O Imperio brazileiro/XII

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CAPITULO XII
O Imperio e a sociedade


Como Imperio tinha o Brazil uma côrte, mas esta côrte nunca foi sumptuosa, muito menos dissoluta: foi sempre singela e tão virtuosa quanto pode caber na fragilidade humana, ao ponto de ser modelar. Não tinha a severidade militar da prussiana antes ou mesmo depois do imperio, porque Guilherme I não mudou com ser plus que roi. No seu paizanismo, visto as velleidades guerreiras nutridas por D. Pedro I findarem com a desastrada campanha do Sul e a pouca inclinação do paiz pelas aventuras bellicosas, foi simples e frugal, com seus resaibos de intellectualismo. Aliás, o exemplo do primeiro imperador fructificara. Sua abdicação foi tanto a expiação dos seus erros de soberano constitucional, educado n'um meio absoluto, como das suas faltas de particular. Elevando a concubina acima da soberana, determinou uma precoce decadencia do regimen monarchico e justificou muitos dos ataques que lhe foram assacados. Foram precisas toda a sabedoria e todas as virtudes do seu successor, alem do melancholico espectaculo das luctas civis da Regencia, para permittir que o Imperio se prolongasse por meio seculo nas suas mãos. O quadro seguinte, evocado por Timandro (Salles Torres Homem) no seu Libello do Povo — já por si um titulo revolucionario que relembra Hebert e Marat — não se afigurou exaggerado a espiritos que cultivavam o ideal republicano e aos quaes não eram antipathicas as côres vermelhas do jacobinismo. Ouçamos o futuro conservador monarchico: «Preoccupado da sua pessoa, dos seus direitos, das suas paixões e dos seus prazeres, elle (D. Pedro I) não estabeleceu relação alguma entre a ventura dos seus subditos e a sua propria, e isolou-se no meio da nação a mais docil e a mais reconhecida. Como Luiz XIV, fez do seu Eu o Estado, sem entretanto imitar o grande Rei a não ser no despotismo, na pompa, nos validos e nas amantes. Para supprir o apoio moral da opinião que se esquivava, promoveu mais do que nunca o espirito militar, forçando o caracter pacifico e industrioso que deve convir a um povo agricola, habitando um territorio enorme, deserto e sem vizinhos formidaveis. Com as mesmas vistas fez consistir a prosperidade do Brazil, não no progresso das suas artes e da sua agricultura, mas no esplendor fofo de uma côrte apparatosa, para o que era mister fomentar por seducções enganadoras a paixão de um luxo destruidor e recompensar por meio de distincções honorificas aquelles que reduziram á miseria a rica herança de seus pais. Nada faltou ao espectaculo dessa grandeza inerte, apparente e ridicula, nem sequer uma aristocracia de chinellos, alimentada pelo orçamento e cujos brazões heraldicos o povo não podia contemplar sem rir. De tudo isto nem a fumaça se enxergou no dia 7 de Abril: D. Pedro I extendendo os braços em redor de si, só deparou com a solidão, o vazio, as trevas e o desespero.»

As catilinarias são um genero litterario facil e de infallivel popularidade. Eram os marquezes do primeiro reinado aquelles que assim ridicularizavam o titular do segundo reinado. O Libello data de 1848. Em 1853 Timandro convertera-se á conciliacão: seria director do Thesouro, ministro da Fazenda indicado pelo Imperador, visconde de Inhomirim, por fim senador, rompendo o monarcha com o seu gabinete por motivo dessa escolha que constitucionalmente cabia nas suas attribuições soberanas. D. Pedro II dava n'esse caso um dos exemplos mais flagrantes da sua superior tolerancia, a qual foi constante para as faltas politicas, absoluta para as convicções ou opiniões mesmo adversas, e apenas reservada para as faltas de moralidade e os attentados contra a probidade. A honestidade era de rigor. Os homens d'Estado do Imperio, excepção feita dos que eram proprietarios ruraes, não dispunham na sua quasi totalidade de fortuna. Os empregos publicos, mesmo os mais elevados, eram então pouco rendosos, não se conhecendo as muitas «embaixadas de ouro»; a advocacia administrativa era muito fiscalizada pela opinião e sobretudo pela Corôa; a banca usual de advogado não conhecia esses largos estipendios que vão associados com negocios em que o interesse falla mais do que o escrupulo; as collocações commerciaes as mais altas só para o fim do reinado deixaram de ser consideradas misalliances. Certa venalidade que da colonia passara para a Independencia e que não tisnara homens como os Andradas, fôra expurgada: neste sentido a Regencia fizera papel de filtro. A grande ambição do politico era ser senador, posição vitalicia com a qual ficava com o prestigio local intacto na sua provincia — o seu pequeno reino — e com meios de viver senão folgadamente, pelo menos decentemente na côrte. Joaquim Nabuco chama os partidos daquelle tempo «sociedades cooperativas de collocação ou de seguro contra a miseria». O proprio Imperador não era rico: sua lista civil era insufficiente para a representação do seu cargo, por mais modesta que elle a quizesse, e sobretudo para a generosidade do seu coração, que era ilimitada. Ninguem appellava em vão para a sua caridade, que se traduzia por dinheiro ou por auxilio moral.

