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O Imperio brazileiro/X

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CAPITULO X
O Imperio e a politica exterior


A Grã Bretanha nunca exerceu sobre o Brazil a especie de protectorado que sob o disfarce de alliança de ha seculos exerce sobre Portugal, encontrando n'uns tempos certa resistencia, n'outros maior docilidade. A verdadeira razão da falta de reconhecimento do governo de D. Miguel, herdeiro natural da corôa, está na sua relativa independencia. Gozou, porem, aquella nação no Imperio de privilegios que fazem pensar nos que as potencias occidentaes da Europa impuzeram no Oriente com o regimen das capitulações. Em virtude do tratado de commercio de 1827 não era licito ao Brazil augmentar os direitos de importação de 15 por cento, estabelecidos sobre as mercadorias inglezas mesmo quando fossem augmentados sobre as mercadorias d'outras procedencias. As presas effectuadas por contrabando de escravos eram a começo julgadas por commissões mixtas anglo-brazileiras, com séde no Rio de Janeiro e em Serra Leôa, na costa d'Africa, mas, ao passo que os cidadãos brazileiros eram sujeitos na Inglaterra aos tribunaes ordinarios, as causas civis e criminaes dos subditos bratannicos eram no Brazil da alçada privativa de um juiz conservador britannico, escolhido pelo governo inglez d'entre os desembargadores brazileiros. A missão Ellis, em 1842, pretendeu mesmo, posto que sem resultado, porque o sentimento publico se lhe oppoz fortemente, obter a creação d'um tribunal mixto para os litigios occorrentes no Imperio entre inglezes e brazileiros e entregar o julgamento dos navios negreiros apresados sómente a magistrados britannicos. Em troca promettia o diplomata que o seu governo concederia favores especiaes ao commercio nacional na Grã Bretanha.

A opposição politica contra toda nova convenção, especialmente dirigida contra o ministro dos negocios estrangeiros Aureliano de Oliveira Coutinho, determinou a organização em 1843 do primeiro gabinete em que Carneiro Leão (Paraná) foi figura preponderante, com um pessoal todo differente do anterior gabinete, minado por desintelligencias e desconfianças entre alguns dos seus membros. O tratado de 1827 tendo caducado em 1844, o governo imperial poude occupar-se das suas necessidades financeiras elevando as taxas de importação sobre as manufacturas estrangeiras sem distincção, o que foi obra do ministerio que succedeu ao de Cameiro Leão, mas não poude impedir a desforra britannica do mallogro da missão Ellis.

Foi o caso que o Secretario d'Estado dos negocios estrangeiros, lord Aberdeen, apresentou e obteve a adopção do bill que traz na nossa historia o seu nome e mercê do qual foram abolidas as commissões mixtas anglo-brazileiras; transferido exclusivamente para os tribunaes britannicos o julgamento dos navios negreiros, cujos capitães e tripulantes passavam a ser considerados como piratas e como taes tratados pelas leis britannicas, e auctorizados os cruzadores britannicos a não respeitarem nem as aguas territoriaes nem sequer o solo brazileiro na sua perseguição do trafico africano.

O resentimento da população brazileira foi muito vivo por essa offensa estrangeira, a maior, aliás, jamais feita aos seus brios de nacionalidade e procurou-se mesmo boycotar as mercadorias inglezas. O bill Aberdeen, que o seu proprio auctor qualificava de argelino, destinado a gente barbara, azedou todo o intercurso diplomatico entre os dois paizes até que veio o rompimento de 1863, comquanto a influencia britannica se fizesse sentir directa e indirectamente na politica domestica para assegurar a extincção definitiva do trafico, realizada pela lei de 14 de Novembro de 1850. Tornaram-na effectiva a perseguição, prisão e julgamento dos seus transgressores, assim annullando a propria acção do governo brazileiro a tão discutida lei de excepção internacional. Até então a vigilancia dos cruzadores britanicos tinha ido de encontro á resistencia unida dos senhores de escravos, dos traficantes negreiros e das auctoridades, contando todos com a benevolencia do governo imperial que os officiaes da real marinha ingleza desafiavam e humilhavam, exercendo em terras violencias contra as pessoas suspeitas de connivencia no trafico e levando o atrevimento até atirar sobre as fortificações do littoral.

De começo o Imperio tinha contado muito com a sympathia britannica porque a scisão do Reino Unido favorecia os interesses commerciaes inglezes, e da Inglaterra se importou o constitucionalismo como systema de governo; mas a tendencia de approximação politica foi mais pronunciada para o lado da America do Norte. Das republicas neo-hespanholas distanciavam o Brazil antipathias peninsulares herdadas e transplantadas e prevenções filiadas na sua natureza imperial que parecia prenunciar absorpções e emulações.

Os Estados Unidos não levaram a mal que o Brazil se tornasse independente sob a forma monarchica, mesmo porque a nossa monarchia não pretendeu fazer causa commum com as européas no sentido reaccionario e antes adheriu expressamente ao «systema americano», que pode comportar variantes nas suas unidades. A monarchia foi a formula da cohesão nacional, mas o seu espirito era e se queria que fosse genuinamente constitucional. Quando o temperamento voluntarioso do primeiro imperador deu ao regimen um feitio auctoritario, e os interesses da sua dynastia em Portugal o arrastaram para o campo de lucta na Europa, o Brazil deu mostra de querer desviar-se um quasi nada da rota marcada pela doutrina Monroe, mas não passou de uma nuvem no horizonte internacional. Apezar de algumas controversias, mesmo irritantes, relativas a presas maritimas, franquia fluvial e outros assumptos do ramerrão diplomatico, as duas grandes uniões do Novo Mundo, a americana e a brazileira, entenderam-se sempre perfeitamente e não houve melhor agente dessa «entente cordiale» do que D. Pedro II. A clausura do Amazonas foi apenas prolongada mais do que convinha ao pavilhão americano, mas não determinou propriamente ultrajes.

Pelo contrario, a sombra do bill Aberdeen, ameaça constante de intervenções contra uma soberania estrangeira, se projectou sobre todas as relações entre Inglaterra e Brazil. A Inglaterra envolvia suas reclamações n'uma vestimenta arrogante, e o Brazil cada vez experimentava maior desagrado. O visconde de Jequitinhonha, que era conhecido pelo seu desembaraço na tribuna parlamentar, não hesitara em empregar no Senado esta linguagem: «A Grã Bretanha quer exercer uma omnipotencia, quer dominar o Brazil; quer que este reconheça um patronato vergonhoso, indigno de nós, e que deve merecer da nossa parte a mais forte, energica e desmedida resistencia». Alguns annos depois, quando o caso do Trent e dos enviados da Confederação, tirados á força pelos federaes de bordo d'aquelle paquete britannico, levou a Inglaterra e os Estados Unidos ao ponto quasi de guerra, o governo de Londres pensou na utilidade que lhe adviria de cultivar boas relações com o Imperio. Em caso de hostilidades como as que estiveram para romper, confessava lord Malmesbury no Parlamento, o Brazil seria para a Inglaterra no Atlantico o que seria a Sardenha no Mediterraneo. Antes do incidente anglo-americano da guerra de Secessão, em que a Inglaterra favoreceu quanto possivel a Confederação, o aspecto das coisas não deixava pensar na necessidade da cordialidade anglo-brazileira que o incidente Christie pelo mesmo tempo compromettia gravemente.



