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O Inferno (Auguste Callet)/Introducção

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INTRODUCÇÃO

DOGMAS HEBRAICOS

É crença anterior á prégação de Christo, quanto ao texto, mas diversa do espirito do Evangelho, a eternidade das penas. Prende esta crença com outros dogmas rabbinicos, tão obscuros quanto descaridosos, que a Egreja nascente adoptou e que ainda hoje formam o essencial da theologia christã. Podemos reduzir aquelles dogmas a cinco, consubstanciados todos no Inferno. Vem a ser: a Rebellião de Satan, o Castigo de Satan, o Paraiso terreal, a Maldição dos homens, o Povo de Deus.

Não intento esquadrinhar o sentido philosophico de taes dogmas: tal canceira, superflua para leitores instruidos, seria insipida e inutil para os ignorantes. Que Satanaz, inferno, peccado original, etc., sejam ou não horrendos symbolos do antigo pantheismo asiatico, — expressão viva d'um systema de methaphysica mais terrivel que especioso, onde liberdade e mal se confundem, e o nada divinisado tem consciencia de si, e Deus quasi deixa de ser — questões são essas proprias de academias. Taes dogmas para mim são o que á letra significam; sei d'elles o que nos ensinam; vejo-os como nos mandam vêl-os, como a multidão os vê, coisas reaes, pessoas verdadeiras, e não chimeras. Considero-os pois sob a fórma com que elles, ha muitos seculos, influem no genero humano: e não ha mais seguro modo de lhes apreciar o valor moral.

Entremos na exposição, clara quanta fôr possivel, d'estes dogmas mysteriosos.

I

Rebellião de Satanaz
 

A historia de Satanaz não se encontra na Biblia nem no Evangelho. Passou tradicionalmente da synagoga á Egreja. No Thalmud e nos Padres é que vem escripta.

Satanaz era um anjo — como quem diz um espirito incorporeo, um sôpro de Deus. Pureza, força e benção eram o principio e constituição de sua essencia. Estava elle no ceo resguardado de exemplos e conselhos maus. Creado para o bem alli vivia em condições em que não é possivel conjecturar-lhe intenções más, contemplando Deus rosto a rosto, actuando e reclinando-se em seu seio, testemunha intelligente d'aquella superlativa sabedoria, bondade e omnipotencia que transpõe espaço e tempo.

Infelizmente Satanaz era livre e peccou. É obra sua o mal que antes d'elle não existia. Concebeu-o elle, e — caso estranho! — produziu-o alli mesmo no ceo, em meio dos resplendores increados, e eternas bem-aventuranças, e depois quiz-lhe como a seu, e propagou-o por entre os anjos.

Este peccado, aliás inqualificavel, visto que lhe não conhecemos a especie, é, como vou demonstrar, o verdadeiro peccado original. É a primitiva e inexhaurivel fonte de dores do genero humano, posto que ainda não houvesse genero humano na desconhecida época em que elle perturbou o céo. Todos os transtornos do universo, mal physico e mal moral, é aquelle peccado que os explica.

Saibamos como Satanaz foi castigado.

II

O Inferno
 

Deus não quiz anniquilar Satanaz nem perdoar-lhe. Creou o inferno, e precipitou-o lá com os seus cumplices.

Fogo, frio, esvahimentos de fome, tedios da saciedade, golpes de ferro, trances de agonia, inveja, remorsos, tudo isso não basta a dar-nos muito em sombra idêa dos tormentos d'aquelle abysmo. Corôa-lhe o horror não ser ahi conhecida a morte. Se a morte lá podesse entrar, a esperança iria com ella, deixando entrever o nada como acabamento de tão enormes penas.

Se, porém, foi recusada a Satanaz esta miseravel consolação, goza-se de outra em desforra. Deus, que o reduziu á desesperação, deixou-lhe a faculdade de o molestar, atravessando-se-lhe nos intentos, contrariando-lhe as leis, multiplicando e perpetuando o mal por toda a parte, salvante o ceo.

É o inferno o senhorio de Satanaz; mas não cabe lá. É-lhe toda a creação campo franco para a sua malfeitora actividade. Verdade é que leva comsigo, onde quer que vá, a sua immortal tristeza, e, pelo tanto, toda a parte lhe é inferno. Não obstante, é incomprehensivel que elle de lá sahisse, se lhe não fosse algum hediondo regalo n'isso de fazer tudo quanto quer, excepto o bem — poder singular que Deus lhe concedeu, e elle exercita incansavelmente, seu prazer unico, necessidade propria da sua desgraça, e que hade durar tanto como elle.