Tampouco se distinguia pela riqueza a sociedade imperial. Não aproveitava a seus antepassados o ouro das minas.

A opulencia provém nos nossos tempos de grandes combinações industriaes ou de avultadas especulações bancarias, e umas e outras faltavam nesse meio. As transacções tinham uma esphera limitada que dava ensejo eventualmente a lucros, porventura fartos, mas não a accumulações enormes de capitaes. O café não era ainda rei e o assucar já entrava a soffrer depreciação. Um senhor d'engenho com bens — terras e escravaria — avaliados em mil contos era considerado muito rico e o seu numero contava-se pelos dedos da mão. A riqueza era em todo caso de caracter territorial e baseada na instituição servil. Como tal, era essa uma sociedade que conhecia a dependencia, embora politicamente aspirasse ao nivelamento e deste fizesse lemma de combate. Conta-se que um arguto chefe republicano dissera que o Imperio dera ao Brazil a liberdade, mas que a Republica lhe dera a igualdade.

A igualdade data comtudo de antes de 1889 e o Imperio só peccou pelo seu espirito democratico, avesso ao espirito de auctoridade. O que nunca se deu foi subversão das classes, a não ser momentaneamente n'alguns dos episodios revolucionarios, mais politicos no geral do que sociaes. Não seria no Brazil, onde havia escravos, mas não servos, que um rapazito de dez annos, ao que da França refere Michelet, se espantaria, indo ao theatro com os pais apoz o 9 Thermidor, de ouvir os cocheiros das sejes perguntarem: — Não carece de uma carruagem, meu amo? A expressão amo soava pela primeira vez aos seus ouvidos afeitos á linguagem demagogica. A dependencia faz parte da organização social, e sem ella não ha governo possivel. Quando se diz que foi abolida, é porque se disfarça em dictadura de alguns, que entre si disputam a preeminencia.

No Brazil a aristocracia era nominal, ou então de posição. As origens das fortunas particulares não remontavam a favores da Corôa ou possuiam raizes feudaes: representavam a recompensa de esforços individuaes, dos que as desfructavam ou dos seus pais ou avós. Ao mesmo tempo que refinamento se deparava bonhomia. O que os francezes chamam morgue nunca foi um traço caracteristico, a não ser individual. O trato mundano não era desconhecido, apezar da relativa reclusão feminina, a qual foi aliás desapparecendo: tambem a escravidão offerecia aos moços ampla opportunidade para não trabalharem e luxarem, sedentos apenas de empregos publicos.

No tempo da Regencia fallava-se dos sorvetes servidos nas reuniões em casa de Aureliano, e mais tarde foram afamados os saraus do marquez d'Abrantes. Os restos de nobreza vinda com D. João VI, que permaneceram alem mar, e os descendentes dos que na epocha colonial ahi se tinham estabelecido, tinham, porem, ido cedendo o passo a burguezes endinheirados pelo negocio, elemento de natureza fluctuante e não estavel como o agricola. É claro que não havia lugar para grandes pompas nessa sociedade de recursos em summa moderados, nem tampouco facilidades para desmoralização dos costumes.

