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O Mulato (edição posterior)/XI

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Quando chegaram ao portão da fazenda, já a lua resplandecia, desenhando ao longo da eira a sombra espichada de enormes macajubeiras sussurrantes. Fazia um tempo magnífico, seco, fresco, transparente; podia ler-se ao luar.

O guia sacudiu com vigor a campainha e gritou:

— Ó de casa!

Seguiu-se uma algazarra de cães. Veio abrir um preto, munido de um tição, que trazia sempre em movimento, para conservá-lo aceso.

— Boa noite, tio velho! disse Manuel.

— D'es-b'a-noite, branco! respondeu o negro.

E, segurando a brida do cavalo, conduziu com este o cavaleiro até a casa.

Raimundo e o guia seguiram atrás. De longe, avistaram logo uma parede rebocada, disforme, que ao luar se afigurava um lago entre árvores. Mais perto, o lago se transformou num sobrado e os viajantes descobriram uma porta, em cujo esvazamento se desenhara o vulto varonil do Cancela, que detinha dois formidáveis rafeiros.

— Ora viva! gritou o dono da casa. E, voltando-se para os cães, que insistiam em ladrar: Safa, Rompe-Nuvens! Arreda, Quebra-Ferros!

Os cães rosnaram amigavelmente, e o fazendeiro, com sua voz forte, de pulmões enxutos, gritou para Manuel:

— Então sempre veio!.. Pois olhe, cuidei que desta vez fizesse como das outras!... Enfim, como vai essa católica?

— Assim, assim, um pouco moído da viagem... disse Manuel, entregando o cavalo ao preto e apertando a mão do Cancela. Como lhe vão cá os seus?

— Bons, louvado Deus. Ainda estão na Ave-Maria, mas não devem tardar.

Efetivamente, do interior da casa um coro abafado de vozes, que rezava cantando.

Raimundo aproximou-se, depois de apear.

— Este é o Mundico de que lhe falei! declarou Manuel, empurrando o sobrinho para a frente.

O rapaz espantou-se com a rústica apresentação, e muito mais, quando o roceiro, em vez de cumprimentá-lo, pôs as mãos nas cadeiras e começou a passar-lhe uma revista de cima a baixo, como quem examina uma criança.

— Com os diabos! exclamou, soltando uma risada. Você e seu compadre falaram-me em um menino!... — Há doze anos!

— Olha o demo! Pois, seu Mundiquinho, aperte esta mão, que é de um antigo amigo de seu pai, e não repare se não encontrar por aqui o bom trato da cidade! Isto cá sempre é roga! mas vá como o outro, que diz: "Mais vai pouca de bom coração, que muito de sovina!..."

E conduziu os hóspedes à varanda, menos o guia, que se tinha aboletado já pelos ranchos dos pretos.

— Homem! vocês vão se assentando nessas redes! Ó Pedro! vê cachimbos! Trazer a cana e o café. Ou querem antes vinho?

— Qualquer coisa serve.

— Temos aqui conhaque! ofereceu Raimundo, apresentando um frasco que trazia a tiracolo.

— Pode fartar-se com ele! desdenhou Cancela. É coisinha que não me entra cá no bico!

Encheram-se três copinhos de cana-capim.

— Vá lá à nossa! E venham despir-se para cear!

E conduziu-os a um quarto, destinado exclusivamente a hóspedes.

A casa compreendia a antiga fazenda Barroso, onde noutro tempo morou e morreu a sogra de José da Silva, e uma parte nova, feita de pedra e cal, cujo cuidado de construção revelava a prosperidade do rendeiro.

A "casa nova", como chamavam a última parte, compunha-se de um grande avarandado, no qual, fazendo as vezes de cadeiras, viam-se redes armadas em todos os cantos. No centro, que é o lugar de honra nas fazendas do Maranhão, havia um quarto espaçoso e arejado, e o mais eram paredes sem pintura e tetos sem forro, potes de barro vermelho, vassouras de carnaúba encostadas por aqui e por ali, selins estendidos no parapeito da varanda; a respeito de mobília, nada mais do que uma mesa tosca e bancos compridos de pau. O paiol da farinha era por baixo do sobrado, onde se encontravam enormes baús, forrados de couro, com umas setenta redes destinadas aos hóspedes. A adega ao lado do paiol. De fora ouvia-se o grunhir preguiçoso dos porcos no chiqueiro, e do fundo do quintal, soprado pelos ventos da noite, vinha um cheiro bom de jasmins de Caiana, lírios do Peru, resedás e manjeronas.

Quando os três voltaram do quarto, já a filha e a mulher do fazendeiro tinham vindo da reza. Manuel apareceu enfronhado comodamente num paletó de brim pardo e um par de tamancos. Raimundo não mudara de roupa, apenas banhara o rosto e as mãos e penteara os cabelos. A mulher do Cancela punha a mesa para a ceia; a filha correra a esconder-se no quarto, espiando as visitas por detrás da porta, com vergonha de aparecer.

— Anda pra cá, Angelina! gritou o roceiro. Pareces um bicho do mato! Nunca viste gente, rapariga?!

Foi ter com ela e obrigou-a a sair do esconderijo.

