gabinete teve que arcar com a irritante questão Christie, originada na brutalidade do ministro britannico que ordenou iniquas represalias contra a nossa marinha mercante por motivo de reclamações de demorada e discutivel satisfacção, e neste ponto nenhuma divergencia rompeu a unanimidade patriotica. O gabinete Olinda affrontou tambem em Outubro de 1863 uma eleição geral precedida de dissolução que deu a victoria aos liberaes e conservadores dissidentes da Liga, não sem que se formulassem contra o governo as queixas costumeiras de pressão official, actos arbitrarios, excessos policiaes e corrupção eleitoral, seguidas de accusações não menos graves contra a maioria por occasião da verificação de poderes, a qual de ha muito podia ser considerada um terceiro escrutinio, muito mais inquinado de fraude.
O peor traço do regimen de suffragio então existente era que em vez de haver um corpo eleitoral permanente, cujas listas se verificavam em epochas fixas, se alistava um corpo de votantes qualificados para cada eleição pelas auctoridades locaes e pelas influencias de campanario, que n'esse rol incluiam todos os seus dependentes e mesmo nomes ficticios, excluindo simultaneamente muitos cidadãos que possuiam as habilitações legaes. As auctoridades policiaes retocavam o resultado no escrutinio de segundo gráo, modificando mesmo a decisão pelo seu apuramento dos votos. Assim era que o governo contava invariavelmente com um triumpho seguro[4].
A maioria heterogenea que decorreu da eleição de 1863, na qual se balançavam as duas fracções da Liga, não permittiu longa vida ao ministerio de reliquias da politica, cançadas das luctas parlamentares, e apoz a retirada do gabinete Furtado (1864) sob a presidencia de Zacharias se formou em 1865 um gabinete recomposto no anno immediato com a entrada de moços, conservando sempre os dois contingentes ligados, ainda que vexados da vizinhança e medindo com pouca cordialidade o seu mutuo concurso. A evolução partidaria começava a esboçar-se francamente no sentido liberal — foi o reinado do progressismo, a que succedeu o reformismo — ao qual não fôra estranho o relaxamento em França da subjugação do imperio auctoritario, levado ao apogeu pelas leis de repressão de 1858. A influencia dos acontecimentos francezes foi sempre muito sensivel sobre a marcha dos acontecimentos brazileiros, e o predominio dos conservadores no Imperio sul-americano de 1849 e 1857 filia-se espiritualmente na enthronização do Principe-Presidente, sobrepondo-se á demagogia, da mesma forma que o appello a Paula Souza em 1848, implica o temor que os monarchistas experimentaram da repercussão no Brazil da proclamação da Republica Franceza, procurando obviar a mudança de regimen com a presença no poder daquelle liberalão da Independencia.
Pouco a pouco, depois de 1860 foi D. Pedro II abrindo mão das suas prerogativas, com a plena consciencia de se estar encaminhando para um Imperio liberal. A ultima que sacrificou, a não ser sua fiscalização esclarecida sobre a moralidade da administração, foi a escolha de senadores adversos á politica partidaria dominante, que suscitava conflictos com o gabinete e na qual entretanto mui raramente se buscaria a razão do seu proceder em antipathias que não fossem dictadas por motivos ponderosos. Houve de facto politicos que voltaram repetidamente á sua sancção, na cabeça da lista triplice e que nunca alcançaram o beneplacito imperial. Theophilo Ottoni foi designado na quinta eleição e Pereira da Silva igualmente esperou que o Imperador ratificasse a votação popular.
A historia do governo imperial depois da maioridade póde
dividir-se no tocante ao desenvolvimento da ordem civil em
trez periodos distinctos e successivos. O primeiro foi o da
juventude de D. Pedro II, dos 15 aos 23 annos, quando Aureliano,
com seus modos attrahentes, encobrindo uma vontade firme,
que não trepidara nos primeiros annos da Regencia em fazer
guerra ao partido caramurú e destituir José Bonifacio da tutoria
imperial, encantou o mancebo que tivera uma infancia
erma de carinhos e uma adolescencia privada de romanesco e
que acceitou com uma especie de reconhecimento essa deferencia
impregnada de ternura e de habilidade. O feitio de
Aureliano era um refrigerio ao lado da presumpção dos Andradas,
das excentricidades de Hollanda Cavalcanti (visconde
de Albuquerque), da senilidade de Paranaguá, da seccura beata
de Itanhaem, da soberba de Paraná, do temperamento arisco de
Abaeté. Assim foi que durante essa phase Aureliano poude desempenhar
no Brazil o papel de lord Bute na Inglaterra de Jorge III,
governando por traz do reposteiro[5]. Entrementes D. Pedro II
cultivava a sua intelligencia, em que a memoria era prodigiosa
e o raciocinio seguro e desannuviado e desenvolvia o seu
caracter, em que a honestidade, a urbanidade, o civismo e a
grandeza d'alma corriam parelhas e substituiam uma affectividade
que por nada ruidosa parecia faltar a esse concerto moral e tomar o lugar da frieza que era o unico defeito
que seus detractores jamais lhe descobriram[6].