Nos rascunhos das cartas ineditas do barão do Penedo, ministro plenipotenciario do Imperio em Londres durante mais de um quarto de seculo (de 1855 a 1888), com um intervallo de poucos annos, aos politicos mais importantes do tempo no seu paiz, de quem elle havia sido collega na Academia de Direito e na Camara antes de acceitar a missão dos Estados Unidos, encontra-se frequentemente a impressão da desconfiança e da queixa nutrida pelo Brazil, da attitude britannica[1]. «Sob pretexto das nossas velhas faltas (que foram numerosas) a legação britannica tem assumido um tom de censura, de policia, de dominio insupportavel, escrevia elle a Silva Paranhos (Rio Branco) a 6 de Maio de 1856... Não ha mais negocio algum, por mais ridiculo que seja, que não nos valha uma injuria por parte da legação britannica. Casamentos mixtos, detenções policiaes, tudo é objecto para uma nota, que é sempre insolente».

O bill Aberdeen não fôra ainda revogado, como o desejava o governo imperial, e Penedo, que chamava aquelle bill «a cabeça de Medusa» não sabia muito como tratar do assumpto. «Até aqui me abstive de fallar n'essas materias com lord Palmerston por multiplas razões. Porque fazel-o? Esse diabo de homem é um Mephistopheles negrophilo, que por ninguem se deixa convencer, insolente, intratavel quando se lhe falla de pretos». Em 1860 elle assim resumia a situação n'uma carta a Sinimbú: «Para abrogar o bill Aberdeen falla-se de um tratado de commercio, mas nós não o queremos; propõe-se uma convenção para julgar as proclamações por motivo de presas por meio de uma côrte mixta, com séde no Rio; apenas se começa executal-a, é suspensa escandalosamente e sob pretextos frivolos; ao mesmo tempo se expede essa velha raposa de Christie para atormentar-nos com a abertura do Amazonas, a solução da questão dos direitos de nacionalidade e de funcções consulares; por outro lado se procura fazer-nos a bocca doce lisonjeando o nosso amor proprio mediante um projecto de allianca permanente para os negocios do Prata».

Em 1859 a França e a Inglaterra tinham proposto uma mediação officiosa aos governos da Confederação Argentina e da provincia de Buenos Ayres, isto é, a Urquiza e a Mitre, e o Foreign Office pensava agrupar-lhes o Brazil «certamente, escrevia Penedo a Sinimbú, ministro dos negocios estrangeiros do gabinete Angelo Ferraz, com o fim de nos algemar e impedir de ter uma politica fóra dos interesses europeus». Penedo entretanto não acreditava muito n'aquella mediação, que aliás dependia dos belligerantes, e antes julgava ser o boato destinado a acalmar os portadores de titulos de Buenos Ayres e os especuladores da Bolsa.

O negocio Christie, do nome desse diplomata inglez que delle foi directamente responsavel, é o mais desagradavel, porventura, que tem transitado pela chancelaria brazileira. O barão do Penedo dava uma informação exacta sobre a personalidade do ministro britannico quando o qualificava de «extraordinario individuo, que aprendeu a diplomacia no territorio de Mosquito», onde de facto esteve acreditado e deu que fallar.

A questão Christie compõe-se de dois incidentes differentes, sómente occorridos simultaneamente e que por isso apparecem juxtapostos. Entre a legação britannica e o nosso ministerio dos negocios estrangeiros houvera troca de correspondencia bastante aspera a proposito de uma barca ingleza, por nome Prince of Wales, que naufragara num ponto deserto da costa do Rio Grande do Sul e cuja carga, declarava a legação, fundada nas informações do consul britannico, fôra pilhada, havendo mesmo suspeita que tripulantes tinham sido assassinados. O inquerito das auctoridades brazileiras estabeleceu que com effeito se dera crime de roubo dos salvados, isto é, dos caixões que as ondas atiraram sobre a praia, commettido por malfeitores desde então refugiados no Uruguay e cuja extradição fôra solicitada, mas que não se encontrava indicio algum de homicidio. O ministro Christie, sem aguardar a resposta decisiva do governo do Rio de Janeiro, exigiu que um agente britannico tomasse parte no processo intentado e reclamou uma indemnização. Estava neste ponto a controversia quando sobreveio o outro incidente, provocado por trez officiaes da marinha de guerra britannica, da fragata Fort, que, á paizana e em completo estado de embriaguez, tinham desafiado todo um posto policial e passaram a noite no xadrez com companheiros pouco desejaveis. Uma vez reclamados pelo vice-almirante, chefe da divisão naval, foram postos em liberdade sem que se lhes instaurasse processo. O ministro Christie julgou, porem, indispensavel pedir satisfacção pelo ultraje de que tinham sido victimas seus compatriotas, passando das recriminações ás ameaças.

Nas suas cartas particulares ao marquez de Abrantes, ministro dos negocios estrangeiros, o barão do Penedo não cessava de emittir a opinião de que Christie era de temperamento irascivel e que tinha pessoalmente em vista prestar serviços relevantes em beneficio da sua carreira, mas que entrava nos planos do governo britannico «coagir-nos e mortificar-nos» para obter um tratado de commercio. O naufragio da Prince of Wales deu-se no mez de Junho de 1861 e o caso dos officiaes do Fort no mez de Junho de 1862. A 5 de Dezembro de 1862 recebia Abrantes um ultimatum de Christie, exigindo a indemnização previamente por elle arbitrada para o negocio do roubo da carga, e, pelo que dizia respeito á prisão dos trez officiaes, o castigo rigoroso da sentinella pelos mesmos insultada, a demissão do alferes que os recolhera ao xadrez, censuras ao chefe de policia da Côrte e ao seu sub-delegado e plena satisfacção pelo ultraje.

O prazo para a execução do ultimatum expirara a 20 de Dezembro: a 31 navios de guerra inglezes apresavam cinco embarcações mercantes brazileiras empregadas no commercio de cabotagem, quando se approximavam da barra para entrarem no porto do Rio de Janeiro.

Uma vez consummada a affronta á nação, Christie julgou tanto mais prudente declarar que acceitaria o arbitramento para os dois incidentes, quando nenhumas consequencias mais poderiam resultar e a policia e a tropa tinham tido a maior difficuldade em conter o furor da população que queria atacar a legação britannica, o consulado e as casas de commercio inglezas, as quaes fecharam as portas, seus proprietarios occultando-se dos arruaceiros. Consultado a respeito, o Conselho d'Estado resolveu opinar pela acceitação do duplo arbitramento, mas o ministro preferiu pagar immediatamente, sob protesto e invocando a coacção em que se sentia, a indemnização pela barca naufragada e saqueada, a qual foi fixada pelo proprio Christie em £ 3.200.