— Ora vamos! direito! Não estejas a esconder o rosto, que nâo tens de que o esconder!... Vamos!

Angelina apareceu, com muito acanhamento, e foi cumprimentada.

— Então! ralhou o pai. É com a cabeça que se responde?... Ah, que estás cada vez mais matuta!... Que mal te fez este pobre cabeção para o maltratares desse modo?... Olha que o rompes, estonteada!

Angelina, muito contrafeita, abaixara o seu rosto moreno, agora mais corado sob o frouxo do riso da encalistração que a dominava.

— Então, de que tanto ris, sua feiosa?...

Esta última palavra era uma injustiça que o Cancela fazia à filha; Raimundo, ao apertar-lhe a mão, desenvolta e maltratada, compreendeu logo que estava defronte de uma bonita e toleirona sertaneja, inocente e forte como um animal do campo. Era mulher de dezoito anos; mulher, porque tinha já o corpo em plena formatura — ombros fartos, colo cheio e braços desenvolvidos no trabalho ao ar livre: "Boa mulher para procriar!..." pensou ele.

— Isto que você está vendo aqui, meu amigo, é uma sonsa!... disse o Cancela, satisfeito com o ar lisonjeiro de Raimundo. Capaz é ela de virar esta casa de pernas pro ar! e parece que não quebra um prato! Olhe se a tonta já me tomou a bênção depois da reza!... Parece que empanemou com as visitas!... Anda daí bicho brabo!

A rapariga foi beijar lhe a mão, e ele ferrou-lhe depois uma palmada na rija almofada do quadril. — Esta disfarçada! Vá lá! Deus te faça branca!

Por esse tempo, Manuel conversava com a esposa do Cancela; brasileira pequenina, socada, cheia de vida, dentes magníficos, morena e de cabelos crespos. Respirava de toda ela um ar modesto de quem gosta de fazer bem; estava sempre à procura de alguma coisa para arrumar, muito ativa, muito asseada e muito trabalhadeira. Na cozinha dava sota e ás a mais pintada; sabia lavar como ninguém e assistia à roça dos pretos sem cair doente. "Era p'r'um tudo!" diziam dela os escravos. Chamava-se Josefa, e só fora duas vezes à cidade.

— Então! reclamou o fazendeiro, vem ou não vem essa merenda?... olhem que os homens devem trazer o estômago na espinha, e eu não lhes quero dar trela sem havermos manducado!

A mulher ouviu o fim da reclamação já na cozinha.

— Por que não despiu você essas tafularias? perguntou o dono da casa a Raimundo. Por cá ninguém olha para elas! Se quer, ponha-se a gosto!

— Obrigado, bem sei, estou à vontade.

E conversavam, enquanto Angelina punha a mesa. Cancela sentia-se satisfeito, loquaz; gostava de dar à língua e, quando pilhava hóspedes que o aturassem ninguém podia com a vida dele.

Entretanto, Josefa trazia já as iguarias e os homens dispunham-se a comer com apetite. À luz de um antigo candeeiro de querosene, reverberava uma toalha de linho claro, onde a louça reluzia escaldada de fresco; as garrafas brancas, cheias de vinho de caju, espalhavam em tomo de si reflexos de ouro; uma torta de camarões estalava sua crosta de ovos; um frangão assado tinha a imobilidade resignada de um paciente; uma cuia de farinha seca simetrizava com outra de farinha d'agua; no centro, o travessão do arroz, solto, alvo, erguia-se em pirâmide, enchendo o ar com o seu vapor cheiroso.

Sentia-se a gente bem ali, com aquele asseio e com aquela franqueza rude do Cancela.

— Olé! gritou este, destapando uma fumegante terrina de mundubés e fidalgos, temos peixe de escabeche?! Bravo! — E passando a examinar o que mais havia: — Bravo, bravo! moquecas de sururus! Peixe moqueado! Olhem que este não é do rio e por isso não se pilha por cá todos os dias! Tem escamas, seu Manuel!

E enchiam-se os pratos.

— Famoso! está famoso! repetia, levando à boca grandes colheradas.

— Então as senhoras não nos fazem companhia?... disse Raimundo, voltando-se para as duas.

— Qual! apressou-se o fazendeiro a responder. Não estão acostumadas com pessoas de fora... Deixei-as lá! deixe-as lá, que ao depois se arranjarão mais à vontade! Olhe, ali a minha Eva diz que não aprecia o seu peixinho, senão comido com a mão. Coisas de mulher! Deixe-as lá!

Contudo, Josefa veio presidir à mesa, ao lado do marido, e informava-se do êxito dos seus quitutes.

— Não os deixe sem provarem daquela torta de sururus, que está de encher o papo!

— Lá chegaremos! lá chegaremos! Vai apanhar mais pimentas!

— Ó amigo entorne, sem receio! Não tenha medo que o vinhito é fraco! — Seu Manuel! seu Mundico! topemos à memória do velho amigo José da Silva!