O segundo periodo, de 1848 a 1878 foi o dos trinta annos do intitulado «poder pessoal». Eunapio Deiró não hesitou em escrever que o pensamento imperial «então se concentrava na desorganização dos partidos por meio do scepticismo nos espiritos e da confusão do pessoal politico». Este systema foi na opinião desse publicista, audaciosamente executado por Paraná, atravez da sua Conciliação, que lhe servia á natureza imperiosa ao mesmo tempo que servia aos designios do soberano». O Imperador comtudo, depois de Aureliano, não teve mais favorito, nem mentor, si é que o nome pode ser applicado ao caso. Pedreira (Bom Retiro), homem publico de sagacidade e de iniciativa, gozou de toda sua confiança pessoal, mas não passou de seu camarista, quiçá até certo ponto seu confidente: nunca foi presidente do Conselho e ministro uma vez apenas, por pouco tempo, muito menos chefe politico.
Si é verdade que, na phrase de Deiró, D. Pedro II aprendeu a calcular bem o valor dos interesses e a conhecer a força que as ambições e outras paixões emprestavam á vida publica, e que usou desse tirocinio, delle não abusou e tanto assim que sua vontade nunca foi aggressiva e que sua acção foi até um quasi nada vacillante a respeito dos problemas mais serios da administração quando «gabinetes e parlamentos se moviam ao seu aceno e que elle era a encarnação viva e poderosa do paiz». Sua maneira de impôr suas vistas aos chefes politicos foi sempre cortez e suave e seu animo fora educado pelo seu preceptor monastico, frei Pedro de Santa Marianna, bispo titular de Chrysopolis, para exercer sua alta funcção pela moderação e pela desconfiança, não pela temeridade e pela abnegação. Observa Deiró com muito relevo que era «um espirito preparado para nutrir-se da sua propria seiva, desprendendo-se da communhão de sentimentos». Suas faculdades intellectuaes não eram creadoras e contemplavam as idéas sem as systematizar. Escasso de imaginação, seguia antes as conveniencias do momento do que os ideaes permanentes, o que não quer no emtanto dizer que não regulasse sua maneira de proceder por ideaes geraes, muito mais do que por processos praticos, posto que fazendo grande caso dos detalhes. Como chefe do Estado obedecia a um mixto de sentimento e de vontade, e esta insufficiencia de pura energia dominadora era corrigida pela sua personalidade de vistas, realçada por uma instrucção variada. Diz o snr. Theodoro Sampaio — um bom juiz no assumpto[7] — que a cultura intellectual do Imperador estava muito acima do nivel ordinario da cultura dos seus contemporaneos e que em qualquer materia — geologia ou exegese historica ou linguistica sul-americana por exemplo — o sentiam seus interlocutores perfeitamente senhor do terreno. Promoveu bom numero de expedições scientificas, agitou questões interessantes para o Brazil, de ordem intellectual e não descurou por isso o manejo das redeas do poder.
Em 1864 passou-se no campo judiciario um episodio que ficou famoso. O Imperador obtivera do gabinete Olinda, antes da sua retirada, a aposentadoria de varios magistrados deshonestos ou reputados taes, accusados de prevaricação. O Presidente do Supremo Tribunal recusou obedecer ao governo, admittindo o seu acto, sob pretexto de que os decretos respectivos eram inconstitucionaes, a aposentadoria não podendo ser imposta e sim solicitada e provada a razão do pedido. Zacharias, o novo presidente do Conselho, que aliás sempre defendera no Parlamento os privilegios da magistratura, julgou-se comtudo obrigado a manter a resolução do seu predecessor e levou o Presidente do Supremo Tribunal, que não queria transigir, a demittir-se para deixar outro, mais docil, registrar os decretos de que o Imperador fazia absolutamente questão.