A chancellaria brazileira entendia, aliás, que não assentava á dignidade do paiz empregar arbitros na solução de questões tão mesquinhas, que versavam exclusivamente sobre interesses pecuniarios e não boliam com a honra nacional.

O outro incidente foi, porem, submettido ao arbitramento do rei Leopoldo I da Belgica por uma convenção assignada no Rio a 5 de Janeiro de 1863. A decisão foi dada a 18 de Junho do mesmo anno e foi favoravel ao Brazil, si bem que não fosse completa a satisfacção que nos era devida dessa conclusão. A hypothese de uma provocação brazileira foi de todo arredada pelo arbitro e ficou reconhecido que as auctoridades do Imperio tinham todas ellas cumprido seu dever, e mesmo que o não tinham cumprido por inteiro porque puzeram em liberdade os officiaes da marinha de guerra britannica sem darem andamento ao procedimento legal que devia seguir-se. O governo imperial não poude comtudo obter qualquer reparação, como a reclamou do governo britannico, pelos actos de verdadeira prepotencia praticados pelo seu agente diplomatico e pelo vice-almirante em plena paz, nas aguas territoriaes brazileiras, com violação de todos os tratados e de todos os principios do direito das gentes. Navios de guerra britannicos não podem errar ou peccar e portanto nenhuma indemnização foi concedida pelos prejuizos occasionados por aquellas iniquas represalias contra a nossa marinha mercante. Lord John Russell avocou toda a responsabilidade do proceder dos agentes do seu governo, declarando que tivera unicamente por designio obter seguranças para a propriedade e vidas dos subditos britannicos que tivessem a desventura de naufragar na costa brazileira, ao mesmo tempo que forçar o respeito devido ás pessoas dos officiaes da marinha real. Seguiu-se entre os dois paizes um rompimento de relações diplomaticas, ao qual puzeram cobro os bons officios da legação portugueza em Londres, depois de haver o governo imperial recusado um primeiro offerecimento de mediação da parte do rei de Portugal D. Luiz, sobrinho de D. Pedro II, pela boa razão de que a iniciativa de uma conciliação deve emanar do offensor e não do offendido. O governo britannico acabou, com effeito, por tomar tal iniciativa e acreditou junto ao Imperador o seu ministro em Buenos Ayres, Thornton, que era persona grata por anticipação, tendo-se mostrado favoravel á politica brazileira nas differenças que precederam a guerra do Paraguay. O diplomata inglez foi apresentar suas credenciaes no acampamento mesmo de Uruguayana, onde D. Pedro II acabava de receber a rendição do corpo de exercito paraguayo, composto de 12 mil homens, que tentara a invasão e occupação do Rio Grande do Sul.



As questões de politica exterior condensadas sob o epitheto de negocios do Prata podem desdobrar-se em duas cathegorias: o respeito dos principios e dos tratados e as reclamações por violencias e prejuizos, comprehendendo portanto materia de direito internacional publico e de direito internacional privado. De ambos os lados se ouviam queixas contra a indulgencia dispensada aos emigrados politicos, os platinos em terras brazileiras e os rio-grandenses em terras platinas; contra soccorros positivos facultados a rebeldes estrangeiros; contra a participação de forasteiros em discordias de caracter puramente domestico; finalmente por devastações, no decorrer das luctas civis, de propriedades de nacionaes situadas fóra das patrias respectivas, nomeadamente estancias brazileiras na Banda Oriental.

O governo imperial proclamava a cada passo sua neutralidade, mas de facto sua intervenção estava sempre immanente, fosse para defender e manter a independencia e soberania do Uruguay, depois que teve que acceital-a, fosse para garantir a livre navegação dos rios Paraguay, Uruguay e Paraná, indispensavel ás communicações do littoral com o vasto hinterland de Matto Grosso, separado da costa mais ou menos povoada por uma enorme região deserta.

O dictador de Buenos Ayres, Juan Manuel de Rosas, sonhou reconstituir o antigo vice-reinado do Prata, creado na segunda metade do seculo XVIII e que abrangia, alem da Argentina, as actuaes republicas do Uruguay, Paraguay e Bolivia (alto Perú).

O Uruguay deveria ser o primeiro elo d'essa recomposição historica, e Rosas alli encontrou um alliado condescendente na pessoa de D. Manuel Oribe, candidato á presidencia, a quem prestou seu auxilio e que o Brazil naturalmente arredava em proveito do seu concorrente Rivera.

Graças aos soccorros de Buenos Ayres, Oribe chegou a dominar quasi toda a campanha do Uruguay, emquanto a facção contraria se conservava em Montevideo, onde os representantes diplomaticos do Brazil, da França, da Inglaterra e da Hespanha a rodeavam de certo prestigio moral.

A missão á Europa, em 1844, de Miguel Calmon du Pin e Almeida (marquez d'Abrantes) havia estabelecido um accordo de vistas e mesmo de acção com os governos de Luiz Felippe e da rainha Victoria, mas o bloqueio franco-britannico, emprehendido separadamente, não deu o resultado esperado e foi suspenso. O Brazil tinha aliás que attender a um jogo mais cerrado, porque não só tinha que combater a pretenção argentina, de dispor da navegação dos grandes rios meridionaes pelo facto de estar na posse das suas margens inferiores e caber-lhe portanto tal direito, como que vigiar o estado de guerra alem da fronteira, o qual alimentava uma agitação perigosa na provincia apenas pacificada do Rio Grande do Sul (1845) e lesava grandemente os interesses de numerosos brazileiros fixados na antiga Provincia Cisplatina do Imperio e diariamente expostos aos vexames, hostilidades, espoliações e exacções dos partidarios de Oribe.

Rosas acreditara no Rio de Janeiro um agente diplomatico dos mais habeis, D. Thomas Antonio Guido, perito em espionagem, mas o ministro dos negocios estrangeiros do Imperio, Paulino de Souza (visconde do Uruguay) estava perfeitamente á altura de sua tarefa. Entrando em intelligencia com os caudillos das provincias argentinas de Entre Rios e Corrientes, hostis ao predominio de Rosas, no qual enxergavam uma absorpção, porque o seu rotulo federalista dissimulava uma arisca centralização politica, chamou tambem a si os dictadores do Paraguay, cuja soberania fôra reconhecida pelo Brazil em 1844, e da Bolivia, preoccupados em resguardarem a autonomia dos seus paizes, e sustentou pecuniariamente a resistencia da praça de Montevideo. Uma vez que o governo imperial declarou que não mais trataria dos negocios orientaes senão in loco e com os belligerantes, reclamando, porem, sem resultado junto a Oribe plena satisfacção pelas depredações, confiscos e violencias de que cidadãos brazileiros tinham sido victimas, chegando alguns a ser recrutados para o serviço militar do Uruguay, Rosas assumiu uma attitude aggressiva, exigindo por sua vez reparação por uma incursão brazileira no territorio oriental.