Tal é o castigo de Satanaz. Crime e castigo são por egual espantosos e inintelligiveis.

Agora, vejamos o que d'ahi resulta.

III

Paraiso terreal
 

No segundo e terceiro capitulos do Genesis, refere Moysés a creação e queda do homem. Esta breve passagem foi diffusamente glossada por hebreus e padres da Egreja, e raro haverá quem a não haja ouvido explicar do pulpito, como eu brevissimamente a vou explicar, acrescentando-lhe reflexões minhas.

Adão e sua companheira tinham recebido no Eden uma lei moral simplissima e muito clara: era-lhes licito saborear todos os fructos d'aquella mansão de delicias, tirante o fructo d'uma só arvore: feito isto, a sua felicidade seria perfeita. Conta-se que elles estavam alli mais innocentes que os recemnascidos e ao mesmo tempo mais instruidos que os anciãos d'hoje em dia. Obedecia-lhes a natureza e elles comprehendiam-lhe a voz. Cuidados nenhuns, nenhumas lagrimas, primavera eterna, e a mocidade immorredoira em todo o seu ser. Deus folgava descer-se do ceo para n'elles contemplar a sua viva imagem; e então lhes mostrava seu rosto e lhes fallava.

Entretanto Satanaz foi esperal-os debaixo da arvore da Sciencia, cujo fructo lhes fez comer. Não se corromperam per si mesmos como Satanaz; mas eram livres e o tentador estava alli. Quem tinha seduzido os anjos como deixaria de seduzil-os a elles? Que considerações o reteriam? Não receia Deus por que Deus lhe não póde aggravar o supplicio, pois que esse supplicio é eterno, e o inexprimivel horror de tal castigo consiste na eternidade d'elle. Pelo que respeita á piedade, é sentimento que Satanaz não conhece, pois que Deus lh'a não mostrou a elle, o primeiro de todos os seres que a necessitára. Á semelhança das outras creaturas, tem sómente aquillo que recebe; e o que brilha em si não é o amor divino, é a divina colera que o conserva devorando-o.

Quaes foram as consequencias da queda?

IV

A maldição
 

Não aceitou Deus as desculpas de Adão e Eva. De tal modo o irritou a desobediencia, que, no auge da sua ira, amaldiçoou-os e com elles a terra que os continha: dupla maldição que abrange alma e corpo, espirito e materia, eternidade e tempo — o homem todo na intimidade de seu ser immortal e nas condições exteriores da sua existencia transitoria.

De feito, foi Adão condemnado á morte. O corpo reverteu ao pó e a alma cahiu no inferno. Esperando, porém, este ultimo castigo, foi-lhe forçado soffrer outro n'este mundo. Cahiu sob o poder de Satan. Os miraculosos conhecimentos, que elle tinha, perdeu-os para sempre.

Repulso do Eden, nada sabia do que tinha sabido n'aquelle lugar; e, como a terra tambem se havia transformado, caminhava elle inexperiente atravez dos estorvos d'uma vida nova. Precisões, lavor ingrato, enfermidades, padecimentos de toda a natureza, desconfianças, medos, saudades inuteis, desejos inquietos acompanhavam o vagabundo par. Satanaz seguia-os, julgando-os ainda bastante felizes sobre a terra maldita, onde, se elle não fosse, o soffrimento seria expiação, e a morte resgate.

Penetremos mais dentro n'este mysterio, e consideremos com os theologos quaes foram e ainda são hoje as deploraveis consequencias d'aquelles successos.

V

Consequencias da maldição
 

Os filhos de Adão que ainda não eram nascidos no momento da culpa, e os filhos de seus filhos até á derradeira geração foram condemnados com elle, como se tivessem peccado. Comprehende-se que elles não fossem melhores que seus pais: peiores é que elles se tornaram. O mais velho d'esses reprobos matou seu irmão, e a impiedade humana foi crescendo até ao diluvio para recomeçar, ao sahir da arca, durante o somno de Noé.

Uma tal punição não podia gerar outros effeitos.

Considerai que nascemos aviltados, pervertidos, embriagados do vinho que outros beberam, escravos d'um poder occulto e maligno, odiados de Deus, odiando a Deus, só bastantemente livres para praticar maldades e merecer por isso novos castigos; incapazes todavia de praticar o bem. Está Satanaz no manancial onde bebemos a vida; está nas fontes que a nutrem, no seio de nossa mãe e no seu leito; a si nos attráe, encorporando-se na luz, na agua, nos alimentos, no ar que respiramos, na voz que nos encanta o ouvido, na fragrancia que as auras nos trazem, no amigo que nos abre os braços. Comnosco se identifica e nos enche de seus cavilosos e insaciaveis appetites.

