O Momento Literário/III
JOÃO RIBEIRO
A primeira vez que falei a João Ribeiro da possibilidade de um inquerito a respeito do momento literario, foi a porta do Garnier, ás 3 da tarde, hora em que apparecem os literatos e os diplomatas, para a conversação de praxe.
João Ribeiro estava num dos seus dias de irritação.
Arriscaria dizer que me recebeu com tres pedras na mão, si não tivesse a certeza de que era muito maior o numero dellas.
Mas eu tenho para vida uma certa quantidade de maximas capazes de explicar e minorar os soffrimentos possiveis. Abri o sacco e li uma das sentenças de Nietzsche: «Fazer planos e tomar resoluções, ahi está o que nos dá uma porção de sentimentos agradaveis. Aquelle que tiver a força de não ser toda a vida sínão um forjador de planos será um homem feliz. Ser-lhe-á, porém, necessario de tempo em tempo executar um plano e então começarão as coleras e as desillusões.»
Guardei-me de insistir. No dia seguinte o superior espírito estava mais calmo. Chamou-me para um canto, teve a bondade de achar interessante o inquérito e disse:
— Vou responder. Aproveito a ocasião para acentuar umas idéias... Não prometo responder já, mas prometo ser sincero. Se for a Princesa Mangalona o livro que maior influência me tenha causado, pode ter a certeza que a ponho lá.
Quarta-feira de cinzas recebia eu esta deliciosa carta, em que a arte de escrever rivaliza com a fulgurância dos conceitos:
1. Para sua formação literária quais os autores que mais contribuíram?
Em termos restritos, não posso e nem sei responder. Fui um grande ledor de folhetos, revistas e livros de todo o gênero: as minhas admirações eram sempre efêmeras e precárias e logo substituidas ou argumentadas de outras novas; pratiquei, pois, um politeísmo tão numeroso como o antigo; não sei dizer quem era o Zeuspiter desse Olimpo, mas posso dizer quem foi o Uranus primitivo.
Meu avô (à cuja sombra cedo recolhemos minha mãe e eu, órfãos de meu pai) tinha uma biblioteca de cousas portuguesas; meu avô era da geração dos cartistas e franco-maçons, embirrava com padres e frades e como neocatólico adorava o Herculano e o Saldanha Marinho. Nem então, nem depois, participei daquelas iras ou entusiasmos; da sua biblioteca o que me atraía era uma magnífica coleção do Panorama e a do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro; se a estes ajuntar o Manual Enciclopédico de Emilio Aquiles Monteverde, que eu lia na escola, terá v. o gênesis de todas as minhas letras, ciências e artes daquela quadra. Confesso que não aumentei de um ceitil todo aquele patrimônio, e em muitas coisas o dissipei e diminuí. Todas as minhas horas de lazer consumiam-se em desenhar, copiando as gravuras do Panorama, em reler a mitologia e as verdades eternas do Manual Enciclopédico; por outro lado, o Almanaque de Lembranças ensinava-me a fazer charadas, e as charadas ensinaram-me a fazer versos. Não se espante de que aos doze ou treze anos eu começasse a fazer versos: eu ignorava ainda a arte, sem dúvida mais difícil, de os não fazer, arte que enfim, tarde e mal, aprendi. As minhas origens espirituais, pois, são, como a social, plebéias, rústicas e pobres, mas nunca pediram de saco e brado pelas ruas. As minhas expansões nunca fizeram explosão que pusesse em perigo o teto paterno: acomodaram-se no estreito ambiente doméstico e suportaram a pressão do silêncio externo. Resta, porém, indicar um fator singular e dos que se têm a conta de indiferentes, mas que, ao parecer, foi decisivo; sempre fui homem material, e, rudeza ou grosseria, sempre tudo submeti e subordinei à forma, não havendo para mim substância se não a externa, palpável e evidente. Sou capaz de afirmar e afirmo que me fiz poeta só e unicamente porque eu tinha então papel, esplêndido, como se diz hoje, para versos: eram umas aparas do Arquivo Econômico da Bahia, revista que meu avô assinava e cujas margens larguíssimas por supérfluas eram cortadas; do bico da tesoura eu recolhia aquelas fitas brancas e lisas, que na minha mão se enrolavam curvas como o aço dos relógios, esperando a desenvolução futura, nos momentos de furor e de estro.