Os três beberam, e Cancela, depois de pousar o copo vazio, acrescentou com respeito, limpando a boca nas costas da mão:

— Foi um meu segundo pai!... Quando arribei por estas terras, no tempo da minha defunta patroa, D. Úrsula Santiago, não tinha de meu mais do que saúde, força e boa vontade! Pois o José que então namoriscava a filha da patroa a D. Quiterinha, meteu-me aqui, como feitor, e disse-me: "Olha lá rapaz! encosta-te por aí, que, se souberes levar o gênio da velha e mais o do vigário, podes até fazer fortuna! Ela tem lá uma afilhada de muita estimação, bem prendada e de boa cabeça!..." Vou eu — fico a servir na casa e, graças a Deus, sempre mereci a confiança de D. Úrsula. De noite vinha para a varanda conversar com ela junto com a minha Josefa, que nesse tempo era uma tetéia que se podia ver! O certo é que, ao fim de dois anos, casava-nos o senhor padre Diogo e, em boa hora o diga! tenho sido feliz, louvado o Santíssimo! — Comeu e prosseguiu: — Já fiz esta casa em que estamos ceando, levantei o engenho, meti braços na roga, plantei algodão, que aqui não havia, e tenciono, se Deus quiser, fazer no seguinte ano muitas outras benfeitorias!

— Eles já quererão o café?... perguntou Josefa, comovida com a narração do marido.

Depois do café, serviram-se de restilo de ananás e acenderam-se os cachimbos de cabeça de barro preto e taquari de três palmos. Gasta meia hora de palestra, Manuel queixou-se de que já não era homem para grandes façanhas e prensava descansar o corpo.

— Pois fica o resto para amanhã! Pedro!

— Meu senhor!

— Leva essa gente para a casa dos hóspedes e mostra-lhe o quarto que tua senhora preparou.

— Já ouvi, sim senhor.

— Então, muito boa noite!

— Até amanhã!

Manuel e Raimundo instalaram-se num quarto da casa velha, outrora morada da sogra de José da Silva; esta parte, ao contrário da outra era um sobrado silencioso e triste, que só respirava abandono e decrepitude.

Em breve o negociante ressonava; ao passo que o rapaz, estendido numa rede olhava pela janela o céu afogado em luar, passando mentalmente revista ao que fizera o dia. Os acontecimentos desfilaram no seu espírito em uma procissão vertiginosa e extravagante: vinha na frente o pedido da mão de Ana Rosa de braço dado à recusa; logo atrás o portuguesinho da vila passava cantando, com um galho de arruda na mão:

Por São Brás! Por São Jesus! Passo aqui Sem levar cruz!

E seguia-se uma infinidade de imagens fantásticas: o pássaro negro cantando a finados, a feiticeira que se transformava em ossos; e seguia-se o cônego Diogo, remoçado, cercando de desvelos a sogra de José da Silva formada imaginariamente pelo tipo de Mana Bárbara.

E Raimundo sem poder conciliar o sono, demorava-se até a pensar em coisas de todo indiferentes: o guia, preguiçoso e tristonho, a cantar no seu falsete de mulher; uma fazenda que encontraram, em que havia um homem muito gordo e idiota; as ruínas de uma casa, que de longe lhe pareceu à primeira vista uma fortaleza bombardeada, e assim, mil outros assuntos vagos e sem interesse, vinham-lhe à memória com insistência aborrecida. Afinal, chegou a vontade de dormir; mas a recusa de Manuel apresentou-se de novo e a vontade fugiu espantada. "Por que seria que aquele homem o negou tão formalmente a mão da filha?... Ora! com certeza por qualquer tolice, e nem valia a pena preocupar-se com semelhante futilidade! Amanhã! amanhã! calculava ele, saberia tudo!... E tinha até vontade de rir pelo ar grave com que o tio lhe respondera. Ora! no fim de contas não passava de alguma criancice do Manuel!... Ou, quem sabia lá? alguma intriga!... Sim! Bem podia ser!... No Maranhão o espírito de bisbilhotice ia muito longe! E não havia de ser outra coisa! Uma intriga! Mas que intriga? Ah! ele descobriria tudo! olá! Ficaria tudo em pratos limpos. Nada de desanimar!..." E, sem saber por quê reconhecia-se muito mais empenhado naquele casamento; desejava-o muito mais depois da resistência aposta ao seu pedido; a recusa de Manuel vinha dar-lhe a medida do verdadeiro apreço em que tinha Ana Rosa. Até ali julgava que aquele casamento dependia dele somente e preparava-se frio sem entusiasmo, quase fazendo sacrifício: e agora, depois do insucesso do seu pedido, eis que o desejava com ardor. Aquela recusa inesperada era para Ana Rosa o que um fundo negro é para uma estátua de mármore: fazia destacar melhor a harmonia das linhas, a alvura da pedra e a perfeição do contorno. E Raimundo procurando medir a extensão do seu amor por ela, topava de surpresa em surpresa, de sobressalto em sobressalto, pasmado do que descobria em si mesmo, espantando-se com os próprios raciocínios, como se foram apresentados por um estranho, chegando às vezes a não compreendê-los bem e fugindo de esmerilhá-los, com medo de concluir que estava deveras apaixonado. Nesta duplicidade de sentimentos, seu espírito passeava-lhe no cérebro às apalpadelas, como quem anda às escuras num quarto alheio e desconhecido.

— E que tal?... monologava. Não é que estou há duas horas a pensar nisto?...

