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O Matuto/IX

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Pouco distante do Cajueiro tinha Victorino sua casinha em um alto entre dois valles, por um dos quaes desciam uns cannaviaes escassos que ahi plantara, emquanto pelo outro apontava a roça graciosa que elle sempre trazia limpa e parecia sorrir feliz a todos.

Não foi preciso que decorresse muito tempo para que Victorino e Francisco se aproximassem, e suas familias criassem relações. A familia de Victorino compunha-se de sua mulher por nome Joaquina, e de Marianinha e Bernardina, filhas do casal.

Levado da sympathia natural que lhe inspiraram Francisco e Marcellina, convidou-os Victorino para padrinhos de Marianninha, que contava por então seus tres para quatro annos. Este novo laço veio estreitar mais as duas famílias matutas, que já se sentiam presas por mutuas inclinações.

Por isso, era natural—e assim aconteceu—que na primeira occasião Francisco levasse Lourenço á casa do compadre, o qual já o conhecia da garapeira, e delle déra noticia circumstanciada aos seus.

Acharam ali o menino muito bonito, muito forte, e especialmente muito artista. Este ultimo dote de Lourenço não obstou porém a que tivessem logo para elle vistas particulares o pai e a mãe de familia. No mato ainda hoje se contractam casamentos com grande facilidade e antecipação; ainda bem uma menina não se põe moça nem um menino rapaz quando os pais fallam em unil-os pelos laços do santo matrimonio e assim que attingem a idade necessaria, os noivos são recebidos á face da igreja. O melhor é que essas uniões prematuras quasi sempre produzem bons fructos. Contrariamente succede nas cidades e capitaes adiantadas. Aqui não direi os casamentos assim contrahidos, mas até aquelles a que precederam longos noviciados não são muitas vezes sufficiente seguro de paz e felicidade no lar.

Poucos annos depois da apresentação de Lourenço em casa de Victorino, já Marianninha, que desde os primeiros tempos sentira grande inclinação para elle, alimentava a esperança de ser sua mulher. Era isto o resultado das conversações particulares na casa do foreiro, das commentações e gracejos das meninotas das vizinhanças, emfim das supposições dos conhecidos a quem não eram estranhas as relações das duas familias.

Não tinha então Marianninha mais de doze annos, mas já pensava na fallada união com tal constancia e satisfação que só com isso se considerava feliz. Lourenço era o passarinho verde dos seus sonhos infantis, a feiticeira imagem que tinha o primeiro lugar nos seus brinquedos de bonecas, e lhe enchia o espirito de suavissimo explendor, de dia quando ella trabalhava, de noite quando se entregava ás enganosas scismas da primeira idade.

Ao menino já não succedia o mesmo que á menina. Si estava alegre e brincão, bastava fallarem no casamento, para que em seu rosto se mostrassem indicios de desprazer. Fugia, amuava-se, e só aparecia de novo d'ahi a tempos.

Outras vezes vingava-se das finezas de Marianninha respondendo com demonstrações de pouco caso.

Eis o que aconteceu um dia em que se achou com Francisco em casa de Victorino, por occasião de uma arranca de feijão.

Os dois dias anteriores tinham sido empregados neste serviço. Em frente da casa viam-se os couros estendidos sobre os quaes Victorino, a mulher, as filhas, e seu sobrinho Saturnino tinham atirado a herva trazida ás braçadas da plantação.

Com tres tijelas de feijão mulatinho, uma do feijão branco e outra do preto que Victorino plantara pela varzea que ficava do lado da casa e pelos pés dos altos que do outro lado a cercavam, esperava elle apanhar tantos alqueires que lhe dessem para todo o anno. Parece que o calculo não ficou longe da realidade, visto que no serviço da arranca andaram empregados durante dois dias todos aquelles braços.

Ao dar com os olhos sobre os grandes montes de vagens e ramas atiradas em cima dos couros, disse Francisco:

— Sempre cuidei que eu bateria primeiro o meu feijão do que você o seu, compadre Victorino. Vejo agora que me enganei.

— É verdade, compadre Francisco.

— E boa apanha fez você. Que putici! Dá bem seus dois alqueires.

— É quanto espero apurar.

— Mas parece que ainda era cedo para arrancar esta herva. Vejo ainda tantas bagens zarolhas entre as seccas.

— Nem por isso. Elle já estava estralando ao sol mesmo no pé.

— Como está a comadre? Como passam as meninas?

— Nenhuma quer morrer, não, meu compadre.

— Fazem elas muito bem.

— A comadre como ficou?

— Trabalhando com seus cestos.

Appareceu nesse momento Joaquina na porta da casa, as mangas do vestido para baixo, o cabeção de rendas a mostra, os pés no chão.

— Por isso é que o dia amanheceu tão bonito. É porque o compadre Francisco tinha de apparecer hoje por aqui.

— Não presto mais para nada, comadre. Mas porém já fui um cabra mesmo pimpão. Muita mulata bonita já se remecheu por mim ouvindo-me cantar ao som da viola, em noites de luar. Hoje deixo isso para esta mocidade que se está enfeitando, para esses frangotes que como a nossa criação vão enchendo os nossos terreiros.

E apontou para Lourenço e as raparigas que nessa occasião conversavam entre si. Estas não se demoraram a vir comprimentar o matuto. Marianninha chegou-se para bem parto delle, e, estendendo a mão direita, disse, córada e confusa:

— Sua benção, meu padrinho.

— Deus te dê um bom marido.

— Isto é que é o mais custoso—observou Joaquina.