Naquelas duas polegadas de papel a minha letra miúda poria destramente um alexandrino, mas nem de tanto havia mister, porque eu comecei pela oitava rima e pelo poema épico: a epopéia devia ser uma Brasileida ou Brasilíada (ou coisa que o valia, e agora me esquece) e era assunto a crônica de descobrimento do Brasil, que eu li no Panorama[1] e onde se contavam os amores de Ipeca, índia tupinacuim, e de um português da frota de Cabral. Acabo aqui a história porque já vou excedendo, mal a meu grado, os limites da resposta; mas aqui tem v. mais ou menos os autores que mais contribuíram, na formação do meu primeiro e único poema: técnica — o papel aparado e o vezo da charada; ciência e mitologia — o Manual Enciclopédico; sujeito e desenvolvimento — o Panorama. O resto, atribua-o v. generosamente ao meu talento.
2. Das suas obras qual a que prefere?
Obras literárias, além de um livro de versos, não as tenho; tudo quanto escrevi foram fragmentos, artigos de jornal, cousas esparsas e sem valia, das quais um colchete coordenador poderá talvez fazer um mísero opúsculo. Mas posso dizer à maneira de D. Francisco Manuel — "nunca me arrependi do que deixei de escrever".
Escrevi, sim, e v. bem o sabe, alguns livros úteis, ou com a intenção de úteis, e em realidade o foram ao menos para mim mesmo.
A Brasileida perdeu-se ou eu a rasguei, sem nenhum gesto de ira; os outros terão agonia mais lenta e hão de perder-se com mais demorados vagares.
Francamente, não prefiro nenhum, a não ser talvez um ou outro verso, dos que compus, menos pelo que vale e mais pelo que lembra na memória de outros tempos.
3. Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas( romance social, poesia de ação etc.) ou há a luta entre as antigas e as modernas? Neste último caso quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?
— Acho difícil responder a tanta cousa por junto e mais do que difícil acho que seria odiosa a minha inútil franqueza. Vou ver se me conformo à verdade sem faltar às conveniências. A verdade, segundo a eu entendo, já se vê. Não gosto, absolutamente não gosto dos nossos últimos poetas; falo dos últimos, recentíssimos. Basta dizer que não os leio e que ainda que o quisesse não os podia ler. E digo com a máxima sinceridade que, em abrindo uma folha, prefiro ler um anúncio de leilão a um soneto. É a nossa poesia de hoje uma cousa pior que péssima, porque é sempre a mesma repetição eterna, descorada, longuíssima, das mesmas coisas, é a mesma ênfase chilra, destemperada, cansada como aquele chá do Tolentino...
Em bule chamado inglês
Que já para pouco serve,
Duas folhas lança ou três
De cansado chá que ferve
Com esta, a sétima vez.
Poder-se-ia ainda continuar:
De fatias nem o cheiro
Etc.
Ao menos versos destes podem ser repetidos e hão de o ser eternamente.
Está-se a ver por este excesso do meu juízo que o defeito é todo meu, falha e insuficiência da minha parte. Não é possível que eu tenha razão.
A verdade é que não sinto e não entendo, não alcanço o que querem os nossos poetas. Quer v. mais? Já transpus os limites da discrição, e numa sociedade primitiva e guerreira como esta, democracia pela força das cousas mas sem nenhuma educação liberal, e em que a regra é eliminar os discordantes, com o que disse já estou muito mal parado.