Por ser discreta não era a intervenção de D. Pedro II menos obstinada. Ninguem o dissuadia jamais do que elle uma vez emprehendia como um dever, do que considerava a sua tarefa. Christiano B. Ottoni, que lhe não era affeiçoado, bem ao contrario, não teve duvida em confessar nobremente que a libertação dos escravos é «o diadema de luz com que o Imperador apparece no tribunal da Historia» e conta que foi elle quem, n'uma longa conferencia, decidiu Rio Branco, que a começo se escusava, a assumir a responsabilidade da medida legislativa que o immortalizou, e mais tarde quem persuadiu Dantas, receoso de tentar a partida por causa da falta de homogeneidade do partido liberal, a propôr a alforria dos sexagenarios. A opinião ou antes o sentimento publico não fez mais do que ultrapassar a iniciativa da Corôa, prudentemente associada ao principio de indemnização, a qual não mais seria do que uma justa compensação dos onus que pezavam sobre a propriedade escrava, sujeita a taxação, até a um imposto de capitação cuja adopção foi obtida pelo senador Silveira da Motta, embora fixo e não progressivo como era seu desejo.
Quando o visconde de Itaborahy invocou como razões para excluir do programma ministerial e portanto da falla do throno a questão do elemento servil, a campanha estrangeira apenas prestes a ultimar-se, a delicada situação financeira, a carencia de uma corrente progressiva da colonização estrangeira, a necessidade de sustentar com todas as forças a industria agricola, unica do paiz, o Imperador cedeu tão sómente na apparencia, mas não immolou seu proposito e foi contando com o seu apoio que alguns deputados levantaram a questão na Camara. Itaborahy negou ser partidario da escravidão: apenas sua extincção traria uma profunda transformação na vida social do Brazil, offenderia direitos preexistentes á Constituição e que esta tinha reconhecido e garantido, ameaçaria a ordem publica e atacaria as fontes de producção e conseguintemente da riqueza nacional. Era mister proceder com a maxima prudencia, effectuar estudos preliminares, conceber medidas preparatorias para não abalar as bases sobre as quaes repousava, havia mais de trez seculos, a estructura economica do paiz.
Foi então que Teixeira Junior (visconde do Cruzeiro) propoz a eleição de uma commissão especial de inquerito sobre o problema vital da organização social do Brazil, commissão que pouco depois offereceu á consideração do Parlamento um projecto complicado, ao qual o governo oppoz outro, libertando gratuitamente, isto é, sem indemnização os escravos da nação ou antes da Corôa e ordenando a estatistica e matricula de todos os escravos do paiz. A Camara, por uma enorme maioria, concedeu a preferencia ao projecto ministerial e passou a outros trabalhos — foi mesmo uma sessão legislativa das mais laboriosas e fecundas, mas, no Senado, Nabuco de Araujo propoz um additivo ao orçamento em discussão, mandando applicar cada anno, do saldo da receita, mil contos para a alforria de escravos de particulares. O Imperador ao mesmo tempo communicava ao presidente do Conselho que esta proposta merecia sua approvação e que elle estimaria vel-a transformada em medida administrativa. Itaborahy, porem, insistiu pela adopção pura e simples da proposta orçamentaria do governo, já approvada pela Camara e poude obtel-a integralmente da maioria do Senado, apoiando a situação conservadora. A minoria liberal, oppoz-se comtudo por despique á concessão de um credito para o prolongamento de uma estrada de ferro do Estado e declarou que dos debates interminaveis passaria ao emprego da obstrucção parlamentar, recorrendo á falta de quorum. Sentindo que lhe faltava a confiança da Corôa — deu-se isto em 1870 —, o presidente do Conselho apresentou ao Imperador a demissão collectiva do gabinete, que foi acceita, chamando D. Pedro II o marquez de São Vicente, com quem se occupava desde algum tempo da necessidade inadiavel de estancar a fonte que restava de escravidão no Brazil.