Depressa romperam as hostilidades, o Brazil confiando o commando das suas forças, concentradas no Rio Grande do Sul, ao general Caxias, pacificador da provincia, e o commando da esquadra ao almirante Grenfell, um dos companheiros de lord Cochrane por occasião da organização da marinha nacional. Os caudillos de Entre Rios e Corrientes não mentiram á palavra dada; um general uruguayo bandeou-se para o lado contrario; as fronteiras da Bolivia e do Paraguay guarneceram-se de contingentes militares das suas nacionalidades, e as consequencias foram a fuga de Oribe, sem dar combate, e a derrota do dictador argentino pelo exercito alliado, composto de 24.000 homens, dos quaes 4.000 brazileiros, que tomaram parte na batalha de Monte Caseros, travada contra os 20.000 soldados de Rosas, o qual se refugiou na Inglaterra, vindo a fallecer em Southampton apoz um exilio bastante longo, pois que durou até 1877.



A politica de intervenção nunca aproveitou ao Brazil. Em 1827 os unitarios argentinos comprometteram o seu futuro politico annuindo à annexação da Cisplatina e, diante da revolta do sentimento platino, teve o Imperio que renunciar á propria ficção de suzerania que quizera conservar sob pretexto de salvar a independencia da nova nacionalidade, quando ameaçada, ou de salvaguardar a sua cohesão. A Europa, primeiro invocada em 1830 pelo marquez de Santo Amaro, esquivou-se desde então a desafiar a doutrina de Monroe, e por seu lado o Brazil e a Argentina tiveram por um momento um interesse commum — o de evitarem a formação de um Estado composto do Rio Grande do Sul, da Banda Oriental, de Entre Rios e de Corrientes, que seria o começo da desaggregação pratica do Imperio, tanto quanto uma barreira opposta á formação da Greater Argentina. A concordancia era, porem, negativa: no terreno affirmativo recomeçava a divergencia. Apenas a Argentina queria reincorporar fragmentos da fundação politica colonial do vice-reinado, e o Brazil transformal-os em satellites seus.

A intervenção do Imperio contra Rosas não lhe trouxe vantagem alguma territorial, tão sómente a regulação dos seus limites com o Uruguay; antes não fez senão aggravar a desconfiança contra as suas apregoadas ambições, as quaes pareceram revelar-se sem disfarce ou attenuante por occasião da guerra do Paraguay. A America Hespanhola e a Europa raciocinavam logicamente á vista de successivas intervenções operadas e deduziam sua conclusão da desproporção em vigor e em recursos que havia entre o Imperio unificado e immenso, com uma força toda sua, si bem que latente, e pequenos paizes onde grassava uma desordem sangrenta. A suspeita alcançava mesmo a esphera do governo britannico, melhor dito este a partilhava.

Uma carta particular de lord John Russell a um seu compatriota e amigo, escripta no anno de 1859 e que se acha mencionada e até reproduzida na correspondencia do barão do Penedo com seus amigos politicos do Brazil, dizia que estava no interesse da Grã-Bretanha e de todas as potencias maritimas preservarem a paz no Rio da Prata, porque a Inglaterra não nutria designio algum de annexação contra esses territorios, motivo pelo qual não lhe occorria transformar jamais a mediação em intervenção; mas que as intenções do Brazil eram diversas e que delle havia que recear como Estado de raça portugueza, opposto ás republicas hespanholas.

Penedo ajuntava na sua carta, que era de 5 de Novembro de 1859, que tal desconfiança era uma opinião estereotypada no Foreign Office havia muito tempo, e que fôra trazida do Rio da Prata para Londres por lord Ponsonby, o qual desempenhou um papel importante nas negociações que se seguiram á guerra de 1825, de que resultou a independencia do Uruguay, admittida pelo Brazil e pela Argentina, reconhecida e patrocinada pela Inglaterra.

A guerra do Paraguay foi uma consequencia da politica brazileira de intervenção, combinada com o exclusivismo offensivo do segundo Lopez, differente do exclusivismo defensivo do primeiro herdeiro immediato do regimen de isolamento de Francia. Para assegurar o exito de sua combatividade, já dominando a seu talante a navegação do rio Paraguay, já assegurando seu assento entre os chefes das potencias mais fortes da America do Sul, Solano Lopez montara uma machina bellica junto á qual parecia minguada a força brazileira de 16.000 homens, dispersa pelas guarnições das provincias, desajudada de fortificações e de navios. Faltava-lhe apenas o pretexto do rompimento, que forneceu a situação anarchica do Uruguay, prolongando-se depois de 1851. Proseguiram tão sangrentas e desleaes como antes as luctas entre blancos e colorados ― o Brazil apoiando este ultimo partido e o outro sendo-lhe violentamente hostil —, assignaladas por episodios tão repugnantes e deshumanos como o massacre de Guinteros.

Os brazileiros residentes alem da fronteira do Rio Grande do Sul, entre os rios Quarahim e Negro, que sommavam mais de 30.000, entre donos e trabalhadores de estancias, soffreram muito nas suas pessoas e nos seus bens com a desordem resultante da agitação politica e social. Ninguem escapa em taes circumstancias aos elfeitos funestos da epilepsia revolucionaria. Propriedades foram saqueadas, gado vaccum e cavallar roubado, peões recrutados á força para o serviço militar. As queixas repetidas dos seus nacionaes, nos quaes entrava, como sempre acontece em semelhantes occasiões, o elemento da especulação, induziram o governo imperial a despachar para Montevideo, em missão especial, o deputado e ex-ministro José Antonio Saraiva, politico de importancia. Seguia-o uma divisão naval, ao mesmo tempo que uma divisão militar estacionava perto da fronteira.

O Presidente Aguirre, que acabava de entrar em funcções em 1864, procurou, em vez de contemporizar, embrulhar a situação, manifestando-se contrario ao governo do general Mitre em Buenos Ayres e solicitando diplomaticamente o apoio do Paraguay e da provincia argentina de Entre Rios, a cuja frente se achava Urquiza. Foi mesmo a esperança da alliança com Lopez que levou Aguirre a tergiversar com relação não só ás reclamações brazileiras, as quaes se tinham tornado aliás tão precisas e integraes quanto rigorosas e humilhantes, como ao projecto do plenipotenciario imperial de provocar uma quebra da tensão existente, e em seguida uma intelligencia entre as facções em lucta armada. A este projecto tinham adherido o governo de Buenos-Ayres e o ministro inglez Thornton, no seu caracter de representante de uma potencia que figurava a titulo igual entre os que tinham avocado a garantia da independencia do Uruguay.