O Rio de Janeiro entrou a patentear corrupção pelo tempo da guerra do Paraguay. O Alcazar foi o reflexo do Mabille do Pariz imperial, onde os transatlanticos tropicaes se deleitavam com uma ostentação que deu origem ao typo do Brésilien immortalizado pela musica saltitante de Offenbach.

N'esse cosmopolitismo galante se dissolveu a feição nacionalista que até então predominara. Litterariamente esta feição assumira um aspecto convencional e pode até dizer-se falso, embora com raizes que vão longe, que se podem traçar até o seculo XVIII, tendo sido as sementes depositadas no solo tropical decantado por Bernardin de St. Pierre e havendo germinado ao calor solar das paginas fulgurantes de Chateaubriand. O indianismo, em que o nosso romantismo arvorou o nacionalismo brazileiro, foi aliás commum a todo o continente, mesmo aos Estados Unidos, onde inspirou Fenimore Cooper, mas significou sobretudo falta de pensamento critico. O factor indigena era, dos trez que compuzeram o producto nacional e cuja valia e contribuição Sylvio Romero poz em relevo, desenvolvendo a reflexão inicial de Martius, na realidade o mais debil e apagado, mas tambem o que dava azo a legendas mais captivantes. O elemento mais robusto e fecundo era o portuguez, representado pela classe media, onde se notavam a camada dos commerciantes vindos do reino, desprezivelmente tratados de marinheiros, e a camada, branca ou mestiça, local, formada pelos roceiros ou lavradores. Viviam estes na dependencia social dos grandes proprietarios, como os outros no terror nunca esvaido dos negros e mulatos da ralé, o que entretanto não os impediu de subirem em fortuna, posição e prestigio, tanta era sua actividade, assistida por firmeza d'animo. A sua prole foi o arcabouço politico do Brazil imperial, verdadeiro melting-pot no Novo Mundo de populações estranhas umas ás outras e exoticas, que a miscegenação ia caldeando. No meado do seculo as estatisticas brazileiras accusavam 2 milhões de brancos para mais de 5 milhões de pretos e mestiços. Os viajantes estrangeiros pasmavam diante da variedade de typos trazidos pelos cruzamentos.

A classe superior, composta de agricultores — fazendeiros ou senhores d'engenho — tinha pela sua ascendencia e pelos seus gostos, adrede cultivados, um refinamento que não era inteiramente o europeu porque encerrava certa modalidade peculiar aos tropicos e ás terras de escravaria, mas que comportava requintes de luxo e boas maneiras. Não se pode dizer em rigor de urbanidade porque esta se encontrava tanto quanto senão mais do que na côrte em centros provincianos, Pernambuco em primeiro lugar, depois Bahia e São Paulo, e nestes centros nos grandes estabelecimentos ruraes. Aos sertões chegavam mal a disciplina social e a auctoridade do governo. Seus habitantes eram rebeldes a tudo quanto não fosse a acção dos seus instinctos de vingança e da sua arisca independencia.

Essa idiosyncrasia particular do sertanejo servia de contrapeso ao regimen de espirito feudal que vigorava entre os matutos, sem que lhes entibiasse entretanto a fibra combativa. Mesmo na cidade, quer dizer na praia, qualquer dos moços que recitavam ao piano nas partidas em que circulavam nas pesadas bandejas de prata delicadas gulozeimas, e se marcavam danças graciosas, com facilidade pegava n'um trabuco na era das revoluções. Os padres-soldados não são uma innovação da ultima guerra. Vigarios que pela manhã celebravam o sacrificio incruento, não vacillavam pela tarde em obedecer ao appelo do clarim guerreiro nas luctas politicas.

Sob a diversidade dos seus typos, correspondentes á variedade das suas paizagens, o Brazil apresentava sob o Imperio uma notavel homogeneidade de aspectos sociaes, porque os elementos capitaes da raça, da religião, da lingua, da cultura, lhe eram communs em toda sua extensão. Tradições, costumes, idéas, não divergiam portanto essencialmente de uma para outra provincia. As proprias superstições traduziam identica origem, lusitanica, tupy ou africana.