O Momento Literário/XVIII

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O Sr. Félix Pacheco é, como toda a gente sabe, uma das figuras proeminentes do simbolismo. Em tempos que já lá vão, o bizarro poeta foi quase o sacerdote magno de uma igreja que tinha por Deus Cruz e Sousa. Era a época da nevrose. Os literatos andavam pelos jardins dos delírios, surgiam diariamente revistas em que o núcleo nefelibata esgrimia tendo na destra o cacete do desaforo mostrado com orgulho ao vácuo, e, afivelado à sinistra, o broquel d'oiro da rima exótica.

O medievalismo, o intencionismo e outros males provenientes do pré-rafaelismo carcomiam a alma dos infantes poetas, e todos esses infantes, alguns dos quais ainda nos preparatórios, eram de uma ignorância religiosa e sesquipedal.

Um desses meninos vociferava de manhã à noite, na Rua do Ouvidor, os quatro pontos cardeais da poesia universal, os quatro grandes e assombrosos gênios da rima.

Sabem quais eram esses pontos cardeais?

Homero, Dante, Shakespeare e Cruz e Sousa! Tudo o mais cavalgaduras!

Foi nesse meio que apareceu o Sr. Félix Pacheco. Mas, enquanto os outros eram o cachoeirar de uma escura água que pára, espuma e em espuma se perde, ele trazia n'alma, além do branco lírio do sonho, figura da retórica simbólica, a capacidade de Vencer. A capacidade de Vencer é cousa relativa. Há por este mundo muita gente empregando o verbo. O Sr. Félix Pacheco, entretanto, venceu como queria vencer, com a consideração, o aplauso e o carinho dos que o circundam.

Homem em tais condições devia ser fatalmente um orgulhoso. Juntem a isso a certeza de que o Sr. Félix Pacheco é redator do Jornal do Comércio, profissão que tem a propriedade de desenvolver nos seus possuidores a hipertrofia da vaidade e uma altíssima noção dos próprios méritos.

O Sr. Félix Pacheco guarda um certo orgulho, isto é, manifesta um certo egoísmo numa larga e acertada cultura do seu Eu; mas longe de se solenizar, como lhe ordenava a boa sorte acarinhadora, continua frondeur e batalhador.

Logo depois de me mandar sentar numa das cadeiras do seu severo gabinete, o jovem poeta põe os dedos nas cavas do colete, um colete lindo, e fala:

— Não acredito que a prosa e a poesia contemporâneas no Brasil atravessem um período estacionário, pois tanto importa no absurdo de acreditar que no começo de século XX, em uma era de vida intensa e num país que não é propriamente a Botoculândia, o pensamento parasse!

O estilo, a Botoculândia, o absurdo, anunciavam uma descarga, eram o esperado intróito combativo. Aproximei a cadeira.

— Então há escolas?

— Escolas? Mas o meu amigo está doido!

Aproximei ainda mais a cadeira.

— Pois haverá ainda quem acredite em escolas?

Recuei a cadeira. Hein? O chefe do simbolismo sem escolas? Deus louvado! Afinal encontrava a franqueza, essa coisa tão rara que nem o próprio Diógenes se achou com coragem de a procurar!

O Sr. Félix Pacheco passou os dedos pela face escanhoada, limpou o pince-nez.

— O triunfo hoje é do individualismo. Isso de grupos literários são verdadeiras lérias para embair meninos. A única escola que conheço no Brasil é a dos alhos com bugalhos.

— A dos alhos?

— Sim, quero dizer a Academia.

— Oh!

— Qual oh! Meu caro! Essa escola nem sequer tem mobília, sofre de um mal que não sei se existe em medicina, mas que é positivamente a tuberculose dos recém-nascidos.

— Nossa Senhora!

— Qual Nossa Senhora! Medeiros e Albuquerque, que é diretor da instrução, faria uma obra de caridade se olhasse um pouco para a pobrezita. Porque com o Zé Veríssimo, positivamente a coisa não vai lá das pernas!

