O Momento Literário/XXV
O Sr. Mário Pederneiras, um dos mais admiráveis poetas da geração nova, recebo a seguinte carta:
"Meu caro João do Rio. — São profundos e consideráveis os quesitos do teu interessante interrogatório sobre a nossa atualidade literária.
Demandam Erudição, e tempo não me sobra para o trabalho paciente de aprendizagem e rebuscamento pelas empoeiradas e sonolentas prateleiras das Bibliotecas e dos Institutos.
Demais, eu detesto o Alfarrábio, que me traz ao espírito a tristeza das exumações, quando não representa a ilusão de uma inutilidade, porque, se têm mérito excelente a Idéia e o Princípio pontificados pela Inteligência de há séculos, vencem facilmente a profunda inexorabilidade do Tempo e dos Esquecimentos, impondo-se à feição prática dos nossos dias, em reedições cômodas e cuidadas, pois não me parece que aos progressos tipográficos de agora repugne a divulgação impressa de uma velha Idéia sã ou de um louvável Princípio secular.
Ora, para que na minha resposta houvesse a substância e o esclarecimento que procuras, era preciso que eu arrumasse por dias inteiros no silêncio pacato de um gabinete de estudos, na companhia detestável e perigosa de livros velhos, e me deixasse encharcar pelo alto Saber dos Tratados para a análise das Causas que concorreram para a minha formação literária, para o desenvolvimento dos centros literários dos Estados e para a consideração do jornalismo, principalmente no Brasil, como um fator bom ou mau para a arte literária.
Tudo isto é considerável, João; precisa Método e eu sou, por desgraça minha, dos de temperamento nervoso e dispersivo, de tal modo, que odeio os gramofones pelo horror à exatidão mecânica das reproduções e detesto os cronômetros Gondolo pelo terror à hora certa.
Já vês que me embaraçam dificuldades insuperáveis para atender à gentileza das tuas interrogações, e entre aquelas não são as menores o Método e o Alfarrábio, sem os quais, reconheço, nada de mérito se pode fazer em questões de alta literatura.
Entretanto, não me quero furtar ao teu honroso convite, que me veio surpreender nesta minha solitária vida de hoje, tão preciosamente repartida entre as cansativas atribulações do ganha-pão de todo o dia e o carinhoso consolo da Família.
E poupo assim à Posteridade a trabalheira dos rebuscamentos históricos sobre a minha formação literária e sobre os méritos que me possam proporcionar a homenagem de uma herma na quietação bucólica das alamedas do Passeio.
Tem paciência e ouve-me.
Pouco antes de 1890 eu ainda chorava amores traídos e desventuras sentimentais, com a mesma sinceridade com que choraria hoje, se me roubassem a carteira com todo o ordenado de um mês.
Era um lírico, com todos os matadores, e, se bem me lembro, usava também a sombria sobrecasaca da Escola e o mole chapéu conquistador. Era pálido e tinha insônias.
O meu lirismo tinha qualquer coisa da espontânea sinceridade de Casimiro de Abreu e do bucolismo agradável de Gonzaga. Foi na imitação destas duas boas Almas simples que eu moldei as minhas primeiras produções literárias, acrescentando-lhes, por conta própria, um cepticismo reles de filosofia colegial, que condizia admiravelmente com a minha palidez, com o meu chapéu conquistador e com as minhas insônias.
Por esse tempo o lirismo nacional agonizava envergonhado, diante dos parnasianos, que traziam a novidade da Forma impecável de Alberto de Oliveira, o Verso meridional e vigoroso de Olavo Bilac e os sonetos magistrais do Mestre do soneto brasileiro — Luís Delfino.
A nova Escola, porém, nenhuma influência exerceu sobre o meu espírito e eu continuei, por algum tempo ainda, a chorar os meus amores traídos e as mesmas desventuras sentimentais, embrulhado na mesmíssima sobrecasaca sombria, à sombra do mesmíssimo chapéu conquistador e mole.