E não podia convencer-se de que ligava tão séria importância àquele casamento, procurando até capacitar-se de que tentara realizá-lo por uma espécie de compassiva indulgência para com Ana Rosa; entretanto, revolucionava-se todo só com a idéia de não levá-lo a efeito. "Ora adeus! também não morreria de desgosto por isso!... Não faltava bons partidos para fazer família!... dispor-se a procurar noiva!... Sim, nem lhe ficava bem insistir no projeto de casar com a prima!... No fim de contas aquela recusa grosseira, seca, o ofendia!... decerto que o ofendia!... Não! não devia pensar, nem por sombras, em semelhante asneira!... definitivamente não casaria com Ana Rosa!... Com qualquer, menos com ela! Nada! Como não, se aquilo já era uma questão de brios?..." Mas com este propósito, voltava-lhe, de um modo mais claro e positivo, uma grande admiração pelos encantos da rapariga, e um surdo pesar dissimulado, um desgosto hipócrita, de não poder possuí-la.

Manuel, a poucos passos, roncava com insistência incômoda; Raimundo, depois de virar-se muitas vezes na rede, ergueu-se fatigado, acendeu um charuto e saiu para a varanda. Um morcego, na curva do vôo, rogou-lhe com a ponta da asa, pelo rosto.

O luar entrava sem obstáculo até à porta do quarto e estendia no chão uma luz branca. Raimundo encostou-se ao parapeito da varanda e ficou a percorrer com o olhar cansado a funda paisagem que se esbatia nas meias-tintas do horizonte como um desenho a pastel. O silêncio era completo; de repente, porém, a uma nota harmoniosa de contralto sucederam-se outras, prolongadas e tristes, terminando em gemidos.

O rapaz impressionou-se o canto parecia vir de uma árvore fronteira a casa. Dir-se-ia uma voz de mulher e tinha uma melodia esquisita e monótona.

Era o canto da mãe-da-lua. O pássaro levantou vôo, e Raimundo o viu então perfeitamente, de asas brancas abertas, a distanciar seus gorjeios pelo espaço. Considerou de si para si que os sertanejos tinham toda a razão nos seus medos legendários e nas suas crenças fabulosas. Ele, se ouvisse aquilo em São Brás lembrar-se-ia logo, com certeza, do tal pássaro que canta a finados. "Segundo a indicação do guia, continuava a pensar, a tapera amaldiçoada ficava justamente para o lado que tomara a mãe-da-lua. Devia ser naquelas baixas, que dali se viam. Não podia ser muito longe, e ele seria capaz de lá ir sozinho..." Veio distraí-lo destas considerações um frouxo vozear misterioso, que lhe chegava aos ouvidos de um modo mal balbuciado e quase indistingüível. Prestou toda a atenção e convenceu-se de que alguém contou toda a atenção e convenceu-se de que alguém conversava ou monologava em voz baixa por ali perto. Quedou-se imóvel a escutar. "Não havia dúvida! Desta vez ouvira distintamente! Chegara a apanhar uma ou outra palavra! Mas, onde diabo seria aquilo?..."

Foi ao quarto de Manuel, o bom homem dormia como uma criança; agora assoviava em vez de ressonar. Atravessou pé ante pé a varanda inteira — nada descobriu; voltou pelo lado oposto ao luar — ainda nada! "Seria lá embaixo?..." Desceu, mas deixou de ouvir o sussurro. "Ora esta!... A coisa era lá mesmo em cima!... Mas em cima não havia outros hóspedes, além dele e Manuel, dissera-lhe o Cancela!..." Tornou a subir, mas desta vez pela escada do fundo. "Oh! agora a coisa estava mais clara." Raimundo ouviu frases inteiras, e queixas, lamentações, palavras soltas, ora de revolta, ora de ternura. "Era de enlouquecer!... Quem diabo estaria ali falando?..."

— Quem está ai?! gritou ele, no último lance da varanda, com a voz um pouco alterada.

Ninguém respondeu, e o murmúrio misterioso caiou-se logo. Raimundo esperava todavia, possuído já de certa impaciência nervosa e com o ouvido ainda impressionado do estranho efeito da sua própria voz a perguntar no silêncio: "Quem está ai?" Decorreu um espaço que lhe pareceu infinito, e afinal reapareceu o vozear, agora porém muito mais afastado, vindo do lado contrário ao lado em que ele estava. Encaminhou-se, tão em silêncio lhe foi possível, na direção da voz misteriosa, e notou satisfeito que esta ia gradualmente se alteando.

— Oh! fez Raimundo consigo, maravilhado. Tinha ouvido bem claro o seu nome, e o de seu pai "José do Eito". Redobrou de atenção. "Estaria sonhando? Aquela voz infernal falava dubiamente de São Brás, do padre Diogo, de D. Quitéria e outras pessoas que ele não sabia quem eram. Com certeza ia ouvir alguma coisa a respeito de — sua mãe! — Seria a primeira vez! Oh! já não era sem tempo!..." Reprimiu a respiração; faz-se todo ouvidos; estava trêmulo, frio, nunca sentira comoção tamanha.