— Mas o Dr. José Veríssimo...

— O homem é dos tais que não enxergam uma polegada adiante do nariz. Daí talvez seja preferível: é o caso do "quanto pior, melhor". Os imortais já tiveram casa e franquia postal...

Interrompo o poeta de súbito:

— Quais foram os autores que mais contribuíram para a sua formação literária?

O Sr. Félix Pacheco pára; um leve sorriso põe-lhe no lábio o amargor da ironia. Que pensará ele? É lá possível saber o que pensa um homem por mais que o interroguemos?

Entretanto, a sua voz rouca perde os tons de cólera, e ele começa num ar de narrador, o ar que teria o eminente membro da Academia, Sr. Silva Ramos.

— Se não fora o receio de que me tomasse por vaidoso, dir-lhe-ia que só dois autores concorreram para a minha formação literária: o Amor, que é a razão de tudo, e o Tempo, que é o melhor mestre, o único talvez capaz de ensinar como havemos de dizer o nosso segredo à vida. Significa isso que evoluí como deve fazer quem quer que traga na cabeça um sonho de arte.

Este pedacinho grácil e perfumado é breve como os oásis na terra do sol. O Sr. Félix volta para mim o seu olhar.

— Estou a vê-lo explicar com ironia que fui militante e esforçado amigo de contendas e descomposturas, com a pretensão de quem vinha botar abaixo a Academia e salvar o mundo da grande praga dos Signos. Que quer? No Rio as cousas são assim. Quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar a entrada. Fora disso, o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil — elemento seguro e infalível para a subida rápida.

Imaginem o atroz dilema! — Devora ou és devorado.

O poeta continua, entretanto.

— Não sei quais os autores que mais contribuíram para a minha formação literária. Sei apenas que essa formação, ainda não ultimada, há de prosseguir como começou, isto é, num vôo livre, soberano, para a suprema beleza, que é tão inatingível como o sol, mas que constitui, como ele, a explicação da vida, a luz, a glória...

Parece um discurso. O Sr. Félix Pacheco, porém, desce dos páramos onde voava e, mais razoável e humano, acaba concordando com algumas influências menos elevadas.

— Recordo-me, entretanto, de alguns poetas que foram ou são de meu agrado e com os quais talvez tivesse tido, em épocas sucessivas, e ainda hoje tenha, a ilusão de haver encontrado longínquas afinidades.

— É quase pô-los à margem. E quais foram?

— Fagundes Varela, o meu predileto em criança; Lamartine, Hugo, Richepin, Luís Delfino, companheiros das noites de vigília do internato, e finalmente Baudelaire, Rimbaud, Regnier, Quental, Francisca Júlia, Cruz e Sousa, C. D. Fernandes.

— Ora esta!

— Para desencargo de consciência devo acrescentar que, a despeito de minha boa vontade, ainda não consegui ler nem Gonçalves Dias nem Machado de Assis...

— Qual prefere das suas obras literárias?

Sinto que esta pergunta enternece o poeta.

A sua voz aveluda-se, e, enleado numa suave modéstia, ele diz devagar:

— É boa... Das minhas obras?

Mas esta frase é o prelúdio de uma berceuse que começa pianíssimo, tem de vez em quando acordes violentos, e cujo desenho é o arabesco sutil da consciência censurando por chic coisas que ela, a consciência, acha razoáveis, boas ou talvez, quem sabe? para a idade, mesmo muito boas...

— Ainda não tenho obras. Espero ter. Por ora nada do que escrevi merece tão pomposa denominação. Obra é o que fica. Na minha bagagem há por enquanto meros ensaios. Estreei com um folheto ruim, em prosa detestável e verso pior, as Chicotadas, que escrevi por ocasião da morte de Canovas. É um mistifório de colegial apressado...

