O Momento Literário/XIV
O insígne autor do Pan-Americanismo responde-me com uma longa carta em que dá explicações e leves conselhos. Infelizmente responde apenas a dois quesitos. Sobre o jornalismo, o pensador ilustre diz:
"Depois da descoberta da imprensa e outros meios de comunicação do pensamento, a instrução cientifica, estética, moral e filosófica passou da escola para o jornal. A escola deixou de ser um instrumento de cultura, um fator de progresso para se restringir a ensinar a ler e a escrever maquinalmente palavras.
Hoje a instrução transbordou da escola e espalhou-se pelo vasto campo da vida; hoje só há uma escola na altura dos tempos modernos, que é o jornal, escola sui-generis sem penas disciplinares, escola verdadeiramente livre, que o aluno não é obrigado a freqüentar, que penetra todos os dias pelas janelas no interior do lar como os raios do sol, escola que é a mais elevada expressão das relações livres entre as pessoas, umas que sentem necessidade de aprender, outras de ensinar..."
A respeito da sua formação literária, o filósofo é mais extenso.
"Não sei se posso falar em formação literária; porém, a instrução que possuo devo mais à natureza e à vida do que aos mestres e aos livros.
Em regra, tive péssimos professores, com exceção do velho José Soares de Azevedo, que me ensinou português e francês, e do dr. José Austregésilo Rodrigues Lima, que lecionava filosofia como os filósofos antigos — por amor à ciência.
Até onde vai a claridade de minha memória, posso dizer que a Capunga com a doçura e poesia de sua paisagem foi a matéria-prima de minha educação.
Evocando as pessoas e as coisas no seio das quais passei minha infância, não diviso as primeiras senão através de densas brumas, de vagas nebulosidades, enquanto a natureza se me apresenta ao espírito com toda a elegância de suas formas, com todo o brilho de suas cores, com toda a suavidade de seus perfumes.
O eu é menos independente do mundo exterior do que geralmente se pensa.
Nós comungamos com a natureza até mesmo depois da morte, a íntegra potestade que restitui à terra o que veio da terra, e com a podridão dos corpos produz o fermento de todas as incessantes metamorfoses, de todas as fecundas eclosões.
Não é na escola que se aprendem as verdadeiras lições de coisas, e sim na vida, a grande mestra de tudo que existe no mundo.
Que me seja permitida a tão espontânea quão sincera confissão retrospectiva que vou fazer, a qual, valendo como penitência, serve ao mesmo tempo de prova do que venho afirmando. Assim é que não faço teoria pedagógico-filosófica, mas falo por experiência própria.
Todos os dias, pela manhã, surgia, como por encanto, no terreiro de casa o vencedor nunca vencido das capoeiras vizinhas. Era um formoso galo, que contava as vitórias pelos lugares por onde passava, e se orgulhava de ser o terror dos poleiros.
Imaginei que era preciso decretar a paz para os galinheiros, como a Convenção decretou a vitória para a França, e deliberei queimar o bico, cortar os esporões e arrancar as garras do invencível guerreiro.
Foi o que fiz certa ocasião, em que haviam saído todos os de casa; mas o radiante triunfador, com o bico queimado, as garras e os esporões decepados, caminhando tropegamente, afigurou-se-me um monstro, e minha alma ingênua de criança um monstro ainda mais horrível.
Depois, como se não bastasse aquela figura de Bank para meu castigo, disse-me o dono do animal: — Olhe, se apanho o malvado que praticou tamanha perversidade, corto-lhe as orelhas.
À noite, custei muito a dormir, e quando pela madrugada conciliei o sono tive um horrível pesadelo. Sonhei que estava com as orelhas cortadas; e se realmente não as perdi, sentenciou no dia seguinte minha Mãe, não foi porque não merecessem ser arrancadas a puxões, mas para que as sentisse arder todas as vezes que me lembrasse daquele crime.
Outro exemplo ilustrativo: aos dez anos, quando entrei para a escola, pois meus pais tinham tido o bom senso de não me subtrair durante a primeira idade ao viver livre, que a natureza impõe ao desenvolvimento da infância, eu não sabia A nem B; mas em compensação conhecia toda a passarada, desde a fúnebre coruja até ao petulante beija-flor.