Mas a voz falou, falou, referindo-se aos acontecimentos maiores de São Brás, fazendo revelações, citando, um por um, todos os personagens, menos a mãe de Raimundo. Este, na treva, com o coração oprimido, estendia a cabeça, arregalava os olhos, arfando-lhe o peito. Nada. "Que desespero!" Mas a voz prosseguia, e ele escutava. De súbito, porém, calou-se tudo e nada mais se ouviu que o piar longínquo das aves noturnas.

Raimundo esperou, estático e sôfrego, dois minutos, quatro, cinco. Foi inútil — a voz não reapareceu. "De sua mãe — nem uma palavra!... Maldita conspiração!..." No fim de meia hora percorreu de novo a varanda; não sabia que julgar daquilo, nem o que devia fazer, mas jurava descobrir tudo. "Oh! quem quer que falara estava perfeitamente a par da história de São Brás e havia de saber alguma coisa de sua vida!..." Foi à alcova, tomou o candeeiro, deu-lhe luz, percorreu os vários lados da varanda, entrou nos aposentos abertos, desceu, andou lá por baixo, às tontas, porque estava tudo atravancado de coisas, tomou a subir, sem conseguir nada, e, aborrecido, frenético, tomou ao seu quarto, diminuiu a luz e deitou-se, sem descalçar as botas.

Não fechara a porta, de propósito; estava alerta, ao primeiro rumor saltaria. Contudo cerrou as pálpebras; a fadiga da viagem pedia repouso; já era quase madrugada. Ia adormecer.

Mas, um leve e surdo ruído despertara-o. Raimundo encolheu-se na rede e insensivelmente se lembrou do revólver que tinha a seu lado; na porta desenhava-se, contra a claridade exterior, a mais esquálida, andrajosa e esquelética figura de mulher, que é possível imaginar. Era uma preta alta, cadavérica, tragicamente feia, com os movimentos demorados e sinistros, os olhos cavos, os dentes encarnados.

O rapaz, apesar da sua presença de espírito, teve um forte sobressalto de nervos; todavia, não se mexeu, na esperança de ouvir ainda alguma revelação; o espectro porém, olhou em torno de si, viu-o, sorriu, e tomou a sair silenciosamente.

Raimundo levantou-se de um pulo e precipitou-se atrás dele que fugiu na sua frente, como uma sombra. Atravessaram o primeiro lance da varanda, o segundo e o terceiro.

O fantasma desapareceu pela porta do fundo, Raimundo acompanhou-o com dificuldade e, ao chegar lá embaixo, avistou-o já no pátio, a fugir-lhe sempre. O rapaz tinha contra si não conhecer o terreno; foi às apalpadelas e aos encontrões que conseguira atravessar a parte inferior da casa. Lá fora havia já perdido de vista a sombra fugitiva; olhou em tomo de si, caminhou à toa de um para outro lado, nervoso, irrequieto, voltando-se rápido ao menor mexer de galhos. Afinal, auxiliado pela lua, divisou em distância o vulto sinistro, que se afastava, prestes a sumir-se nas meias-tintas da noite. Então abriu contra ele numa vertiginosa carreira de boas pernas; mas o vulto embrenhando-se no mato, desapareceu totalmente.

Entretanto, os primeiros sintomas do dia avermelhavam o horizonte e nos ranchos erguia-se já a escravatura para o trabalho das roças. As poucas horas em que Raimundo encostou a cabeça, para descansar um bocado, foram cheias de sonho.

Ao levantar-se pelas sete da manhã, aborrecido e quase em dúvida se sonhara toda a noite ou se, com efeito, vira e ouvira o singular espectro. Todavia, ao almoço, conversou-se alegremente sobre o fato, e o Cancela explicou que o fantasma devia ser alguma dessas muitas pretas velhas, agregadas aos ranchos das fazendas e que naturalmente estava bêbada. E contou que, nas noites de — tambor — elas costumavam dormir; por ali, no primeiro rancho encontrado em caminho. Ali mesmo havia sempre uma súcia dessas pestes; apareciam e desapareciam, sem ninguém lhes perguntar donde vinham, nem para onde iam.

— São escravas fugidas? indagou Raimundo.

O Cancela respondeu que não. Os mocambeiros formavam grupo a parte; nunca apareciam publicamente, viviam escondidos nos seus quilombos e só se mostravam na estrada real para atacar os viajantes. Os agregados eram pretos forros, forros em geral com a morte de seus senhores, e que habituados desde pequenos ao cativeiro não tendo já quem os obrigasse a trabalhar e não querendo sair do sertão, ficavam por aí ao Deus dará, pedinchando pelas fazendas um bocado de arroz para matar a fome, e um pedaço de chão coberto para dormir; simples vagabundos, que não faziam mal a ninguém.

— Olhe, continuou ele, de São Brás tínhamos aqui a princípio três que andavam p'r'aí sem fazer nada. Dois morreram e eu enterrei-os, o terceiro não sei se ainda existe, é uma preta idiota. Talvez a que o senhor doutor viu esta noite.

E, como Raimundo pedisse mais informações, acrescentou que ela as vezes passava meses inteiros na fazenda; os pretos gostavam de ouvi-la cantar e vê-la dançar. Doida varrida! estava sempre resmungando lá consigo; mas que, de tempos àquela parte, não aparecia, era bem possível que o pobre-diabo tivesse já esticado a canela aí pelo mato.