Foi em 1890 que eu comecei a minha verdadeira formação literária na companhia de dois lindos Espíritos de Artistas — Gonzaga Duque e Lima Campos.
Era a época da boêmia rebelde dos "novos", com todo um longo cortejo de revistas efêmeras e um desperdício extraordinário de talento e de energia.
A nova Escola seduzira-me encantadoramente com a riqueza pomposa das suas teorias de Renascimento, a delicada transcendência da sua Fantasia e a alta novidade emocionante do seu Ritmo e da sua Forma.
Comecei então a considerar-me simplesmente reles e atrasado.
Que diabo! Aos 21 anos, com todo um curso completo de Humanidades, Filosofia inclusive, era ridículo viver atarraxado àquele sentimentalismo choramingas de poeta lírico e desconsolado, pois não era?
Foi quando resolvi vender a minha pobre sobrecasaca, sombriamente longa, e o meu querido chapéu, sentimentalmente mole, a um estudante de farmácia, nomeado amanuense por concurso.
Desde logo detestei os poetas líricos, inclusive Lamartine, e atirei-me desesperadamente à leitura dos ardorosos simbolistas franceses.
Anos depois publiquei a minha primeira plaquette Agonia, que mereceu a honra de umas tantas descomposturas, solenemente passadas pela venerável crítica indígena. Crítico houve que a qualificou aterradoramente de dernier cri do nefelibatismo. Engoli calado o insulto, pelo alto respeito que dedico ao venerável sacrifício intelectual da crítica.
Entretanto, João, era um livro honesto, sentidamente trabalhado, sem pose e sem intenções preconcebidas de armar ao efeito.
A crítica, porém, condenou soberanamente a minha pobre plaquette e... esgotou-se a primeira edição.
Depois, a delicada compreensão artística de Lima Campos e a delicada espiritualidade de Gonzaga Duque abriram à minha modesta inteligência horizontes mais largos e mais claros e eu me fui educando aos poucos e aos poucos conhecendo os mestres da Arte escrita.
Foi então que eu comecei a amar perdidamente a obra monumental de Flaubert, a compreender o fino estilo delicado dos Goncourt e a ler Maupassant e Gautier.
Cuidei carinhosamente da Frase e da Forma e procurei para o meu Verso toda uma feição puramente pessoal.
Publiquei então as minhas Rondas Noturnas.
A Crítica teve elogios para o meu livro. Apenas um crítico de S. Paulo conseguiu encontrar um verso errado no meu trabalho.
Mentalmente mandei-o à fava.
Eu, Lima Campos e Gonzaga Duque formávamos uma trindade solidamente unida pela mais ampla e a mais sincera das afeições.
Gonzaga Duque, pela superioridade do seu Espírito, pela sua erudição, pelo seu alto cultivo intelectual, reunira, em torno da sua doce figura sentimental, todos os rapazes de mérito da época. Era o amado de todos.
Tinham-nos como chefe dos "novos" os que o não compreendiam, os que precisavam de alguém para responsabilizar pelos cometimentos ousados daquele grupo de rebeldes. Asneiras...
Gonzaga Duque era então o que ainda é hoje, — o mais delicado Espírito de Artista da nossa época, e nada mais.
Lima Campos era também o que continua a ser hoje, — o Artista excelente da prosa larga e do estilo vigoroso.
Foram estes dois Espíritos delicados, estas duas Almas simples, as maiores influências da minha formação literária e da minha folgada vida boêmia, que começou ali, naquela brasserie da rua da Assembléia, onde o velho e paciente Knopp, o mais inflexível e manso dos alemães que tenho conhecido, nos servia, a par do topázio excelente dos seus chopps e do perfume apetitoso dos seus "sandwichs" de fígado de ganso, o cabedal precioso para as nossas futuras dispepsias.