De fóra chama-nos com uma doce voz, e com um interno aguilhão nos esporêa para onde nos chama. Então nos cerca, invade-nos, possue-nos, e isto não é ainda senão parte do nosso castigo. O inverno que nos engorgita os membros, a fome que nos prostra, a trovoada que arrebata as sementeiras, a febre paludosa que nos mata os filhos, as forças que se vão quando a experiencia chega, estes flagellos todos da natureza contra nós desenfreados, estas necessidades inexoraveis, amargas privações, e exulcerantes desenganos são tambem parte do nosso castigo. Mas ainda não é tudo: a nossa insanavel ignorancia, orgulho, fraqueza, toda a corrupção do nosso ser é parte integrante do mesmo castigo, não do peccado original, cumpre notar, mas do castigo, pois que a transmissão do peccado original é já de si um castigo. E não pára aqui a maldição; pelo contrario, quando ella se nos mostra mais terrivel é n'este estado a que nos reduziu, manietados pelas cadeias que nos forjou, porque as culpas que resultam d'esta corrupção natura e involuntaria que é um castigo, d'esta possessão diabolica que é um castigo, e de tantas dores accumuladas que são castigo — taes culpas chamam sobre nós outros castigos. Qualquer lapso é reprehensivel; o menor deslize é espiado e marcado; o minimo murmurio é uma offensa.

Taes são, consoante a theologia dos hebreus, adoptada e assignada pelos padres, as relações do homem com Deus e de Deus com o homem.

Detestam-se. Desde a sahida do Eden que se digladiam em duello sem fim, posto que desigual. Um primeiro crime gerou a colera divina; mas do primeiro acto da colera divina surtiram outros crimes, os quaes geraram novas coleras, e continuamente, em face um do outro, a colera e o crime se fecundam e reproduzem sem descanso. Os homens n'esta lucta são incansaveis como Deus, e, posto que trespassados e sanguinolentos e esmagados, ameaçam e conspiram ainda.

De semelhante espectaculo não ha nome condigno! Está o odio por toda a parte, na terra, no inferno, no ceo, nas creaturas e no Creador.

Accrescentemos que o que melhor se comprehende neste systema é a rebellião do homem, porquanto a nossa sorte é mais miseravel que a sorte de Adão, e cem vezes mais miseravel que a de Satanaz. Mas faz-se mister esclarecer este ponto, antes de passar além.

VI

Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz
 

Em verdade nenhuma similhança temos com os habitantes do paraiso terreal; não lhes herdamos o saber adquirido sem trabalho, nem a pureza, nem a liberdade, que se agitava a bel-prazer em um tão vasto circulo, tendo um só limite perfeitamente distincto; nem tão pouco lhes herdamos a tranquilla felicidade. Para nós é tudo trevas, servidão, limite, trabalho e dôr. Apezar do peccado, outra vantagem nos levavam. Puniu-os Deus d'uma maneira que nos espanta; mas puniu-os pelo mal que propriamente fizeram. Comnosco não é assim. Primeiramente, aquelles actos, que Deus tão severamente castigou n'elles, continuam-se em nós, que não temos conhecimento d'elles senão por este proseguimento vingativo; depois, sem attender á nossa infermidade nativa, nos faz elle expiar nossas proprias faltas com tamanho rigor como se as nós tivessemos commettido na liberdade, na sciencia, e nos jubilos do Eden.

Se podeis, comparae agora a sorte do homem n'este mundo maldito á de Satanaz no ceo; e os peccados d'aquella creatura debil, ignorante, decahida, envolta em carne e sangue, cercada de precipicios e trevas, criminosa porque nasceu, e em perigo porque vive; — comparae isto, se podeis, ao inexplicavel peccado do anjo. Similhança não ha ahi nenhuma. Entre nós e aquelle espirito bemaventurado vae a differença de noite a dia, e entre a sua culpa e a nossa a distancia da terra ao ceo. Sem embargo disso, as penas são iguaes. Espera-nos o mesmo inferno. A unica desegualdade que se nota n'este logar de soffrimento é que o homem ahi será a eterna victima, e Satanaz o eterno algoz.