Falou-se também da mãe-da-lua. Cancela contou velhas anedotas de estrangeiros que se perderam nas matas, seguindo o canto original daquele pássaro. Depois trataram de interesses; e fechou-se o negócio da fazenda — Raimundo estava por tudo, contanto que lhe não demorassem a partida — ardia de impaciência por visitar São Brás.

Não obstante, o Cancela instava com os dois hóspedes para que se demorassem uma semana, ou, pelo menos, alguns dias. Manual disparatou: Que loucura! Pois ele podia lá passar dias longe do seu armazém?...

Então que partissem pela manhã seguinte.

Nada! Havia de ser naquela mesma noite! Para que diabo aguentar sol pelo caminho, quando tinham um luar que nem dia?...

O jantar demorava-se e Raimundo mal podia conter a sua contrariedade. Só às três horas da tarde conseguiram levantar acampamento.

— Leve-nos a São Brás, disse ele ao guia, logo que se acharam fora do portão da fazenda.

— A São Brás? Deus me livre.

E o caboclo, depois de benzer-se, perguntou para que diabo iam a São Brás.

— Ora essa! Não é de sua conta! Leve-nos!

— A São Brás não vou!

— Essa é melhor! Não vai! Então que veio você fazer conosco senão guiar-nos?

— Sim senhor, mas é que a São Brás não vou, nem amarrado!

— Vá para o inferno! Iremos nós! Ó se'or Manuel, o senhor não sabe o caminho?

— Verdade, verdade, o homem não deixa de ter sua razão! No fim de contas que diacho vai fazer o amigo àquela tapera?...

— É boa! Ver o lugar em que nasci...

— Tem razão, mas...

— Se não quiser ir, vou só!

— Mas o senhor sabe que...

— Contam bruxarias do lugar, e há quem acredite nelas... Faço-lhe, porém, a justiça de não supô-lo desses...

Os cavalos ganhavam a Estrada Real.

— Homem, disse Manuel, lá saber o caminho, eu sei, e o guia, se não quisesse vir, poderia esperar-nos ao pé da cruz, mas... confesso-lhe: tenho meu receio dos mocambeiros... além disso... quem, como eu, ouviu as últimas palavras de meu irmão...

— De meu pai?! exclamou Raimundo vivamente. Oh! Conte-me isso!

— O senhor há de rir-se... São coisas que parecem asneira... Hoje, os moços não acreditam em nada! Mas é que certas palavras, ouvidas da boca de quem vai morrer... mexem com a gente... não acha? fazem um homem ficar assim meio aquele! Olhe, meu amigo, eu digo-lhe aqui entre nós, e o senhor não se mace, seu pai não teve a vidinha lá muito sossegada, não! Depois que casou, não se dava com pessoa alguma, e nem a própria sogra queria saber dele... vivia como que abandonado! Eu era nesse tempo principiante no comércio e quase que não podia arredar pé do trabalho, contudo, aqui vim três vezes; porém creia que não gostava de cá vir!... Era uma tal tristeza!... Doía-me de ver o José tão desprezado, tão triste, que parecia estar a cumprir uma sentença! Viajante nenhum aceitava o pouso em São Brás; preferiam dormir ao relento e as cobras! Contavam que alta noite ouviam-se constantemente gritos horríveis na fazenda, pancadas por espaço de muitas horas, correntes arrastadas; os escravos morriam sem saber de quê! Enfim, o cônego Diogo, que era o vigário desta freguesia, confessa que nunca lhe soube dar volta! E olhe, coitado! meteu-se-lhe em cabeça abençoar e proteger São Brás, e quase ia sendo vítima da sua dedicação! até ficou assim a modo de aluado! E, foi tão perseguido por cá, que o pobre homem viu-se obrigado a abandonar a paróquia! Ainda hoje, quando lhe toco nisso, benze-se todo! Pois pode crer o senhor que ele era o mais íntimo amigo de meu irmão e o único talvez que ultimamente lhe frequentava a casa; entretanto, compreenda-se lá, seu pai, já por último não o queria ver nem pintado! e, nos delírios das suas febres, estava sempre a ver fantasmas e a gritar como um doido que queria dar cabo do padre! "Quero matar o padre! — Tragam-me o padre! — O padre é que é o culpado de tudo!" Este fulano padre era o cônego! Eu não quis nunca falar nestas coisas ao compadre, porque, cismático como é, podia agastar-se comigo!...

E, depois de uma pausa:

— Ora, já vê o meu amigo que, apesar de não acreditar em almas do outro mundo, tenho as minhas razões para...

Raimundo procurava disfarçar a preocupação em que o punham as palavras de Manuel, e declarou que, se este não estava disposto a ir a São Brás, que se ficasse com o guia, ele iria só.

— Mas saiba, disse, que ao caboclo perdôo o medo, porque enfim não está na altura de certas verdades, mas ao senhor...

— Eu não tenho medo de coisa alguma, já disse!...

— Receia sempre que o diabo lhe saia ao encontro, compreendo!

