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O Mandarim/V

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V
 


oi necessario todo um longo verão para descobrir a provincia onde residira o defunto Ti-Chin-Fú!

Que episodio administrativo tão pittoresco, tão chinez! O serviçal Camilloff, que passava o dia inteiro a percorrer os Yamens do Estado, teve de provar primeiro que o desejo de conhecer a morada d’um velho Mandarim não encobria uma conspiração contra a segurança do Imperio; e depois foi-lhe ainda preciso jurar que não havia n’esta curiosidade um attentado contra os Ritos sagrados! Então, satisfeito, o principe Tong permittiu que se fizesse o inquerito imperial: centenares d’escribas empallideceram noite e dia, de pincel na mão, desenhando relatorios sobre papel d’arroz; mysteriosas conferencias susurraram incessantemente por todas as repartições da Cidade Imperial, desde o Tribunal Astronomico até ao Palacio da Bondade Preferida; e uma população de koulis transportava da legação russa para os kiosques da Cidade Interdicta, e d’ahi para o Pateo dos Archivos, padiolas estalando ao peso de maços de documentos vetustos...

Quando Camilloff perguntava pelo resultado, vinha-lhe a resposta satisfactoria que se estavam consultando os Livros Santos de Lá-o-Tsé, ou que se iam explorar velhos textos do tempo de Nor-ha-chú. E para calmar a impaciencia bellica do russo, o principe Tong remettia, com estes recados subtis, algum substancial presente de confeitos recheados, ou de gomos de bambú em calda d’assucar...

 

Ora emquanto o general trabalhava com fervor para encontrar a familia Ti-Chin-Fú, — eu ia tecendo horas de sêda e oiro (assim diz um poeta japonez) aos pés pequeninos da generala...

Havia um kiosque no jardim sob os sycomoros, que se denominava, á maneira chineza, do Repouso discreto: — ao lado um arroio fresco ia cantando dôcemente sob uma pontesinha rustica pintada de côr de rosa. As paredes eram apenas um cadeado de bambú fino forrado de sêda côr de ganga: o sol, passando através d’ellas, fazia uma luz sobrenatural de opala desmaiada. Ao centro afofava-se um divan de sêda branca, d’uma poesia de nuvem matutina, attrahente como um leito nupcial. Aos cantos, em ricas jarras transparentes da época de Yeng, erguiam-se, na sua gentileza aristocratica, lirios escarlates do Japão. Todo o soalho estava recoberto d’esteiras finas de Nankin; e junto á janella rendilhada, sobre um airoso pedestal de sandalo, pousava aberto ao alto um leque formado de laminas de crystal separadas, que a aragem entrando fazia vibrar, n’uma modulação melancolica e terna.

As manhãs do fim d’agosto em Pekin são muito suaves; já erra no ar um enternecimento outonal. A essa hora o conselheiro Meriskoff, os officiaes da legação, estavam sempre na chancellaria fazendo a mala para S. Petersburgo.

Eu então, de leque na mão, pisando subtilmente na ponta das babouches de setim as ruasinhas areadas do jardim, ia entreabrir a porta do Repouso discreto:

— Mimi?

E a voz da generala respondia, suave como um beijo:

All right...

Como ella era linda vestida de dama chineza! Nos seus cabellos levantados alvejavam flôres de pecegueiro; e as sobrancelhas pareciam mais puras e negras avivadas a tinta de Nankin. A camisinha de gaze, bordada a soutache de filigrana d’oiro, collava-se aos seus seios pequeninos e direitos: vastas, fôfas calças de foulard côr de côxa de Nympha, que lhe davam uma graça de serralho, recahiam sobre o tornozêlo fino, coberto de meia de sêda amarella: — e apenas tres dedos da minha mão cabiam na sua chinelinha...

Chamava-se Vladimira; nascera ao pé de Nidji-Novogorod; e fôra educada por uma tia velha que admirava Rousseau, lia Faublas, usava o cabello empoado, e parecia a grossa lithographia cossaca d’uma dama galante de Versalhes...

O sonho de Vladimira era habitar Paris; e, fazendo ferver delicadamente as folhas de chá, pedia-me historias ladinas de cocottes, e dizia-me o seu culto por Dumas filho...

Eu arregaçava-lhe a larga manga do casabeque de sêda côr de folha morta, e ia fazendo viajar os meus labios devotos pela pelle fresca dos seus bellos braços; — e depois sobre o divan, enlaçados, peito contra peito, n’um extase mudo, sentiamos as laminas de crystal resoar eoliamente, as pêgas azues esvoaçarem pelos platanos, o fugitivo rhythmo do arroio corrente...

Os nossos olhos humedecidos encontravam ás vezes um quadro de setim preto, por cima do divan, onde em caracteres chinezes se desenrolavam sentenças do Livro Sagrado de Li-Nun «sobre os deveres das esposas». Mas nenhum de nós percebia o chinez... E no silencio os nossos beijos recomeçavam, espaçados, soando dôcemente, e comparaveis (na lingua florida d’aquelles paizes) a perolas que cahem uma a uma sobre uma bacia de prata... — Oh suaves séstas dos jardins de Pekin, onde estaes vós? Onde estaes, folhas mortas dos lirios escarlates do Japão?...

