O Mysterio da Estrada de Cintra/II

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INTERVENÇÃO DE Z.

 

Nota do Diario de Noticias. — No original da carta publicada hontem havia algumas palavras a lapis, nas quaes só fizemos reparo depois de impresso o jornal. Essas palavras continham esta observação: A photographia do mascarado foi feita em casa de Henrique Nunes, rua das Chagas, Lisboa. Talvez ahi possa haver noticia do sujeito photographado.

Antes de darmos á estampa a longa carta de F..., cuja primeira parte nos foi hontem enviada pelo medico, é dever nosso tornar conhecida uma outra importantissima que recebemos pela posta interna, assignada com a inicial Z., e que temos em nosso poder ha já tres dias. Esta carta, que tão estreitamente vem prender-se na historia dos successos que constituem o assumpto d’esta narrativa, é a seguinte:

Senhor redactor do Diario de Noticias. — Lisboa, 30 de julho de 1870. — Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como quasi toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o doutor anonymo conta o caso que essa redacção intitulou O mysterio da Estrada de Cintra. Interessava-me essa narrativa e segui-a com a curiosidade despreoccupada que se liga a um canard fabricado com engenho, a um romance á similhança dos Thugs e de alguns outros do mesmo genero com que a veia imaginosa dos phantasistas francezes e americanos vem de quando em quando acordar a attenção da Europa para um successo estupendo. A narração do seu periodico tinha sobre as demais que tenho lido o merito original de se passarem os successos ao tempo que se vão lendo, de serem anonymas as personagens e de estar tão secretamente encoberta a mola principal do enredo, que nenhum leitor poderia contestar com provas a veracidade do caso portentosamente romanesco, que o auctor da narrativa se lembrara de lançar de repente ao meio da sociedade prosaica, ramerraneira, simples e honesta em que vivemos. Ia-me parecendo ter diante de mim o ideal mais perfeito, o typo mais acabado do roman feuilleton, quando inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as iniciaes de um nome de homem — A. M. C. — accrescentando-se que a pessoa designada por estas lettras é estudante de medicina e natural de Vizeu. Eu tenho um amigo querido com aquellas iniciaes no seu nome. É justamente estudante de medicina e natural de Vizeu! O acaso não podia reunir tudo isto. Havia por tanto o intuito de fazer cobardemente uma insinuação infamissima. Isto não é licito a romancista nenhum.

A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tedio. Saindo de casa pouco depois da leitura do seu periodico, procurei o meu amigo para lhe ler a passagem que lhe dizia respeito, e pôr-me á sua disposição no caso que precisasse de mim para pedir quanto antes á redacção do Diario de Noticias a satisfação de honra, que homens de educação e de brio não poderiam de certo recusar a semelhante aggravo.

Em casa do meu amigo acabo porém de saber, cheio de confusão e de surpresa, que elle desappareceu e que é ignorado o seu destino!

Este desapparecimento e a coincidencia achada na carta do doutor levam-me desgraçadamente a acreditar que por extranhas fatalidades o meu infeliz amigo se acha involuntariamente envolvido n’este tenebroso negocio. A data do desapparecimento d’elle condiz perfeitamente com a que encontro na carta do seu correspondente. É claro que ha pois em volta da pessoa de A. M. C., uma intriga real, uma emboscada talvez, uma traição.

Serei tristemente obrigado a ter por veridica, no todo ou em parte, a noticia que leio na sua folha?

Julgo do meu dever assegurar o seguinte:

Não sei o que o meu amigo A. M. C. ia fazer alta noite a essa casa desconhecida, tendo uma chave d’ella, martello e pregos. Não sei porque se declarou auctor do assassinato, negando-o depois. Ignoro a intima verdade d’estas contradicções.

Mas o que sei, aquillo de que posso já dar testemunho, e não só eu, mas amigos, mas numerosas pessoas, é que na noite que se mostra ter sido a do assassinato elle esteve, até quasi de madrugada, em minha casa, conversando, rindo, bebendo cerveja.

Saiu talvez ás tres horas da noite.

Declaro tambem, e isto póde ser egualmente apoiado por seguras testemunhas: que ás nove horas da manhã do dia seguinte estive no quarto d’elle. Ainda dormia, acordou sobresaltado á minha voz, e tornou a adormecer em quanto eu procurava entre os seus livros um volume de Taine.

As donas da casa que o hospedam disseram-me que elle entrara pela madrugada.

— Ali pela volta das tres e meia, conjecturavam ellas.

Ora da minha casa, d’onde saiu ás tres, até casa d’elle, onde entrou ás tres e meia, o caminho que é longo, occupa justamente este espaço de tempo.

Por consequencia, respondam: quando commetteu elle o crime? O emprego do seu tempo está todo justificado: das nove da noite até á madrugada em minha casa, n’uma conversa jovial e intima; da madrugada até ás nove, n’um somno pacifico em sua propria casa.

Resta unicamente a meia hora do caminho, da qual não ha testemunhas. É crivel que em meia hora podesse ir alguem a essa casa, preparar opio, fazel-o beber a um homem, falsificar uma declaração e vir socegadamente dormir? Tem isto logica?