E o rapaz fingiu uma gargalhada, para intimidar o companheiro.

— Não, mas é que...

— Ora deixe-se de histórias! O senhor não me parece um homem!...

Manuel cedeu afinal, e os dois tomaram a direção da tapera.

Fizeram em silêncio todo o caminho; Raimundo por muito comovido e Manuel por amedrontado.

Instintivamente, pararam em respeitável distância.

— Creio que chegamos! arriscou o moço.

E, avançando alguns passos, disse ao outro:

— Lá está ela! — Ó de casa! gritou Manuel.

Só o eco respondeu.

Adiantaram-se mais e Raimundo gritou por sua vez, com o mesmo resultado.

— Ande, senhor Manuel! Estamos a quixotear... Aqui não há viva alma!...

Mais alguns passos e estavam defronte da tapera.

Eram os restos de uma casa térrea, sem reboque e cujo madeiramento de lei resistira ao seu completo abandono.

Ia anoitecer. O sol naufragava, soçobrando num oceano de fogo e sangue; o céu reverberava como a cúpula de uma fornalha; o campo parecia incendiado.

Como era preciso aproveitar o dia, os dois viajantes apearam-se logo, cada qual prendeu o seu cavalo, e introduziram-se na varanda da casa por uma brecha que cortava de alto a baixo o primeiro pano de parede. Essa parte estava completamente arruinada e cheia de mato; os camaleões, as osgas e as mucuras fugiam espantados pelos pés de Raimundo, que ia galgando moitas de urtiga e capim-bravo.

Lá dentro a tapera tinha um duro aspecto nauseabundo. Longas teias de aranha pendiam tristemente em todas as direções, como cortina de crepe esfacelado; a água da chuva, tingida de terra vermelha, deixara, pelas paredes, compridas lágrimas sangrentas que serpeavam entre ninhos de cobras e lagartos; a um canto descobria-se no chão ladrilhado um abominável instrumento de suplício, era um tronco de madeira preta, e os seus buracos redondos, que serviam para prender as pernas, os braços ou o pescoço dos escravos, mostravam ainda sinistras manchas arroxeadas.

Os dois seguiram adiante, penetrando o interior da casa. Ao transporem cada porta fugia na frente deles uma nuvem negra de morcegos e andorinhas. O solo, empastado de excremento de pássaros e répteis era pegajoso e úmido; o telhado abria em vários pontos, chorando uma luz morna e triste; respirava-se uma atmosfera de calabouço. De um charco vizinho a casa palpitava, monótono como um relógio, o rouquenho coaxar das rãs. Os anus passavam de uma para outra árvore, cortando o silêncio da tarde, com os seus gemidos prolongados e agudíssimos; do fundo tenebroso da floresta vinham de espaço a espaço o gargalhar das raposas, e os gritos sensuais dos macacos e saguins. Era já o concerto da noite.

Manuel, um tanto comovido, contemplava demoradamente as ruínas que o cercavam, procurando descobrir naqueles restos mudos e emporcalhados, a antiga residência de seu irmão. Nada lhe trazia à lembrança uma nota ainda viva do passado.

— Vejamos agora por aqui... disse ele, passando, seguido pelo sobrinho, a um quarto, cujas janelas tinham as folhas despregadas e prestes a desabar. Era este o quarto de José...

E pôs-se a meditar.

Raimundo olhava para tudo com uma grande tristeza, infinita, sem bordas, mas fechada que nem um horizonte de névoas. "Como seria seu pai?..." pensava ele, sem uma palavra, como seria esse bom homem, que nunca se descuidara da educação do pobre Raimundo?... Quantas vezes, naquele quarto, talvez junto a uma daquelas janelas, olhando para a quinta, não pensaria o infeliz no querido filho, que tinha tão longe dos seus afagos?... E sua mãe?... Sua pobre mãe desconhecida, estaria ali, ao lado dele, ou, quem o sabia? escondida, envergonhada, a chorar as faltas em algum desterro humilhante?...

— Aqui, disse Manuel, batendo no ombro do companheiro, nasceu o senhor, meu amigo, e viveu os seus primeiros anos...

Raimundo sentia um desejo doido de perguntar pela mãe, mas não se achava com ânimo; temia agora uma inesperada decepção, uma agonia inédita, que o esmagasse de todo; receava alguma verdade implacável e fria, rija, de aço, que o atravessasse de lado a lado, como uma espada. Até ali, ninguém lhe falara nela. "É que, sem dúvida, havia em tudo aquilo um segredo de família, alguma paixão vergonhosa, uma falta horrível, talvez um crime abominável, que ninguém ousava revelar! E, no entanto, Raimundo tinha plena certeza de que aquele homem, que ali estava em sua presença, ao alcance de suas palavras, sabia de tudo e poderia, se quisesse, arrancá-lo para sempre daquela maldita incerteza!.. Quem seria ela?... essa estranha mãe misteriosa, por quem ele sentia um amor desnorteado?... Alguma senhora, bonita sem dúvida, porque causava crimes; criminosa ela própria, por amor, a inspirar loucuras a seu pai, a acender-lhe uma paixão fatal e romanesca, cheia de sobressaltos e de remorsos! E desse amor secreto e criminoso, desse adultério, que sem dúvida causou a morte de seu pai, nascera ele!... Mas, por que não lhe contavam tudo com franqueza?... Por que não lhe diziam toda a verdade?... Oh! devia ser um segredo infernal, para o esconderem com tamanho empenho!..." E, acabrunhado por estes raciocínios, humilhado pela dúvida de si próprio, miserável e triste, Raimundo percorria a casa, em silêncio.