É evidentissimo que é a mesma a pena applicada a seres que prevaricaram em tão oppostas condições de actividade. Esta pena infinita só tem relação com o poder infinito do juiz offendido; não tem alguma com as faculdades diversamente limitadas dos culpados, e augmenta de gravidade á medida que desce sobre peccadores d'uma natureza mais fragil, de Satanaz sobre Adão, de Adão sobre a sua posteridade.

Quando procuramos n'isto a justiça, dizem-nos que ella ahi está, mas escondida. Oh! sim, meu Deus! Bem escondida, e a razão tambem, e a piedade tambem!

VII

O povo de Deus
 

Entretanto parece que a piedade se manifesta na formação do povo de Deus, e em verdade ahi se denota, mas como excepção, privilegio e favor.

Havia no Egypto uma raça de escravos; toma-os Deus pela mão, e atravez de mil obstaculos os leva ao paiz de Chanaan; dá-lhes leis, ministros e prophetas; illustra-os, defende-os, castiga-os, restaura-os, disputando a Satanaz, com successivos milagres, essa nesga de terra onde quer ser adorado. Não obstante, estas revelaçõens e sobrenatural assistencia não impedem que os judeus idolatrem, que se prostituam, que usurem e se precipitem numerosissimos em todas as voragens do mal. Por aqui se avalie a desgraça dos povos que occupavam o resto da terra e a quem faltavam taes soccorros. Pezava n'elles sem contrapezo o peccado original. Os que a maior grau de perfeição tinham levado artes e sciencias estavam tão remotos da verdade como o selvagem mais embrutecido. Não porque uns ou outros fossem atheus — pelo contrario, em seus soffrimentos, levantavam olhos ao ceo; mas como procuravam a divindade nas estrellas, nas altas montanhas, no concavo dos bosques, e nas mil imagens compostas de materia impura, debalde rogavam, e inutilmente sacrificavam. Salvante a de Moysés, todas as religiões eram engodo de Satanaz e conductoras d'almas ao inferno, similhantes ás lumieiras que as hordas assalteadoras accendem á beira das restingas, durante as noites tempestuosos, afim de que os navegantes se percam. E Deus abandonava os gentios á sua ignorancia; detestava-os em tanto extremo que prohibia o seu povo de os tratar, sobretudo de misturar ao d'elles o seu sangue, excepto nas batalhas. Occasionado o ensejo, era obra piedosa exterminal-os; mas attrahil-os ao seu coração, era, em todos os lances, um acto abominavel, por maneira que o leproso de Jerusalem recearia manchar-se, se recebesse na sua enxerga infecta a mais pura donzella de Sidon.

Tal é substancialmente o ultimo dogma que nos convém estudar. É certo que elle nos revela a bondade de Deus; mas á similhança de pallida restea de luz em espessa treva. O que nos ella esclarece é um ponto imperceptivel do espaço. Está meio velada no ponto onde brilha, e tanto ahi, como no restante do mundo, razão e justiça de Deus jazem de todo em todo escurecidas. Sobre a terra foi Jacob o unico justo? Se houve mais, porque não fez Deus alliança com elles e seus descendentes? Por que adoptou sómente os judeus, por que liberalisou a estes luzes que negou aos outros? Se lhe aprazia dar á humanidade cabida e obcecada pelo peccado meios de salvação, porque abençoou o sangue e a carne de um só homem, amaldiçoando o sangue e a carne dos mais homens? Se isto é verdade, força nos é exclamar com os theologos: — Razão impenetravel! Impenetravel justiça! — Sendo que tudo isto essencialmente diverge das idêas que podemos formar da pura razão e da verdadeira justiça.

A lei do genero humano, em toda esta historia, é a lei ditada pela colera, e, ainda quando a bondade ahi reluz, dá ares de um capricho.

Os primeiros christãos, judeus de origem, não adoptaram menos estas idêas por mais avessas que fundamentalmente sejam, não só á revelação interior, ás luzes da consciencia, mas tambem a tudo que mais luminoso do ensino de seu divino mestre nos transmittiram. A Egreja, dilatando-se fóra de Jerusalem, conservou o sinete da sua educação rabbinica[1], permanecendo meio judaica. Não mudou um til aos dogmas sombrios e crueis da synagoga, mas transformou o dogma do povo de Deus; ampliou-o espiritualisando-o, sem tirar ainda assim á clemencia divina, como logo veremos, aquella mystica e excepcional indole que tinha entre os judeus. Admittiu os gentios ao beneficio das graças de que Moysés os excluira, e tornou judeus, mediante o baptismo, os que de sangue o não eram. Ao mesmo tempo, repulsou do seu gremio os que só por sangue eram judeus, e o não eram por baptismo, formando, com tal exclusão, outro povo de Deus, e ficando o antigo a representar a figura carnal do novo. Em summa, a Egreja moldurou quanto em si coube, o espirito christão nas fôrmas antigas, que ella sempre venerava e considerava expressamente feitas para o receber. Consoante a parabola, envasilhou o vinho novo no tonel velho, onde ferve até estalar as aduelas; cuidado, porém, que a velha vasilha póde fender-se; o vinho contheudo é o sangue de Christo; e o genero humano, em prol de quem tal sangue ha manado, não deixará que uma gotta se perca.