Demais o crime foi commettido n’uma casa, o opio foi deitado n’um copo d’agua, dado traiçoeiramente. O cadaver estava meio despido. Tudo isto indica que entre o assassino e o desgraçado houve uma entrevista, tinham conversado intimamente, tinham rido decerto; o que depois morreu tinha talvez calor, poz-se livremente, tirou o casaco, contaram porventura anedoctas, e n’um momento de sede, o opio foi dado n’um copo d’agua. E tudo isto se faz em meia hora! em meia hora! Devendo, meus senhores, descontar-se d’esta meia hora o tempo que vae de minha casa á casa do crime, e d’ahi a casa de A. M. C.! Póde isto ser?

Agora outro argumento: Eu conheço A. M. C.: o seu caracter é digno, impeccavel; o seu coração é compassivo e simples; a sua vida é laboriosa e isolada; não existe n’ella nem mysterio, nem aventura, nem pathetico: estava para casar, sem romance, trivialmente.

Eu sabia de todos os seus passos, conhecia as suas relações. Estou certo que nunca viu o assassinado, o qual, no dizer do doutor, parecia extrangeiro, sem relações aqui, e domiciliado ha pouco tempo em Portugal!

Poderia ser um encontro casual, uma rixa inesperada? Impossivel. Se o homem foi encontrado estendido n’um sophá, morto com opio!

Poderia M. C. ter sido assalariado para commetter este crime? Que loucura! Um homem da sua intelligencia, do seu caracter, da sua elevação de espírito! Além de que, hoje o emprego de homicida, regular e devidamente retribuido como uma funcção publica, não existe nos costumes.

Póde-se conceber que um homem que premedita um crime esteja até ao momento decisivo distrahido, espirituoso, desabotoando os seus paradoxos, bebendo cerveja? E que depois vá socegadamente dormir, e que um amigo que o visite na manhã seguinte encontre sobre a sua banca de cabeceira, uma chavena de chá e um livro de historia?

E dê-se isto com um homem de caracter timido, de habitos modestos, homem de estudo, sem energia de acção, e de uma notavel franqueza de impressões!

Se me perguntarem, porém, porque apparece M. C. de noite n’aquella casa com um martello, com pregos, e se declara assassino, — isso não o sei explicar.

Suspeito que haja uma grande influencia que peza sobre elle, alguem que com promessas extraordinarias, com seducções indisiveis, o obriga a apresentar-se como auctor do crime. M. C. evidentemente sacrifica-se. Por quem, ignoro-o. Mas sacrifica-se, e na ignorancia de que estas dedicações são sempre desapreciadas perante o trabalho da policia, quer expiar o crime de outro; perde-se para salvar alguem.

Com que interesse? por que seducções? Não sei explicar. Elle, tão indifferente ao dinheiro! tão rigido de costumes e de sensações!

Pois bem! M. C. póde sacrificar-se; póde-o fazer. Nós, seus amigos, é que não podemos consentil-o. O seu corpo, que lhe pertence exclusivamente, póde dal-o á infecção d’um carcere, ou ao peso d’uma grilheta. Mas o seu caracter, a sua honra, a sua reputação, a sua alma, essa pertence tambem aos seus amigos, e a parte que nos pertence havemos de defendel-a corajosamente.

Não! M. C. não foi o assassino. Dil-o a evidencia, a fatal logica dos factos, a terrivel mathematica do tempo, o conhecimento do seu caracter, e a coherencia dos temperamentos, que é uma verdade nas sciencias physiologicas. Não, não é o assassino. Se o diz, está louco, mente. Digo-lh’o claramente, em frente, diante dos seus proprios olhos fitos sobre os meus: — Se te declaras o auctor d’esse crime, mentes!

Elle tem de certo o senso moral transviado. Se me deixassem fallar-lhe!... Esclareçam-lhe, pelo amor de Deus, aquella rasão cheia de escuras nuvens da paixão e da dôr! Isto é afflictivo! Honra, amor, familia, esperança, tudo esqueceu esse homem! Que se lembre, o desgraçado, que não é só n’este mundo. Que se lembre que talvez a estas horas, no fundo da provincia, sua mãe, suas irmãs, sabem já que elle está aqui apontado como assassino! Que se lembre da terrivel deshonra, do seu futuro perdido, das horas solitarias da prisão, da atroz vergonha de um interrogatorio publico, e do echo profundo que faz na alma humana o ruido sinistro dos ferros da grilheta.

Não ponho no fim d’esta carta o meu nome, porque presinto vagamente n’este grupo de successos, confusamente conglobados perante a minha apreciação, a passagem mysteriosa e fatal de um crime que vae poderosamente na direcção do seu fito, esmagando e despedaçando os estorvos que o impecem. Ora eu não quero que a publicidade do meu nome leve os cumplices no attentado de que se trata, ou porventura a policia, a aniquillar ou a embaraçar de qualquer modo a intervenção expontanea que eu proprio vou ter no descobrimento dos reus. Conto com os meus recursos, mas preciso para os pôr em pratica de toda a minha liberdade.

Creia-me, senhor redactor, etc — Z.