O offerecimento da mediação conjuncta não produziu entretanto resultado pratico, porque o Presidente Aguirre e seu ministro dos negocios estrangeiros Herrera estavam longe de agir de boa fé e só procuravam retardar as negociações, promptos aliás a desprezar todo ajuste que não pudesse ser finalmente obstado. Este ajuste realizou-se com effeito, sendo assignado a 20 de Junho de 1864 por J. A. Saraiva, Thornton, o ministro dos negocios estrangeiros da Confederação Argentina — Elizalde, o general Flores, chefe da insurreição uruguaya e dois companheiros de Aguirre: baseava-se na plena amnistia e em novas eleições livres, mas não foi executado pelo governo blanco, contra o qual ameaçavam rebellar-se por este motivo seus proprios partidarios e que, para ganhar tempo, tomara uma attitude afoita que lhe permittisse por fim dominar a situação, exigindo que Flores desarmasse em primeiro lugar, licenciasse seus soldados e entregasse as armas e munições de guerra. A verdade era que Sagastume, em missão junto a Lopez, communicara que este offereceria sua mediação ao Brazil, declarando ao mesmo tempo que, no intuito de salvaguardar o interesse do equilibrio politico no Rio da Prata, não consentiria n'uma invasão do territorio oriental por tropas brazileiras.

O plenipotenciario imperial fez frente a esse conluio apresentando um ultimatum a vencer-se no prazo de seis dias para a submissão ás reclamações e respectivas reparações, sob pena de intervenção armada. A nota foi-lhe devolvida sem resposta, o que determinou a partida de Saraiva, demonstrações ultrajantes para o Brazil, o rompimento das relações diplomaticas, o inicio das hostilidades por meio do bloqueio dos portos uruguayos, o apresamento de navios e a marcha militar sobre Montevideo. Estes acontecimentos coincidiram com a queda no Rio de Janeiro do gabinete Zacharias a proposito de um projecto de subsidio a uma companhia norte-americana de navegação mercante, e com a organização do ministerio de côr liberal mais pronunciada presidido pelo conselheiro Furtado, então presidente da Camara. Saraiva, considerando sua missão terminada, deu sua demissão e o Imperador recommendou Paranhos (Rio Branco) como seu successor junto aos governos do Rio da Prata.

O novo plenipotenciario ainda tentou recorrer á conciliação, no intuito de poupar ao Uruguay vexames e humilhações que concitariam contra o Brazil todos os odios orientaes. A solução diplomatica de Rio Branco, querendo retirar do Paraguay um alliado incondicional, aberto ou disfarçado, sobrepujou a solução militar representada e preconizada por Tamandaré, embora a convenção de 20 de Fevereiro de 1865 fosse desauctorada pelo governo imperial. Não podendo obstar ás manifestações de apoio dadas por Lopez, Rio Branco vira-se forçado a ractificar as instrucções bellicosas expedidas pelo seu predeccessor, ao mesmo tempo que reconhecia ao general Venancio Flores, chefe da revolução colorada, a qualidade belligerante.

As hostilidades locaes não podiam ser de longa duração, dada a desigualdade das forças. O acto mais importante fôra, a 2 de Fevereiro, o bombardeio seguido da tomada de Paysandú, sobre o rio Uruguay, bloqueado fluvialmente o porto, sitiado por terra e valentemente defendido por cerca de mil homens, cujo commandante, Leandro Gomes, foi barbaramente decapitado pelos soldados da facção contraria em castigo das suas proprias atrocidades. Toda a Republica Oriental — Mercedes, Salto, Montevideo — depressa cahiu em poder dos alliados brazileiros — colorados, ao mesmo tempo que Lopez se decidia a prestar auxilio ao governo de Aguirre, começando por capturar e annexar á sua esquadra um navio mercante brazileiro que se dirigia para Cuyabá. Tripulação e passageiros, entre elles o presidente nomeado para a provincia de Matto Grosso, coronel Carneiro de Campos, foram feitos prisioneiros. Não contente com esta violação do direito das gentes, Lopez destacou uma esquadrilha e uma columna de tropa de linha, de 6 a 7 mil homens, para assenhorearem-se da provincia de Matto Grosso, empreza das mais faceis, mas que acarretava a vantagem de distrahir para aquelle interior longinquo a preoccupação da defesa nacional. Por fim, um corpo de exercito forte, de 12.000 homens, foi mandado invadir a provincia do Rio Grande do Sul por Itaqui e dirigir-se em seguida para Montevideo, onde se juntaria ao partido blanco.

Lopez não foi comtudo o unico a attentar contra o espirito pelo menos do direito das gentes. Auxiliando uma revolução no Uruguay, o governo imperial commettia uma intervenção, embora procurasse justifical-a, e desrespeitava a neutralidade. A intervenção paraguaya, offensiva como se tornou da nossa soberania, não era fundamentalmente mais illegal. Si o Paraguay, nos seus conchavos com Aguirre, procedeu secretamente, o Brazil tambem assim procedera, tendo firmado, em 1859, um convenio secreto, ainda que temporario, com a Confederação Argentina pelo qual esta nos facultava a livre passagem pelo territorio de Corrientes no caso de guerra com o Paraguay. Verdade é que o Paraguay sustentava uma doutrina obsoleta e anti-progressiva, qual a clausura de rios de curso commum a varios paizes.

Escolhendo para o ataque o momento em que estava preparado e em que lhe parecia achar-se o inimigo pouco disposto a medir-se em longa guerra, o Paraguay apenas fazia seguir os principios politicos europeus. A independencia de Corrientes, Entre-Rios e Rio Grande do Sul dos laços que prendiam esses territorios á Argentina e ao Brazil teria sido um golpe de mestre... si se houvesse realizado. A traição é, porem, inseparavel da guerra e, como dizia o marquez de Pescara ao legado papal, é impossivel aos homens servirem Marte e Christo ao mesmo tempo. A presumpção de Lopez com relação á sua superioridade militar era entretanto tamanha que não hesitou em romper igualmente com a Argentina, que lhe recusara, invocando os deveres da neutralidade, a permissão de atravessar Corrientes para penetrar por este outro lado na Republica Oriental. Despachando um exercito de 24.000 homens para forçar a passagem, Lopez, como vimos, contara erradamente com a collaboração de Urquiza.



Foi semelhante aggressão temeraria que deu origem ao tratado da triplice alliança, negociado e assignado em Buenos Ayres pelo terceiro plenipotenciario brazileiro, o deputado liberal Francisco Octaviano. Rio Branco fôra destituido porque tendo presidido á capitulação de Montevideo, não fez figurar no tratado publico de pacificação entre blancos e colorados, mediante o qual Flores foi investido do governo interino, devendo seguir-se uma nova eleição, as clausulas relativas ás indemnizações brazileiras. O plenipotenciario imperial exigira comtudo de Flores este compromisso por um acto separado e reservado versando sobre a liquidação das antigas reclamações e o castigo dos auctores dos recentes ultrajes. Afigurara-se-lhe todavia o mais urgente e necessario encerrar todas as negociações pendentes sem suscitar outras difficuldades ou levantar novos obstaculos, com o fim de estabelecer em Montevideo um governo amigo e alliado que pudesse ser de valia para o Brazil na guerra que se annunciava.