Na guerra do Paraguay igualmente se fez sentir a intervenção imperial, havendo quem censure D. Pedro II por haver levado a campanha até a morte de Lopez e a quasi destruição da republica, ainda que sem tirar partido da derrota para engrandecer territorialmente o Imperio ou impôr aos vencidos condições humilhantes e deshonrosas. Houve, com effeito, um momento, ao que parece, em que Lopez se resignaria a demolir a fortaleza de Humaytá ou mais precisamente as baterias que defendiam a passagem do rio Paraguay e contra as quaes se tinham esforçado durante mais de dois annos as armas dos alliados; a admittir a livre navegação fluvial e acceitar as fronteiras propostas e a pagar as despezas da guerra, comtanto que permanecesse no poder, o que aliás constituia uma aspiração patriotica do povo paraguayo que se congregara em volta de sua pessoa para defender o solo nacional. O Imperador, que não tinha fraco algum pelo heroismo militar, não se deixou arrastar pela admiração do ingente sacrificio que tantas sympathias suscitava nos que contemplavam a lucta do fraco contra o forte e só se contentou com o desapparecimento do dictador que sonhara com uma corôa platina e nutrira para alguns a ambição, que D. Pedro II nem admittia como verdadeira, de desposar a Princeza Leopoldina do Brazil.
Os presidentes de Conselho, uma vez cahidos do poder, eram os primeiros a dar livre curso ao que elles chamavam o verdadeiro motivo da sua renuncia e que se cifrava quasi invariavelmente na vontade imperial. Alguns mais atreitos ás instituições vigentes, mais genuinamente conservadores, mais sinceramente monarchistas, como Itaborahy, usavam de maior reserva e em publico declaravam razões frivolas, frequentemente o cançaço de alguns dos ministros, mas esses mesmos confessavam baixinho que o «poder pessoal» pesava demasiado sobre a administração e arrefecia o zelo dos collaboradores do soberano pelo regimen politico constitucional que era o unico a adaptar-se aos costumes, ao desenvolvimento material e moral e á integridade do Brazil. Si Itaborahy não accentuava mais o seu aggravo é porque não queria trazer uma acha mais — já bastantes as havia — para a fogueira preparada queimar e onde se pensava consumir até os alicerces o edificio da monarchia representativa. Seu bem entendido patriotismo vedava-lhe carregar mais material proprio para a combustão. Outros não agiam com a mesma isenção e a mesma discreção. José de Alencar, que no gabinete Itaborahy occupara a pasta da Justiça, tornou-se adversario, pode até dizer-se inimigo de D. Pedro II porque este lhe ponderou, ao solicitar Alencar a acquiescencia imperal, habitualmente impetrada pelos ministros da Corôa em semelhantes circumstancias, para apresentar-se candidato ás eleições senatoriaes na sua provincia, que outros homens havia no Ceará mais antigos na politica, aos quaes inspiraria temor sua qualidade de membro do gabinete, e não sem razão, dada a florescencia da pressão official. Alencar, irritado, demittiu-se para emprehender a campanha sem apoio official. Conta-se que a causa da desconfiança bruscamente manifestada pelo Imperador n'essa occasião foi o facto de Alencar, como ministro da Justiça, haver n'aquelles dias destituido o chefe de policia do Pará, o qual, no exercicio das suas funcções, descobrira e denunciara ligações entre criminosos do Pará e habitantes do Ceará que eram influencias eleitoraes. O chefe de policia queixou-se a D. Pedro II, que benevolamente escutava todas as reclamações e não tinha indulgencia para os casos de corrupção e de violencia nas eleições, apezar de julgar quasi todo o seu pessoal politico capaz de participar em vinganças e desacatos politicos.
Severo para com os peccados dos que deviam dar o exemplo de justiça e do escrupulo administrativo, era magnanimo para com as idéas e poude com justo orgulho dizer nos seus ultimos dias de governo que nunca fôra obstaculo ás idéas adeantadas. Escreve um elevado funccionario da Republica que «D. Pedro II ainda fez mais do que conservar o throno n'um paiz de aspirações republicanas, porque permittiu que a tendencia democratica se desenvolvesse e criasse raizes profundas, assentado o seu throno sobre as solidas columnas da Justiça, da Clemencia, da Lei e da Democracia». Na terceira e ultima phase da ordem civil, de 1878 a 1889, o Imperador, por uma evolução natural do seu governo ou pela desillusão de conservar para a sua successão o apanagio da sua dynastia, adheriu ao radicalismo constitucional e em lugar de fazer frente ás difficuldades politicas, ou ladeal-as, contando com o tempo, cedia; chegou mesmo a capitular. Na questão militar, que tão funesto influxo teve sobre a fraca desciplina do exercito e, visando firmar os direitos das classes armadas, de facto conduziu ao desmoronamento do velho regimen e á preponderancia militar na organização do novo, sopitada muito embora pela tradição de civilismo do paiz, D. Pedro II não reagiu e portanto de algum modo transigiu. Na sua repugnancia á espada como instrumento do governo e comquanto não fosse um jurisconsulto, enxergou no recurso judiciario a melhor arma de defesa da unidade moral, uma vez que a missão da Corôa fosse dada por finda pelos que corriam atraz de uma miragem republicana e federativa. Não que a monarchia fosse incompativel com a federação, já que ao federalismo, isto é, ao programma dos exaltados de 1831 se voltava, depois de percorrido um largo cyclo de ordem e de auctoridade, e ao systema representativo de novo se deparava o seu modelo avançado. A auctoridade abrira gradualmente lugar para a liberdade. Em pleno consulado conservador, sob o gabinete Itaborahy, sendo ministro do Imperio Paulino de Souza, filho do visconde do Uruguay, o auctor da lei reaccionaria de 3 de Dezembro de 1841, a Camara approvou uma reforma desta lei, satisfazendo até certo ponto a opinião, pois que reduzia ou coarctava o arbitrio da policia, e facultava uma garantia mais efficaz aos direitos civis.