Ha pouco disse eu que a egreja, adoptando as crenças da Judéa, não havia modificado a indole estranha e excepcional que taes crenças argúem á bondade de Deus. Por egual razão deixou ella condensarem-se as mesmas trevas sobre a sua justiça. É facil demonstral-o.

VIII

A egreja e o novo povo de Deus
 

Hoje em dia faz-se mister nascer em paiz catholico para ainda se crêr na possibilidade de não ir infallivelmente ao inferno. Contra o espirito do mal inda lá se encontra aquella miraculosa assistencia que outr'ora protegia apenas o districto não grande do Oriente. Alargou-se o territorio da clemencia, mas ainda assim não mede a quarta parte do globo. Além d'isso entre os novos, do mesmo modo como entre os antigos judeus, perdem-se muitos, porque Satanaz está sempre comnosco, na carne de Adão, e a maldição sobranceia-nos sempre.

Se o baptismo destróe esta maldição, não o faz completamente, salvo quando o baptisado morre ao sahir do baptisterio; senão, nem nos dispensa das penas eternas, nem nos arranca das prezas da necessidade das affeições, das tentações, dos enganos innumeros que são os effeitos temporaes da maldição.

Cresce, pobre creança, e se podes, cerra os ouvidos ás alegres cantilenas da tua ama; foge ás caricias de tua mãe e a todas as seducções que já te rodeiam. Não toques no bello fructo que a tua fome anceia. Na tua edade, sem que o saibas, já Satanaz te falla; na bebida e na comida estão venenos d'elle; com o mal te familiarisas, e perdida está a innocencia baptismal. Feito o primeiro peccado, desluziu-se a graça; a maldição meia delida revive inteira; a Egreja vem ainda com outros mysteriosos meios em nosso auxilio; porém, como n'este mundo não ha destruir attracção e inclinação e a liberdade do mal, muitos dos seus filhos se perdem, apesar d'ella, e para, melhor o dizer, em seus braços.

Attendendo aos perigos a que estão sujeitos ainda os filhos da luz n'esses paizes favorecidos, considere-se em que estado de desesperação vivem os filhos das trevas, isto é a maxima parte do genero humano. Em mil milhões de homens, pouco mais ou menos, que actualmente soffrem na terra, o mais que póde haver é duzentos milhões de catholicos. O remanescente vive sem confissão, e o maior numero sem baptismo, na ignorancia ou no odio da Egreja, e d'aqui vão como vieram sob o poder de Satanaz. Tem elles culpa? Nasceram no abysmo e longe de soccorros. Familia, tribu, cidade, patria, protectores naturaes, primeiros guias, ultimos amigos, lições, exemplos, leis e costumes, tudo os engana. Quem é que póde escolher o seu berço? Pois a nossa salvação póde depender de circumstancias e successos que não dependem de nós? A nossa rasão corrompida absolve-os; o velho Adão encontra sempre alguma desculpa ao peccado; mas a fé essa não. A fé decreta a reprovação final dos gentios, dos infieis, dos hereticos e até a reprovação final e eterna d'um grandissimo numero de catholicos; crê n'isto como no peccado original, como na hereditariedade do crime e do castigo, bem como na graça da salvação — coisas correlativas e de todo o ponto inseparaveis. Adora em silencio todas estas apparentes iniquidades, convicta de que ellas são sómente apparentes, e que um dia virá em que os proprios gentios hão de confessar que Deus fez bem amaldiçoando-os: tão profundamente justo, equitativo e rasoavel é na essencia aquillo que exteriormente tão pouco é.

Não ha pois duvidar que milhões de milhões de creaturas humanas estão no inferno. As almas despenham-se ahi de todos os lados, densas e rapidas como a chuva, chuva que dura ha mais de seis mil annos, e não acabará nunca. Todos nós temos no inferno uma immensa familia: todos os nossos antepassados pagãos, durante quatro mil annos, e Deus sabe quantos avós christãos!