Ninguem comtudo previa que a campanha viesse a prolongar-se por cinco annos. Mitre, o generalissimo dos exercitos alliados por virtude do tratado de 1.º de Maio de 1865, foi o primeiro a enganar-se, vaticinando a tomada de Assumpção dentro de trez mezes. Só occorreu no começo de 1869 pelas forças do duque, então marquez de Caxias. O esforço de resistencia do Brazil, de todo desapparelhado para uma guerra que de algum modo se previa, teve que ser extraordinario. O Imperio já se tinha com effeito por esse tempo desilludido da sua chimera de debilitar a promissora Confederação Argentina por meio da creação de uma potencia rival, senhora do Paraná e do Paraguay, portanto da bacia superior do Prata. Contra Rosas ajudou Urquiza, deixando-se arrastar pela habilidade de Lamas, encarnação dos inimigos de Oribe, e a Carlos Antonio Lopez serviu Pimenta Bueno (marquez de São Vicente) de Mentor, «mais se parecendo entretanto o discipulo com Ulysses do que com Telemaco»[2]. Ao Paraguay prestaram serviço a nossa diplomacia e a nossa engenharia, occupando-se Pimenta Bueno de preparativos bellicos, elle proprio relatando a participação effectiva que teve na elaboração dos planos das defesas de Humaytá e da estrada estrategica do Passo da Patria a Assumpção. Officiaes brazileiros de terra e mar serviram de instructores aos paraguayos e collaboraram com engenheiros militares e navaes europeus nas fortificações nos arsenaes e nos estaleiros onde por fim de contas se preparava a aggressão contra o Imperio. O Brazil não podia aspirar aos fóros de conquistador, mas não queria ver crescer ao seu lado outro gigante. No seu intimo calculava que Urquiza e Lopez se neutralizariam, oppondo um ao outro os seus ciumes de independencia e sonhos de grandeza. Já em 1852 Urquiza fôra seduzido pela diplomacia brazileira com a perspectiva de succeder a Rosas, para o que sabiam os tentadores que lhe faltava o estofo, correndo a Confederação o risco de dissolver-se sob a acção do federalismo rural e de perder a democracia gaúcha a consciencia politica e social do povo. A «petite entente» manipulada pelo Brazil não passou, porem, de uma phantasia que se esfrangalhou de encontro ao progresso argentino. Já em 1856 o Imperio se compromettera a não fomentar a fundação de novas nacionalidades em menoscabo da auctoridade legitima das existentes e com mutilação dos seus territorios tradicionaes. Em 1859 sobreveio a crise argentina da qual derivou para a republica uma maior cohesão.

Á acção imperial podia em rigor assistir a justiça, mas faltava o desinteresse, e o dictador paraguayo, ao protestar contra a intervenção armada do Brazil na Banda Oriental, sentia pulsar por si a sympathia decorrente de um estado d'alma collectivo, europeu e americano. É facto que a intromissão brazileira era muitas vezes solicitada do proprio Uruguay pela facção ameaçada de perder o mando e não contrariava aquella sympathia a circumstancia de serem algumas das controversias originadas em episodios da escravidão.

No Uruguay não havia escravos, mas, mercê do tratado firmado pelo Imperio, cabia-lhe a obrigação de entregar os que viessem do Brazil buscar o agasalho do seu territorio, onde aos respectivos senhores era licito virem buscal-os, protegidos na sua reclamação, que o sentimento de humanidade considerava affrontosa, pelas auctoridades brazileiras agindo independentemente do recurso diplomatico, formula respeitadora da soberania.

De lado a lado escasseava boa vontade, e com os aggravos de nacionaes brazileiros eram correlativos os melindres uruguayos pelo virtual protectorado que sobre elles pesava. A tutela é sempre penosa para um povo brioso, e a questão, ao tornar-se aguda, foi mal encaminhada, não abundando em Saraiva a malleabilidade que sobrava em Rio Branco. Este era, porem, dotado de um descortino largo bastante para medir a inconveniencia de um Greater Paraguay, sem o contrapeso do feudo de Urquiza, constante da região mesopotamica com que o quizera brindar a diplomacia imperial.

O Paraguay jogava com o instrumento de um povo valente até a loucura, passivo até o sacrificio e fanatisado até a inconsciencia. Demais, a diplomacia mental teria porventura capacitado Lopez de que o Brazil e a Argentina, de mãos dadas com tal objectivo, machinavam dividir entre si, para sellarem o seu accordo, as duas republicas menores. No Brazil tanto havia a recrutar soldados como a improvisar esquadra capaz de romper os obstaculos. Os dois gabinetes formados em 1865 e em 1866 — o ultimo gabinete Olinda, em que Angelo Ferraz foi ministro da Guerra, e o terceiro gabinete Zacharias, em que Paranaguá occupou a pasta da Guerra e Affonso Celso a da Marinha — trabalharam com tanta actividade quanto exito a levantar corpos de voluntarios, expedir navios construidos em mesquinhos estaleiros, n'uma palavra organizar a victoria que o numero de gente disciplinada, a audacia conjugada com a ambição, a situação topographica quasi inaccessivel, as mil difficuldades da campanha, tanto fluvial como terrestre, promettiam, senão asseguravam ao Paraguay. Angelo Ferraz, a quem coube a honra de receber em Uruguayana, ao lado de D. Pedro II, a rendição do coronel Estigarribia, permanecera a principio no gabinete Zacharias, accedendo ás vivas instancias do presidente do Conselho, mas dera sua demissão quando, n'um momento de angustia para as forças alliadas, Caxias, seu desaffecto pessoal, foi chamado ao commando em chefe das forças alliadas.



Mitre teve bastantes repugnancias que vencer da parte dos seus compatriotas para entrar n'um accordo que conjugava com os brazileiros os esforços argentinos dirigidos contra irmãos de raça. O Imperio procurando os meios de esmagar com maior segurança a tyrannia de Lopez, obedecia afinal ao instincto de conservação da sua nacionalidade, arredando ou antes abafando uma ameaça aos seus destinos que assumira gravidade; mas ainda proseguiu na sua politica já tradicional de protecção ás duas republicas menores na previsão de perigo mais serio por parte da maior. Mais tarde, na Republica, o barão do Rio Branco, herdeiro da habilidade paterna, quiz accentuar com a concessão ao Uruguay do condominio da Lagôa Mirim a surda hostilidade á Argentina que vinha de 1825, fazendo sobresahir aos olhos do estrangeiro a differença entre o proceder franco do Brazil nessa questão de soberania das aguas limitrophes a intransigencia da republica platina no tocante á jurisdicção das aguas do estuario. Tambem, depois de vencido Lopez, a diplomacia brazileira ajudou em Washington a causa do Paraguay na controversia relativa ao territorio do Chaco, submettida á decisão arbitral do Presidente Hayes. O Paraguay passou a campo de rivalidade entre as duas grandes nações da America do Sul, e esta rivalidade surgiu logo depois da paz, imposta ao vencido com manifesto, posto que officialmente silencioso, desprazer dos outros paizes neo-hespanhoes, que mais desconfiavam da ambição brazileira do que se revoltavam contra as «atrocidades» de Lopez. Para conciliar a Bolivia, o Imperio com ella celebrara em 1867 o convenio que lhe assegurava a posse do Acre e protegeu-a depois, desejando que lhe fosse de preferencia attribuido o territorio litigioso da margem direita do Paraguay acima do Pilcomayo, previamente resalvado.