Amo apaixonadamente esse delicioso livro de Arte, que é a Mocidade Morta, e esse magnífico trecho sentimental, encaixado na delicadeza de um conto, sob o lindo título de "Benditos Olhos", que Gonzaga Duque publicou, vai para dez anos, num jornal carioca.
De Lima Campos, venero todo o Confessor Supremo, especializando essa admirável página descritiva, que é a "Velha Mangueira", e esse lindo trecho simples do "Faroleiro".
Quais os poetas que influíram na minha formação literária? Sei lá... Só te posso dizer que tanto adoro a plástica antiga de José Maria Heredia e Lecomte, como a simplicidade delicada de Verlaine e o romantismo de Gautier.
E dos nossos?
Tenho um devotado culto pelos sonetos magistrais de Luís Delfino, o das "Naus" e da "Madalena aos pés da Cruz", e tanto admiro o Verso quente e meridional de Olavo Bilac, como a impressão catedralesca de Emílio de Menezes. E por que não dizer também que me delicio com a arte estranha de Cruz e Sousa, do "Satã", do "Acrobata da Dor", e de "Meu Filho", e que nutro uma delicada afeição pela meiga simplicidade consoladora de Cesário Verde e Macedo Papança?
Respondo agora ao teu segundo quesito.
Para desespero dos amadores da literatura de peso, em brochuras de quilo, todo o meu trabalho literário, até hoje aparecido, está enfeixado em duas plaquettes esgalgas, excelentemente impressas: Agonia e Rondas Noturnas.
A primeira, meu livro de estréia, sofreu, coitadinha, todos os maus tratos da veneranda Crítica indígena; disseram-lhe nomes feios, chamaram-na de produto postiço do preconceito escolar, e até, João, chegaram a arrumar-lhe em cima o peso vigoroso de insultos em francês. Um horror...
Lembro-me ainda de que o egrégio Sr. Antônio Sales, no seu belíssimo estilo pompadour, deu-lhe pra baixo de rijo, em meio palmo de excelente prosa gramatical, pelas colunas de honra de um diário de efêmera duração.
Desesperei, João, porque contava bastante com a autorizada opinião de S. Exª. para a minha consagração de poeta novo.
Infelicidades da vida, que queres?
Outros críticos veneráveis perderam-se num estranho labirinto de considerações e rebuscamentos, e lá fui eu levado, aos trambolhões, das asas de Ícaro aos quadros de Puvis de Chavannes, por todo o longo espaço de um substancioso rodapé do Sr. Araripe Júnior, onde se exclamava a respeito do simbolismo: "De onde provém o Universo, perguntava o Rishi ao Rig Veda?"
Descobri-me respeitoso e embasbaquei...
Foi este o mérito exterior do meu primeiro trabalho. Pôs tonta a indigesta crítica nacional e os que não puderam apresentar méritos de uma erudição medonhamente cacete, insultaram-me, chamando-me até de "mistificador".
Entretanto, João, eu havia feito convencidamente um livro honesto e sincero; era assim a minha compreensão literária na época e foi assim que a executei.
A Agonia representava valorosamente a iniciação do meu sentimento de poeta, naquele agitado período de transição, e trazia na expressão do meu verso novo e trabalhado um grande feitio de apuramento e de remodelação de toda a minha alma de sentimental.
E eu sentia gloriosamente que a minha doce e amada Poesia perdera aquele jeito capadócio de modinhas em noitadas de esbórnia ao choro melancólico dos violões gemedores.
Bastava isto para que eu dedicasse à minha modesta plaquette um carinho especial e esta grande afeição que ainda hoje lhe dedico.
Há ali dois capítulos que eu amo sinceramente — "Clamor" e "Hora viúva ", e versos que ainda hoje me encantam, como este, de uma suave observação fantasista:
Belo tempo o da messe,
Do sol que a terra e que as espigas doira...
Para quem passa nos trigais parece
Que a terra é toda loira.