Os parentes e amigos de quem nos apartamos a chorar, o que fazem é ir adiante de nós; os netos d'elles e os nossos, pela maior parte, lá vão ter comnosco, e para tão horrivel fim é que nós nos reproduzimos.

IX

Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com especialidade a eternidade das penas
 

Todos estes dogmas estão ligados; porém, quando surge uma duvida, não basta um para demonstrar o outro. Próvem-nos que Satanaz foi expulso do céo, e o homem do Eden; e, quando o tiverem provado, nem por isso lhes cabe o direito de concluir que Deus nunca perdoará a Satanaz nem aos homens. Um castigo que tira aos pacientes a esperança, e ao divino juiz a piedade, é mais incomprehensivel ainda que a fragilidade dos anjos: por consequencia, um tal castigo carece de ser justificado por pessoas eguaes, senão melhores. Estes antigos mysterios não derivam um do outro naturalmente; e, seja qual for o castigo que Deus reserve em sua justiça ás prevaricações das creaturas livres, é certo que nós o soffreriamos, ainda que Satanaz e Adão não tivessem peccado. A principal questão é saber se este castigo será eterno, e a tal respeito a corrupção original, a reversibilidade das culpas, o poder do tentador augmentam nossas duvidas em vez de diminuil-as.

O que ahi ha para nós não são provas, são objecções. O inferno poderá ainda sem isso não satisfazer nossa razão; mas não a offenderá tanto. É urgente, pois, provar que elle existe.

Prova-se pela revelação, isto é, pelas escripturas santas e pela auctoridade da Egreja, interprete infallivel d'ellas. Porém revelação biblica e infalibilidade de Egreja são já de si outros dogmas a favor dos quaes se escrevem todos os dias grossos volumes; e seria desviar-me grandemente do meu assumpto suscitando aqui similhante discussão. O pouco que a tal respeito hei de dizer vem no appendice que está no fim d'esta obra, sendo tanto para o leitor como para mim grande a pressa que temos de sahir d'este labyrintho de mysterios. Investigo provas d'outra ordem, mais especiaes, mais directas, mais apontadas ao bom senso, ao coração, á intelligencia, e que se prestam facilmente a ser entendidas e livremente discutidas. Se taes provas não existissem, não emprehenderia eu similhante trabalho; mas sustenta-se que existem, e em todas as apologias são invocadas como auxiliares das provas sobrenaturaes, e do ensinamento da Egreja, argumentos puramente philosophicos, dos quaes parece que a fé mesmamente está carecida. Dir-se-hia de vontade a respeito do inferno, o que Voltaire disse de Deus: que se elle não existisse, mister seria invental-o. Pois que podemos em verdade provar a existencia de Deus pela necessidade moral d'esta crença, pelo mesmo theor se intenta provar a existencia do inferno perpetuo: intenta-se fazer d'isto uma necessidade moral tão clara e evidente, quanto é evidente e clara a necessidade moral da crença em Deus, e é usual fundamentar tal raciocinio sobre o testemunho de todos os povos, que tanto importa a tradição chamada universal.

A mim me basta a primeira prova; d'ella pende a meu vêr a questão capital. Se o inferno, ou sómente a idêa do inferno é moralmente util, existe o inferno, é necessario, e é divino. Porém, como quer que a evidencia d'esta utilidade não seja dogma, assiste-nos o direito de examinar com plena liberdade. Tal é a tarefa que me impuz. A tradição universal de que tratarei depois, é apenas a primeira face do problema.


  1. No concilio feito pelos apostolos em Jerusalem, questionou-se sobre se se devia circumcidar os judeus. Muitos pensaram que esta operação fosse indispensavel á salvação, por isso que Moysés a ordenára; Paulo e Bernabé não foram d'esta opinião; a duvida, porém, era tamanha que sahiram deputados para Jerusalem, afim de combinarem com os apostolos e os padres. O concilio discutiu longo tempo. Pedro fallou de harmonia com Paulo; mas as duvidas subsistiram. Thiago fallou por sua vez, não invocando a palavra de Christo, mas repetindo algumas palavras dos antigos prophetas; o que fechou a pendencia. Decidiram que a circumcisão era desnecessaria á salvação. Todavia, logo adiante, Paulo, que contribuira para este accordo, circumcidou Timotheo, «em razão de estarem judeus n'aquelle logar, e saberem que seu pae era gentio.» Vid. Actos dos Ap., cap. XV e XVI.