Os alliados tinham de antemão, pelo tratado de 1.º de Maio de 1865, regulado entre si as questões de limites com o Paraguay e por elle a Argentina fizera jus a extender sua fronteira até a Bahia Negra; mas, argumentando o governo de Buenos Ayres com o generoso e inopinado principio de direito internacional de que a victoria não concedia semelhantes regalias, e tendo ficado estabelecido pelo tratado preliminar da paz que ao Paraguay era dado discutir as pretenções contrarias ao seu interesse e integridade, abriu-se de par em par a porta á desavença. O Imperio entendeu negociar separadamente com o governo provisorio installado sob seus auspicios em Assumpção, garantindo embora aos participantes do tratado de alliança a liberdade de navegação dos rios e as indemnizações de guerra, que ficaram afinal no papel. A Argentina occupara entrementes Villa Occidental e o Brazil, pretendendo tambem repudiar o direito de conquista, consagrou o seu protectorado sobre o Paraguay pelos tratados dictados por Cotegipe com o desplante que Joaquim Nabuco chamou o seu «coup d'éclat». Era a vez do negociador argentino pugnar pelo paiz vencido, julgando uma violação da sua soberania a prohibição de erigir novas fortificações, a qual é corriqueira nas pazes européas. Não era, porem, exaggerado considerar o protectorado brazileiro um prolongamento da guerra pela alliança — na phrase de uma das notas de Tejedor, ministro do exterior da administração Sarmiento — do vencido com um dos vencedores contra o alliado da vespera, quando era facultado ao Imperio manter uma occupação militar indefinida no Paraguay sob pretexto de garantil-o, contra a Argentina evidentemente.

Foram annos esses, de 1869 a 1875, de grande tensão nas relações argentino-brazileiras. O proconsul imperial em Assumpção, que manipulara o governo nominal do Paraguay, fôra Rio Branco, o qual nunca perdera de vista o objectivo da hegemonia no Sul. O conde d'Eu, genro do Imperador, que commandou na ultima phase da guerra — a perseguição de Lopez na região montanhosa do paiz que Burton increpa Caxias por haver descurado como militar, embora talvez com tino politico — não tinha experiencia sinão de caracter bellico. A funcção diplomatica coube a outros, mas o papel superior pertenceu a Mitre, espirito isento de preconceitos nativistas, que na proscripção aprendera a tolerancia internacional e não nutria contra o Brazil as prevenções de Tejedor, nem as de Cotegipe contra a Argentina, as quaes segundo Joaquim Nabuco se equivaliam. Apreciando os tratados de 1872 como um erro do Imperio e não como uma offensa internacional contra a Republica, e julgando satisfactoria a linha divisoria do Pilcomayo com a ilha do Cerrito ou de Atajo, Mitre fazia de algum modo o jogo dos seus adyersarios domesticos, figurando de condescendente, mas certamente servia a causa da paz e da justiça. Tendo com sua missão ao Rio de Janeiro restabelecido a anterior alliança sem sacrificio dos tratados firmados em separado, e sem continuar a fazer arma de combate da não ratificação do protocollo sobre o arrasamento das fortificações paraguayas, o antigo generalissimo dos alliados transportou-se para Assumpção, acompanhando as negociações o plenipotenciario brazileiro Araguaya, o qual sustentou o ponto de vista paraguavo de extender-se o arbitramento até o rio Barmejo.

Joaquim Nabuco, pretendendo aliás salientar a attitude do conselheiro Nabuco de Araujo, seu pai, que se esforçava por manter a concordia, tanto como jurisconsulto como na qualidade de chefe liberal, tratou a politica brazileira do momento de «temeraria». A imprensa taxava a expansão argentina de audaz e o governo estava por traz della. Foi um milagre que não resultasse um rompimento da missão Pejedor ao Rio de Janeiro em 1875, terminada pela partida brusca do diplomata, cujo accordo, negociado em separado com o representante paraguayo, foi rejeitado ainda sob a influencia do prestigio brazileiro. Nesta ultima phase o Imperador, não obstante zelar com o seu costumado afan o pundonor nacional, fez accentuadamente causa commum com Mitre na manutenção da harmonia entre as duas nações. O ultimo acto internacional do Imperio foi a assignatura a 7 de Setembro de 1889 do tratado submettendo ao arbitramento do Presidente dos Estados Unidos a questão das Missões.



É voz corrente no Brazil que a guerra do Paraguay sobretudo aproveitou á Republica Argentina, e até certo ponto é verdade que ella lucrou positivamente com o abatimento de um paiz que politicamente se queria contrapôr á sua expansão, e que sahiu esfrangalhado da tentativa, e com os fornecimentos da campanha — cereaes e carnes, o producto da sua lavoura e da sua criação — durante annos.

Mauá, que foi no Imperio o homem de todas as iniciativas utilitarias e cuja faculté mâitresse era o descortino economico, não enxergou a guerra como favoravel aos nossos interesses e buscou evital-a, elevando-se pessoalmente á pujança financeira internacional e collocando-se no Uruguay como uma estatua de Rhodes diplomatico, symbolizando a grandeza do Brazil e seu predominio platino.

O papel de Mauá na nossa formação foi agora objecto de um trabalho enthusiastico do snr. Alberto de Faria, que o põe a par de D. Pedro II e de Caxias como os trez maiores agentes da unidade nacional. No seu livro, de cujas provas teve a gentileza de facultar-me a leitura, elle mostra o banqueiro intervindo efficazmente na defesa da Cisplatina autonoma contra a absorpção argentina, uma vez a causa de Montevideo abandonada pela França, e assim collaborando na obra de Paulino José Soares de Souza, de impedir a realização do plano unificador de Rosas. A politica de Mauá era a de franca intervenção, e elle proprio desassombradamente declarava repellir a abstenção. «Sou daqueles, escrevia em 1864, que pensam dever o Brazil exercer no Rio da Prata a influencia a que lhe dá direito sua posição de primeira potencia da America do Sul...». Estava pois talhado para agente do nosso imperialismo, e na sua concepção este tinha de buscar-se na conquista economica, operando pelo que hoje se chama a diplomacia do dollar. Sabe-se que tal diplomacia aproveita tambem ao paiz explorado, aproveitando seus recursos e até regularizando sua administração[3]. A diplomacia do patacão teria por ventura evitado a chacina. O progresso material poderia ter desviado a lucta e applicado as energias ao fomento em vez de applical-as á destruição.