Peço-lhe, se se interessa pela minha paz de espírito, que acrescente aí numa entrelinha: há algumas exceções honrosas...
Não sucede, porém, a mesma cousa com os nossos prosadores; e ainda que eu conheça (só pela rama) umas três das grandes literaturas européias, acho que podemos falar de escritores nossos sem incontinência. Se tudo é relativo, há descomedimento a nosso favor, e a proporção que nos convém dá muito para envaidecer-nos. Temos romancistas, críticos, jornalistas, oradores mais e melhor do que jamais tivemos.
Os nossos prosadores de hoje, no Rio, escrevem com gosto, clareza e não raro com perfeição de forma e outras excelências ainda há pouco tempo não sonhadas sequer; o mal estilo provinciano, condoreiro, asiático, sesquipedal, pedantesco, bombástico ou ridículo, aqui não acha quartel e cá se não vê mais no livro nem no jornal.
(Não falo de exceções para pior; nem a mesma Atenas de Péricles delas estaria isenta.)
Dessa tendência concluo que o predomínio será no Brasil o do culto da linguagem clássica; temos a doença que é o dialeto e é natural que se não poupem sacrifícios pela saúde.
Faça-me justiça. Não quero dizer que nos desvelem as noites o Fr. Luís de Sousa ou o Sá de Miranda: para estes haverá obreiros modestos que lhes consagrem as insônias, trabalhadores incessantes e fragueiros. A tendência para a perfeição é um instinto ingênito de todos os artistas; nunca houve guerra aos clássicos senão depois que houve jornalismo. Os jornalistas com a sua técnica repentina não se podem prender por esses polimentos demorados, por essas limagens preguiçosas que não podem ir por máquina. Falam pro domo sua, quando invectivam as velharias de antanho. Mas se há mister, por que se não há de, até nisto, engenhar uma máquina?
Não é talvez difícil e creio até que já está meio inventada.
Coloquemos a questão nos seus verdadeiros termos.
O estilo não é tanto correção, coisa trivial, mas é perfeição, isto é: a idéia precisa e exata na sua forma exata e precisa; é o bronze vazado no seu molde, a prata na sua rilheira. E qual é o artista de qualquer arte e de qualquer canto do mundo, que não busca, não pesquisa e não se deixa matar por um fim supremo?
Não se trata pois de gramática nem de gramaticões impertinentes e molestos como os da minha espécie que registram e passam, e nem se oferecem como prospectos modelares à geração nova.
A escola clássica que é da perfeição de forma é eterna ou antes é a mesma eternidade da compleição humana; as outras têm e sempre tiveram direito à vida, mas são antes modas efêmeras, diárias, anuais, bisonhas, e quando muito ao cabo de três ou quatro anos são excelências que degeneraram em sensaborias, elegâncias que cada transatlântico desfaz ou recompõe... São enfim roupagens enquanto o clássico é o nu daquela nudez que o Eça queria mal velada por um manto diáfano, e outros o querem... por um capote...
Falta-me responder ainda a duas questões. Sobeja o assunto, mas falta o papel (como vai longe aquele bom tempo das aparas!) É também preceito ibseniano que tudo se não há de dizer de pancada e a boa regra é deixar um pouco à colaboração dos que lêem...
Das duas questões que resta responder, a uma delas — se haverá de futuro literaturas à parte nos Estados? — pode-se dizer sim ou não, conforme a distância em que se ponha aquele futuro: se é no infinito onde todas as antinomias se conciliam e as paralelas se encontram, naturalmente, matematicamente, sim é a verdadeira resposta, e não tenho dúvidas a este respeito.
Há de v., porém, permitir-me que do infinito eu não passe adiante."
E depois de chegar ao infinito não tive coragem de lhe perguntar mais nada...
Referências
[editar]- ↑ Creio que de F. A. Varnhagen; um romance histórico; estava então na baila W. Scott, entre os escritores portugueses Rebelo da Silva, Herculano, etc.