E outros e muitos outros.
Para compensar a maldade da crítica dos velhos medalhões da minha terra, eu tive o largo e lisonjeiro aplauso da espiritualidade moça da minha época, magnificamente representada por Paulo Barreto, Gonzaga Duque, Félix Pacheco, Félix Bocaiúva, João Luso e tantos e tantos outros.
E dei-me por satisfeito.
A minha segunda plaquette, Rondas Noturnas, teve elogios da Crítica, e o eminente Sr. José Veríssimo chegou a adiantar que o simbolismo havia trazido aproveitamentos reais para a expressão da nossa sentimentalidade. Exultei...
Este é, por enquanto, o meu livro bem amado, mais delicadamente feito, ainda mais trabalhado e mais perfeito.
Orgulho-me de o ter publicado e sinto nele, deliciosamente, num destaque proeminente, toda a minha individualidade literária.
De todos os meus sonetos o que eu mais amo, o que mais me orgulha, é a "Sombra", e não posso deixar de destacar também essa trilogia da "Fé, Esperança e Caridade" e a "Insônia".
José Veríssimo deu as honras de uma citação ao "Sonho" e Medeiros e Albuquerque ao "Mar".
Na composição deste meu pequeno livro gastei um ano, o que prova, João, o cuidado e o carinho com que tratei de fazê-lo...
Não cito versos, porque, como bom pai, adoro todos eles.
Para maio preparo o meu terceiro livro, todo um poema íntimo de meiguice e sentimento; é a história da minha vida solitária de hoje, inspirada na delicadeza de um convívio docemente sentimental das Árvores e do Mar, do Amor e meus Filhos.
Dei-lhe o nome simples de Histórias do meu Casal e vai ser, espero, o meu melhor livro...
A tua terceira interrogação tem ares de tese a desenvolver.
É profunda. Não me ânimo a respondê-la; como já disse lá acima, demanda erudição e uma série de aptidões filosóficas que o meu modesto espírito pacato não comporta.
Mando-te, se quiseres, com boas recomendações, ao alto Saber do nosso Instituto Histórico, onde dormem todas as capacidades nacionais na espécie.
Entretanto, deixa que te diga, João, que é de franco e deplorável estacionamento a nossa atualidade literária. Estamos à espera que a Idéia Nova nos chegue pelos próximos transatlânticos franceses.
Não há luta, João, nem "literaturas rivais que se engalfinham".
Com a morte de Cruz e Sousa, o simbolismo enfraqueceu consideravelmente. Os líricos desapareceram... do mundo, e se por aí ainda algum existe, dorme comodamente na doce paz de um emprego público, sonhando apenas com o regalo das aposentadorias.
Dominam, portanto, ainda, com toda a sua glória, os parnasianos.
Felizmente, ainda não nos veio assombrar essa esquisita espécie de literatura de que falas (romance social, poesia de ação).
Deve ser detestável.
Toquemos de leve no quarto quesito. Não conheço as literaturas estaduais, como não creio na sua influência para a formação de escolas especiais. Em todo o caso, como estamos num regime federativo...
Último quesito:
João, a imprensa, no Brasil, é um péssimo fator para a arte literária, principalmente depois do desaparecimento dos dois únicos jornalistas brasileiros para quem o jornal não era simplesmente uma indústria — Ferreira de Araújo, — e este amado morto de ontem — José do Patrocínio.
Só a crítica, mas a crítica dos considerados, encontra a complacência de um agasalho na nossa imprensa diária.
O jornal de hoje tem o seu precioso espaço dignificadoramente ocupado pelo comércio, pela política e pela indústria, e não pode cuidar dessa estranha coisa inútil e maçadora que é a Arte literária. Não é, João? — Do teu , Mário Pederneiras."
Vê-se que o Sr. Mário Pederneiras, além de ser dos mais justamente admirados, admira-se também com a convicção e a certeza dos verdadeiros artistas.