Aí o primeiro forte na orquestra:

— Talvez um pouco no gênero das Vergastas do meu cordial inimigo, o Dr. Lúcio de Mendonça, que aliás nunca tive a fortuna de ler, ao contrário do que acontece com as Harmonias Errantes do Dr. Francisco de Castro, amigo e quase parente de um conhecido homônimo de um ilustre ministro do Supremo Tribunal...

E a berceuse recomeça:

— Fiz depois O Publicista da Regência, trabalho de jornal, com dia certo para ser publicado. Releio às vezes o volume e, palavra de honra! não desisto de tirar-lhe algumas infantilidades, retocá-lo, ampliá-lo e fazer dele uma Obra, quando mais não seja, em homenagem aos reparos e à sarabanda tremendíssima de um certo jornalista meu amigo, que viera das mesas do café Paris e irrompera desabusado pela Cidade do Rio, numa fulgurante promessa de altos vôos...

Outro vôo!

— Traduzi as homilias de piedade, de Bossuet; atamanquei uma versão da Verdade, de Zola; escrevi o Périplo de Hannon para a edição especial que o Jornal deu no dia do Centenário. Mas tudo isso precisa de largas emendas e correções... Em 1901 publiquei Via Crucis, que não é positivamente uma obra.

O meu romantismo ficará na coleção do Debate, sepultado juntamente com um amor que era feito de mel rosado e borboletas. A crítica aplaudiu o volume, mas, em meio desse coro de bênçãos, houve um berro que me desconcertou um pouco. Com uma ingenuidade de Calino meditei na razão do necrológio e vi que o homem não deixava de ter razão: o contrapeso do assobio é necessário para que as palmas não embriaguem.

O fato é que Via Crucis não era sem falha, e tanto assim que depois de publicado ainda emendei muita coisa, como terá ocasião de ver na edição definitiva.

Dei finalmente o Mors-Amor, que é de ontem e a respeito do qual julgo desnecessária qualquer referência... A página melhor de Via Crucis é o Símbolo dos Símbolos; em Mors-Amor o que mais me agrada é a Canção do Louco.

Tenho dois livros de prosa que ainda não sei quando virão a lume, mas que se acham prontos; Robles e Cogumelos (figuras contemporâneas) e Cartas de Amor (prosa passional).

A berceuse terminara. Íamos recomeçar as coisas graves.

— Não lhe pergunto o que acha do jornalismo.

— O jornalismo, como o praticam hoje na Europa e um pouco por toda a parte, é uma grande escola. A ele devo tudo o que sou e tudo o que aprendi. Dirão que entre nós ainda paga muito mal, mas é bom não esquecer que estamos num país de analfabetos, onde a circulação das grandes folhas é verdadeiramente irrisória. Toda a melhor literatura brasileira dos últimos trinta e cinco anos fez escala pela imprensa. Uma ou outra exceção servirá apenas para confirmar a regra. Raros são os homens que não maldizem a própria profissão. Eu não penso assim...

— O jornalismo é um veículo de Sugestões, como me disse o mago Söndhal. Acha que seja o veículo para a formação de literaturas estaduais, para a poesia científica, para o romance social?

O Sr. Félix Pacheco riu.

— Não creio que no Brasil o romance social dê coisa melhor que o Canaã, obra estupenda e gloriosa. Ignoro o que significa poesia de ação. Deve ser muito complicada, mais complicada e obstrusa que a musa científica do Sr. Martins Júnior ou do que as Rezas do Diabo do Sr. Wenceslau de Queirós.

Sei que houve uma Mina no Pará, como sei que há várias minas por este Brasil afora; sei também que houve uma Padaria no Ceará, coisa naturalíssima onde quer que chegue um pouco de farinha de trigo; mas nenhuma dessas, ao que me conste, deu indício de criação de literatura à parte. Na Bahia há escritores de mérito; em São Paulo e Paraná também. É possível que o tempo e o meio estabeleçam diferenciações, mas a verdade é que estas ainda não apareceram.

E o Sr. Félix Pacheco levantou-se. Estava muito bem disposto. Eu também. E talvez, quem sabe? aqueles a quem zurzira...