Despertou-o de novo a voz de Manuel:

— Vamos à capela, antes que anoiteça de todo.

Entraram primeiro no cemitério. Estava arrasado. Manuel apontou para uma velha sepultura, e disse ao outro com respeito:

— Ali está seu pai!

Raimundo chegou-se para o túmulo, descobriu-se, e procurou ler na carneira alguma inscrição que lhe falasse do morto. Absolutamente nada! o tempo apagara da pedra o nome de seu pai. Ali só havia um pedaço de mármore carunchoso e negro. Deixara de ser uma tabuleta, era uma tampa. O rapaz sentiu então, mais do que nunca, pesar-lhe dentro d'alma, como uma barra de chumbo, todo o mistério da sua vida; compreendeu que sobre esta havia também uma pedra silenciosa e negra; compreendeu que o seu passado nada mais era do que outra sepultura sem epitáfio.

Enovelou-se-lhe na garganta um godilhão de soluços e Raimundo sentiu a necessidade de ajoelhar-se defronte do silêncio daquele túmulo.

Manuel afastara-se discretamente, tossindo, para disfarçar a sua comoção. O moço enxugava as lágrimas, agora abundantes e fartas; depois encaminhou-se para uma outra cova mais adiante, abrigada por uma frondosa mangueira. Estava já vazia e com a lousa fora do lugar. Naturalmente, os parentes do cadáver haviam retirado dali os ossos para alguma igreja da capital. A posição da lápida da árvore serviram de resguardo ao epitáfio; Raimundo passou o lenço por cima dele e conseguiu ler o seguinte: "Aqui jazem os restos mortais de Quitéria Inocência de Freitas Santiago, filha extremosa, esposa exemplar; Casou em 15 de dezembro de 1845 e faleceu em 1849. Orai por ela."

— Não há dúvida que, além de bastardo, descendi de uma tremenda vergonha! Meu nascimento combina aproximadamente com estes algarismos...

E, tendo monologado estas palavras, chegou ao fundo do cemitério e achou-se defronte de uma capela. Entrou, galgando três degraus escalavrados. Uma coruja fugiu espavorida. A luz triste da lua filtrava-se já pelas aberturas do telhado, mas pelas janelas entrava de rojo o quente lusco-fusco do crepúsculo. Raimundo, ao chegar à sacristia, estacou e estremeceu todo: o vulto esquelético e andrajoso, que lhe aparecera à noite, como um fantasma, ali estava naquela meia escuridão, a dançar uns requebros estranhos, com os braços magros levantados sobre a cabeça. O rapaz sentiu gelar-lhe a testa um suor frio e conservou-se estático, quase duvidoso de que aquilo que tinha defronte de si fosse uma figura humana.

Todavia, a múmia se aproximava dele, a dar saltos, estalando os dedos ossudos e compridos. Viam-se-lhe os dentes brancos e descamados, os olhos a estorcerem-se-lhe convulsivamente nas órbitas profundas, e a caveira a desenhar-se em ângulos através das carnes. Ora erguia as mãos, descaindo a cabeça; ora fazia voltas, sapateando e dando pungas no ar.

De repente deu com Raimundo e precipitou-se para ele de braços abertos. Na primeira impressão o rapaz recuava com repugnância, mas, caindo logo em si, aproximou-se da louca e perguntou-lhe se conhecia quem morara naquela fazenda.

A idiota olhou para ele, e riu-se sem responder.

— Não conheceste o José da Silva ou José do Eito?

A preta continuou a rir. Raimundo insistiu no seu interrogatório mas sem obter resultado algum. A doida o considerava fixamente, como que procurando reconhecer-lhe as feições; de súbito, deu um salto sobre ele, tentando abraçá-lo; o rapaz não tivera tempo de fugir e sentiu-se em contacto com aquele corpo repugnante. Então num assomo nervoso repeliu-a bruscamente. Ela caiu para trás, estalando os ossos contra os tijolos do chão.

Raimundo saiu de carreira para reunir-se a Manuel, porém a idiota alcançou-o, já no cemitério, e arremessou-se de novo contra ele.

— Não me toques! gritava o moço, com raiva, levantando o chico.

Manuel acudiu correndo:

— Não lhe bata, doutor! Não lhe bata, que é doida! Conheço-a!

— Mas, se ela não me quer deixar!... Sai! Sai, diabo! Olha que te...

Manuel mostrava-se agoniado e surpreso.

— Já! disse ele, intimidando a louca. Já pra dentro!

A preta retomou-se humildemente.

— Quem é ela? perguntou Raimundo, lá fora, tratando de montar. O senhor disse que a conhecia.

— Essa pobre negra... respondeu Manuel hesitante, foi escrava de seu pai. Vamos! E puseram-se a caminho.