A monarchia, que unificara o paiz, quasi o deixou federalizado, alguns dos nossos estadistas julgando que seria o meio mais opportuno de evitar a Republica, que estava servindo de norte á agitação do espirito publico e que, uma vez implantada, não trouxe á nação uma parcela mais de liberdade, antes lhe tem subtrahido algumas. Nos ultimos annos do seu reinado, mesmo porque as forças physicas o iam trahindo, o Imperador não mostrava o menor apego ás suas prerogativas. Os presidentes de provincias perderiam todo caracter de prefeitos governamentaes mandados a agenciar eleições, mas tambem o Senado, escolhido a dedo, ia deixar de ser o patriciado politico que impressionava os barbaros pela sua dignidade. D. Pedro II parecia cada dia mais apegado á sua realeza scientifica do que ao seu poder imperial: sua tolerancia exemplar e de todos os tempos ia ao extremo para um monarcha de não maldizer das republicas e ao objectivismo digno de um espirito budhista de analysar os argumentos do ponto de vista dos adversarios, porque o contrario seria um subjectivismo despotico do pensamento. Não merecia o titulo de republicano theorico porque, melhor do que isto, o era na pratica. Ser indifferente aos ataques e, peor ainda, aos juizos iniquos; entreter com espantos de outros soberanos, relações com inimigos das instituições, de dentro e de fóra do paiz, nas quaes revelava o supremo talento de não comprometter a sua magestade, era ainda assim menos do que nunca abusar da sua auctoridade, mesmo porque a longanimidade para com os que o offendiam era um traço de superioridade, tanto mais louvavel quanto não estavam na sua natureza esquecer. Resentia-se, porem, sem se vingar e este proposito da sua vontade, impondo-se á sua sensibilidade, levava-o a practicar as virtudes verdadeiramente reaes do perdão e da misericordia. A consciencia do dever foi a regra por excellencia da sua existencia, e revestiu-o dessa notavel coragem moral que ficará como um traço imperecivel da sua memoria e sobre o qual descança a suggestão da sua grandeza de homem e de soberano. Elle sabia distinguir nos seus adversarios e mesmo nos seus desaffectos as predilecções politicas e os attributos de caracter: era justo que a posteridade soubesse approximar os formosos predicados que o exornavam e que reunisse sobre o mesmo pedestal o patriota e o justo.
O Brazil que elle deixou, donde foi escorraçado em vida para ser recebido triumphantemente depois de morto, era um Brazil prospero e respeitado. A federação que com elle se haveria organizado com uma magistratura una, teria sido melhor delineada, melhor architectada e não teria sido preciso escorar-lhe a fachada e proteger-lhe os alicerces.
- ↑ Armitage, History of Brazil.
- ↑ Elpidio de Mesquita, Dois regimens.
- ↑ Clovis Bevilaqua, Evolução juridica do Brazil no Segundo reinado, n'O Jornal de 2 de Dezembro de 1925.
- ↑ C. B. Ottoni, D. Pedro de Alcantara, Segundo e ultimo Imperador do Brazil, Rio, 1893.
- ↑ Eunapio Deiró, D. Pedro II, no Jornal do Commercio de 5 de Dezembro de 1892.
- ↑ C. B. Ottoni, senador do Imperio, na biographia de D. Pedro II que o Instituto Historico recusou, quando apresentada ao concurso aberto por essa associação, insiste muito n'essa aridez do coração imperial, que é desmentida pela sua generosidade e caridade.
- ↑ A cultura intellectual do Imperador, n'O Jornal de 2 de Dezembro de 1925.