— Ha de apparecer, ha de apparecer, tornou Francisco.

— Tambem si ha de ser algum vadio, algum preguiçoso que não tenha animo nem para peiar um cavallo, melhor será que esteja ella solteira ahi dentro de casa; acrescentou Victorino.

Neste tom correu a palestra ainda por alguns minutos, Lourenço conversando a mór parte do tempo com Bernardina, e Victorino e Joaquina com Francisco.

Entretanto o dia ia crescendo, o sol subindo e o feijão estalando no terreiro: o que levou Francisco a dirigir esta pergunta ao compadre:

— Para quando guarda bater o feijão?

— Estou esperando por meu sobrinho Saturnino, que ficou de voltar, mas ainda não chegou.

— Ora! Aqui estou eu e o Lourenço para o ajudarmos. Eu não tenho que fazer hoje. Dei este salto até cá por distrair-me.

— Pois si você quer, vamos a isso.

Francisco chamou pelo pequeno. Para terem mais desembaraçados os movimentos tiraram as camisas; assim—nùs da cintura para cima—ficaram inteiramente á vontade e conformemente ao costume do campo. Cada um pegou então do seu cacete, e começaram a surrar a grande tulha que primeiro se lhes offereceu á vista.

As mulheres, pelo sentimento de pudor que lhes é natural, especialmente no campo, não obstante lhes faltarem as saudaveis praticas, presente da educação, tinham-se recolhido antes á sala da casa, e ahi se entregaram a differentes generos de occupações. Bernardina, sentada em uma esteira de juncos, e Marianinha em um couro de cabra, faziam companhia, tendo cada uma entre as pernas sua almofada com vistosas rendas, a Joaquina que, pousada no chão, com as pernas estiradas uma sobre outra, fiava em um fuso pastas de alvissimo algodão que ella ia tirando de dentro do balaio, onde trazia um montão dellas abertas.

Dahi a pouco Bernardina entrou a cantar para si umas lettras matutas, emquanto sua mãe repetia os pés de um bemdito que de costume tirava sempre que se punha a fiar. Era lembrança da missão que um capuchinho fizera em Goyanna annos atraz. Marianninha guardava silencio. Ouvia com attenção as toadas das duas cantadeiras, porém mais attentos do que os ouvidos tinha ella os olhos, que de quando em quando levava furtivamente da renda a Lourenço por uma aberta da porta pela qual entrava com a imagem do rapaz um pedaço de céu azul.

O amor que Marianninha votava a Lourenço, vinha dos primeiros annos mas já era ardente, continuado, exclusivo. Nasceu no momento em que o menino foi apresentado á familia. Remontemo-nos a esse momento. Victorino tinha dado do menino as peiores informações; mas sua filha o achou tão bonito que ficou escrava delle. Tinha ido Victorino abrir um roçado dentro da mata que lhe ficava por traz da quadra de terra que o senhor do engenho lhe déra para cultivar. Como não era muito grande o espaço concedido, da casa ouvia-se o ruido que, ao cahir, produziam com as folhagens e as arvores derrubadas pelo poderoso machado foreiro. Ao ruido das arvores; ao ciciar da viração por entre a folhagem de um pé de massaranduba, que ficava de um lado da casinha; ao cantar dos chechéus poisados esse momento sobre as bananeiras do quintal, Marianninha, que na occasião de chegarem os hospedes, estava no terreiro brincando com suas bonecas, sentiu que despertára novo sentimento em seu coração. Esse sentimento não se confundia com o que ella experimentava minutos antes ouvindo os mesmos rumores e o mesmo canto; era differente, posto que acompanhado do mesmo natural cortejo.

A manhã estava esplendida. O sol aquecia, sem queimar as plantas e os animaes, vivificando-os. As vastas sombras dos matos e dos oiteiros, projectando-se sobre o capinzal donde iam desapparecendo os ultimos pingos da orvalhada brilhante da noite, poder-se-hiam comparar com as folhas fechadas de um livro immenso—o livro da natureza. Poucas horas depois essas folhas estavam de todo abertas, a luz patenteava nellas muitas bellezas, que a sombra occultava antes, a saber, as moitas figurando ninhos virados, as flôres inodoras, mas lindas, que costumam nascer pelos sopés das montanhas, as rolinhas, de duas em duas—modelos da união dos dois sexos estreitada pelos laços do affecto natural, modesto e sobrio que Deus plantou no coração dos irracionaes, e que só a razão, ou antes, a obliteração della perturba na especie humana—depinicando silenciosas, a fazer voltas em sentidos oppostos e a encontrar-se depois, como para affirmarem mutuamente que nunca jámais se separariam, a não ser momentaneamente. Nenhuma dessas manifestações da vida campestre, nem mesmo o conjuncto de todas ellas tinha despertado no coração de Marianninha o sentimento brando e indefinivel que ella começou a conhecer d'alli por diante. Francisco e Lourenço não se demoraram, tiraram para a mata a falar com Victorino; a impressão porém que a assaltou, quando ella viu pela primeira vez o menino, e que depois, acrescentada pelas relações de amizade e pelo tempo, se agigantou a ponto de constituir-se um mundo, uma immensidade, essa perdurou para sempre não só em seus olhos, enchendo-os de novos brilhos, mas em toda a sua alma, povoando-a de nuvens rosadas e de paysagens verdoengas.

Eis porque Marianninha olhava agora ás furtadellas para o rapaz, achando graça particular no modo como elle botava o cacête sobre a tulha do feijão.