 

Uma manhã, Camilloff, entrando na chancellaria onde eu fumava o cachimbo d’amizade de companhia com Meriskoff, atirou o seu enorme sabre para um canapé, e contou-nos radiante as noticias que lhe dera o penetrante principe Tong. — Descobrira-se emfim que um opulento Mandarim, de nome Ti-Chin-Fú, vivera outr’ora nos confins da Mongolia, na villa de Tien-Hó! Tinha morrido subitamente: e a sua larga descendência residia lá, em miseria, n’um casebre vil...

Esta descoberta, é certo, não fôra devida á sagacidade da burocracia imperial — mas fizera-a um astrologo do templo de Faqua, que durante vinte noites folheára no céo o luminoso archivo dos astros...

— Theodoro, ha de ser o seu homem! — exclamou Camilloff.

E Meriskoff repetiu, sacudindo a cinza do cachimbo:

— Ha de ser o seu homem, Theodoro!

— O meu homem... — murmurei sombriamente.

Era talvez o meu homem, sim! Mas não me seduzia ir procurar o meu homem ou a sua familia, na monotonia d’uma caravana, por essas desoladas extremidades da China!... Depois, desde que chegara a Pekin, eu não tornára a avistar a fórma odiosa de Ti-Chin-Fú e do seu papagaio. A Consciencia era dentro em mim como uma pomba adormecida. Certamente, o alto esforço de me ter arrancado ás doçuras do boulevard e do Loreto, de ter sulcado os mares até ao Imperio do Meio, parecera á Eterna Equidade uma expiação sufficiente e uma peregrinação reparadora. Certamente Ti-Chin-Fú, acalmado, recolhera-se com o seu papagaio á sempiterna Immobilidade... Para que iria eu, pois, a Tien-Hó? Porque não ficaria alli, n’aquelle amavel Pekin, comendo nenuphares em calda d’assucar, abandonando-me ás somnolencias amorosas do Repouso discreto, e pelas tardes azuladas, dando o meu passeio pelo braço do bom Meriskoff, nos terraços de jaspe da Purificação ou sob os cedros do Templo do Céo?...

Mas já o zeloso Camilloff, de lapis na mão, ia marcando no mappa o meu itinerario para Tien-Hó! E mostrando-me, n’um desagradavel entrelaçamento, sombras de montes, linhas tortuosas de rios, esfumados de lagôas:

— Aqui está! O meu hospede sobe até Ni-ku-hé, na margem do Pei-Hó... D’ahi, em barcos chatos vai a My-yun. Boa cidade, ha lá um Buddha vivo... D’ahi, a cavallo, segue até á fortaleza de Ché-hia. Passa a grande muralha, famoso espectaculo!... Descança no forte de Ku-pi-hó. Póde lá caçar a gazella. Soberbas gazellas... E com dois dias de caminhada está em Tien-Hó... Brilhante, hein?... Quando quer partir? Ámanhã?...

— Ámanhã — rosnei, tristonho.

Pobre generala! N’essa noite, emquanto Meriskoff, ao fundo da sala, fazia com tres officiaes da embaixada o seu whist sacramental; e Camilloff, ao canto do sofá, de braços cruzados, solemne como n’uma poltrona do Congresso de Vienna, dormia de bôca aberta, — ella sentou-se ao piano. Eu ao lado, na attitude d’um Lara, devastado pela fatalidade, retorcia lugubremente o bigode. E a dôce creatura, entre dois gemidos do teclado, d’uma saudade penetrante, cantou revirando para mim os seus olhos rebrilhantes e humidos:

L’oiseau s’envole,
Là bas, là bas!...
L’oiseau s’envole...
Ne revient pas...

— A ave ha de voltar ao ninho, murmurei eu enternecido.

E, afastando-me a esconder uma lagrima, ia resmungando furioso:

— Canalha de Ti-Chin-Fú! Por tua causa! Velho malandro! Velho garoto!...

 

Ao outro dia lá vou para Tien-Hó — com o respeitoso interprete Sá-tó, uma longa fila de carretas, dois cossacos, toda uma populaça de koulis.

Ao deixar a muralha da cidade tartara, seguimos muito tempo ao comprido dos jardins sagrados que orlam o templo de Confucio.

Era no fim do outono; já as folhas tinham amarellecido; uma doçura tocante errava no ar...

Dos kiosques santos sahia uma susurração de canticos, de nota monotona e triste. Pelos terraços, enormes serpentes, venerandas como deuses, iam-se arrastando, já entorpecidas da friagem. E aqui e além, ao passar, avistavamos buddhistas decrepitos, sêccos como pergaminhos e nodosos como raizes, encruzados no chão sob os sycomoros, n’uma immobilidade de idolos, contemplando incessantemente o umbigo, á espera da perfeição do Nirvana...

E eu ia pensando, com uma tristeza tão pallida como aquelle mesmo céo d’outubro asiatico, nas duas lagrimas redondinhas que vira brilhar, á despedida, nos olhos verdes da generala!...