A verdade é que o governo blanco do Uruguay tinha numerosas culpas no cartorio, mas que o estado de espirito brazileiro era em 1864 propenso á intervenção armada em favor do movimento revolucionario de Venancio Flores, no qual se alistaram não poucos dos nossos nacionaes que habitavam o Estado Oriental em numero de 40.000, um quinto da população, possuindo propriedades cuja extensão territorial cobria mais de um quarto da Republica. Em semelhante disposição de animo periga o sentimento da medida ou da proporção, e o senso da equidade tende a sossobrar. Si de lado a lado havia aggravos que officialmente eliminavam a neutralidade, a atmosphera platina era rubra e a rio-grandense tinha com ella pontos de contacto que facilmente se restabeleciam. O Brazil, porem, tomado collectivamente, tinha ultrapassado essa phase de barbarie, e a feição imperial representada pelo soberano e pelo sustentaculo militar da ordem civil que foi Caxias, era de brandura e clemencia. Este traço teve o seu quinhão na revolta da opinião contra deshumanidades do quilate da tragedia de Guinteros e mais tarde contra as execuções summarias ordenadas por Lopez. Successos posteriores á republica, que o snr. Alberto de Faria relembra, mostram que no Brazil a influencia da Corôa e especialmente de quem a cingia contava muito nessa demonstração de cultura, que nunca foi, desde 1840 pelo menos, caracterizada pelas represalias e sim pela longanimidade.

O merecimento de Mauá como politico inspirado por negocios de alta monta que redundavam no prestigio e grandeza do seu paiz, foi preferir estribar a acção da diplomacia imperial na paz e desadorar a solução guerreira. As vantagens trazidas pela guerra são facilmente aleatorias e frequentemente fallazes. O juizo do snr. Alberto de Faria teve por isso lucidez ao perscrutar a generosidade, embora haja quem a possa taxar de mais pratica do que idealista, do espirito de larga envergadura, sobretudo n'um meio ainda refractario a uma orientação assim definida, que queria attribuir á sua patria a preponderancia economica no continente, convertendo Montevideo no verdadeiro limite sul do Imperio que deixara de ser com a independencia da Cisplatina e lobrigando com um alcance surprehendente, no Amazonas o escoadouro do Perú cis-andino e da alta Bolivia, e em Paranaguá, com sua vasta bahia, o da baixa Bolivia e do Paraguay. Thiers, na Camara Franceza, ao tempo dos attritos com Rosas e do bloqueio do Prata, notara que Montevideo estava commercialmente «fadado a um desenvolvimento que Buenos Ayres não podia esperar». Os estadistas, por mais conspicuos que sejam, não raro se enganam.

Mauá em 1864 estava com a minoria, que muitas vezes é que tem razão. E, no dizer do seu biographo — pode-se mesmo qualifical-o de panegyrista — a minoria era nesse caso desoladora. A maré da indignação crescera e o banqueiro, si não era o unico a divergir da solução do ultimatum, foi quasi o unico a querer oppôr-lhe o dique do bom senso, desdenhando a accusação de que, si o governo brazileiro deixasse de corresponder aos appellos freneticos de protecção dos seus nacionaes estabelecidos no estrangeiro e alli envolvendo-se em luctas politicas, a razão estava no patrocinio dispensado aos interesses do seu agente financeiro, consubstanciados com os do partido blanco. Nem faltavam da parte do Rio Grande as ameaças separatistas. Mauá achava que o Brazil tinha deveres a cumprir, uma posição internacional a zelar, mas sem exaggero de força dictado por versões exaggeradas. Saraiva levava instrucções que não se conciliavam com este modo de ver, mas poz-se ou antes tratou de pôr-se ao diapasão indicado por Mauá. O desconcerto proveniente cá e lá de instrumentos mais estridentes não o permittiu, entrando Saraiva a ser atacado no Brazil como um agente em demasia indulgente; e por um instante tratou de sel-o, obtendo pela persuasão o que fôra despachado a alcançar pela ameaça. Só lançou o ultimatum quando certo da boa vontade, senão da cooperação da Republica Argentina, onde Mitre encarnava o elemento favoravel, mas Urquiza representava o elemento duvidoso, erguendo-se por traz delle o espantalho de Lopez. Segundo o snr. Alberto de Faria mostra, Mauá foi depois a victima da sua propria attitude politica, aliás irmanada a começo com a do governo imperial[4].

A guerra do Paraguay significou para a Republica Argentina a consolidação da sua unidade, portanto trouxe-lhe uma vantagem positiva e pode dizer-se que vital. Cessou todo o perigo, que começara com Artigas, de ficar subtrahida á influencia de Buenos Ayres a região mesopotamica, e tambem Santa Fé e o Paraguay entrou para sua esphera de attracção, da qual desde a independencia se afastara. Urquiza ligando-se contra Rosas com os adversarios de Oribe em Montevideo, e com o Brazil, cuja obsessão era a reconstituição do vice-reinado platino, converteu-se no eixo da concentração propriamente argentina, da qual Buenos Ayres continuou por algum tempo a ser o elemento dissolvente, querendo ser o elemento predominante dotado do que Urquiza chamava «um veto arbitrario», mesmo porque pelo seu porto transitava todo ou quasi todo o commercio exterior. Nestas dissensões intestinas entrou a figurar como mediador o herdeiro da dictadura paraguaya, o qual inspirou o pacto de São José de Flores, em 1859, por virtude do qual Buenos Ayres entraria para a Confederação Argentina com as bandeiras desfraldadas, «nacionalizando-se a capital historica».

Faltava comtudo um espirito nacional para englobar as partes mais apartadas, que eram o Uruguay e o Paraguay. Este acostumara-se á segregação erigida por Francia em systema, formando o paiz á sua imagem e semelhança, «com duas ou trez das qualidades e todos os defeitos de uma Providencia que em vez de ser divina, fosse humana»[5]. Tal providencia operava pela disciplina social imposta ao povo e que já era uma tradição local jesuitica, e pela vigilancia arguta do Supremo, que na organização independente de Entre Rios e Corrientes enxergava um dos obstaculos ao duplo perigo, portenho e brazileiro.

  1. Borrador emprestado pelo Dr. Arthur de Carvalho Moreira, filho do barão do Penedo e secretario de legação.
  2. Oliveira Lima, Um seculo nas relações internacionaes do Brazil (1822-1922), n'O Estado de S. Paulo de 7 de Setembro de 1922.
  3. Escreveu Alberto de Faria que «seria difficil encontrar nesse periodo que vai de 1857 a 1868 alguma empreza util ao progresso da Republica vizinha em que Mauá não estivesse interessado ou como promotor ou como fornecedor de capital».
  4. A esta parte associa-se no livro a parte financeira, tratada com abundancia de pormenores e rematada de facto pelo abandono pelo governo brazileiro da reclamação diplomatica junto ao governo uruguayo que teria salvado Mauá da fallencia a que se viu coagido em 1878, depois da moratoria solicitada no Rio em 1875. O bom direito do banqueiro e a denegação da justiça por elle soffrida foram objecto de acalorada e habil defesa por parte do ministro plenipotenciario do Brazil em Montevideo, Araujo Gondin, de quem Zeballos fallava com a maior sympathia e deferencia.
  5. Carlos Pereyra, Historia de la America Española, Tomo IV, Las Republicas del Plata, Madrid.