Ora, em face de todas as galas e esplendores da avifauna pernambucana, que encanto podia ter para mim a aula com o seu monótono e aborrecido B...A — BA?
O preto Calisto era um grotesco tipo de mestre-escola: usava cartola cinzenta, casaca preta e calças brancas. Comprometera-se com meu pai a ensinar-me primeiras letras em troca de uma flauta de ébano com chaves de prata.
A sedução do campo, trepando-me nas árvores, enchendo os bolsos, e ainda mais o estômago, de frutas, espreitando os pássaros, perseguindo as borboletas, inspirava-me horror à escola.
Entretanto, o Laurentino, cria de casa, filho mais velho da escrava Antônia, era acusado de distrair-me dos estudos com a sua estimada criação de canários brigadores, e, em um belo dia de sol, bem me recordo, ao voltar da escola, já não encontrei às voltas com os seus queridos passarinhos o Laurentino, que havia sido embarcado para o Sul.
Com os olhos cheios de lágrimas, abri a porta das gaiolas, e deixei ganharem o espaço livre aqueles outros cativos. Desde aquele momento fui abolicionista de coração.
No curso de preparatórios o livro que concorreu para a formação de meu espírito foram as Fábulas de Fedro.
É um livro em cujas páginas se reflete nitidamente a Natureza como em um espelho, e que não se pode dizer escrito para a escola e sim para a vida.
D. Quijote de la Mancha, com seu inseparável companheiro de jornada, o pacato Sancho Pança, e a formosa Dulcinéia del Toboso, tão radiante como só podia imaginar o cérebro exaltado de seu incomparável cavalheiro, marca a segunda etape de minha evolução intelectual.
Miguel Cervantes, provocando o riso à custa das loucuras e ridículos humanos, há feito mais bem a humanidade que todas as escolas, em que o professor abomina o riso e está sempre disposto a sacrificar a originalidade e mais atributos superiores à submissão a umas tantas conveniências, que não raras vezes tocam as raias da hipocrisia.
A disciplina baniu da escola a função do riso, quando é o riso que torna o homem superior aos outros animais. Há coisas na vida que somente se corrigem à custa de muita gargalhada, e o riso, pode dizer-se, é exclusivo da espécie humana.
Entretanto, o professor, por força da disciplina escolar, capricha em não rir, muito embora o riso seja o mais poderoso e humano instrumento de seleção social.
Um outro gênio, que produziu em meu espírito uma verdadeira embriaguez intelectual, com o néctar de seu divino humour, foi Henri Heine, autor de Alta Troll, sátira política superior a tudo que tem sido escrito a respeito desde Aristófanes.
No ponto de vista filosófico, devo tudo, por um lado a Kant e a Tobias Barreto, por outro lado a Spencer e Sílvio Romero.
Tais foram os elementos que concorreram para a formação de minha acanhada cultura de espírito".
E concluindo a tratar de preferências literárias, com uma habilidade de diplomata diante do impossível, Artur Orlando termina:
"Julgo-me incompetente para responder a este quesito.
É uma questão difícil de resolver como os casos dados para concursos de vigários.
Ensinou-me, porém, o meu professor de Direito Eclesiástico que desde longa data a jurisprudência canônica instituiu a proibição dos atos emulativos, negando o direito, que envolve pecado.
Para que se construir um edifício, que é inútil ao proprietário e prejudicial aos vizinhos?
A Igreja resolveu bem que é preciso não consentir a abertura de janelas, que, no dizer do ponderado Cino de Pitóia, não têm outro fim senão descobrir os segredos dos frades ou devassar a mulher bonita do vizinho.
Tenho as minhas simpatias, mas entre umas e outras mon coeur balance, ou melhor, entre umas e outras confesso francamente, estou como o burro de Buridan, o mais filósofo dos burros: não sei para que lado me vire.
Porém, que importa que entre as minhas simpatias meu coração oscile?
O pêndulo do relógio oscila constantemente de um para outro lado, e nem por isso os ponteiros cessam de ir sempre adiante e as horas de correr velozes como que tangidas por invisível mão de fugaz divindade.