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O Mysterio da Estrada de Cintra/VIII

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A Confissão d’ella

I

 

Parece-me ás vezes que tudo isto se passou n’uma vida distante como um romance escripto, que me causa saudades e dôr, ou uma velha confidencia de que a minha alma se lembra. Mas de repente a realidade cae arrebatadamente sobre mim, e creio que soffro mais então, por ter a consciencia de que não devia nunca ter deixado de soffrer. Foi bom que me determinasse a esta confissão. Contar uma dôr é consolal-a. Desde que me determinei a escrever estas confidencias, ha no meu peito um alivio e como um movimento de dôres crueis que desamparem os seus recantos.

O principio das minhas desgraças foi em Paris. Lá comecei a morrer. Lembra-me o dia, a hora, a côr da relva, a côr do meu vestido. Foi no fim do penultimo inverno, em maio. Elle estava tambem em Paris. Viamo-nos sempre. Ás vezes saíamos da cidade, iamos passar o dia a Fontainebleu, Vincennes, Bougival, para o campo. A primavera era serena e tepida. Já estavam floridos os lilazes. Levavamos um cabazinho da India com fructa, n’um leito de folhas de alface. Riamos como noivos...

Havia tres mezes que estavamos em Paris: o conde — creio que o disse — estava na Escossia com lord Grenley caçando a raposa nas tapadas do principe de Beaufort.

Houve então um baile no Hotel de Ville, um d’esses bailes officiaes em que uma multidão de praça publica se acotovella sob os lustres, brutalmente. Tinha eu acabado de dançar uma walsa com um coronel austriaco, quando a viscondessa de L..., que vivia então em Paris, veiu a mim, toda risonha:

— Conheces este nome: miss Shorn?

— Não. Uma americana?

— Uma irlandeza. Uma maravilha, O prefeito dançou com ella; a condessa Waleuska beijou-a na testa, Gustavo Doré prometteu-lhe um desenho. Vae ser apresentada nas Tulherias. No fim, queres que te diga? Acho-a insignificante. Bonitos cabellos, sim. Não se falla n’outra cousa! Mas tu deves conhecel-a...

— Porque?

— Tem dançado com Captain Rytmel, parecem intimos. Tu ris?

— Eu?

— Não... tu riste!

— Nunca rio, senão quando quero chorar, minha querida!

Tiens, tiens! — murmurou ella, olhando muito para mim.

E affastou-se. O meu pobre coração ficou em desordem. Ás vezes, na nossa alma, toca-se de repente a rebate, e as desconfianças adormecidas, acordam, tomam as suas armas, e fazem sobre nós um fogo cruel.

— Captain Rytmel approximara-se.

— Vem radiante, disse-lhe eu. Quem é miss Shorn?

Elle respondeu gravemente:

— É a amiga intima de minha irmã.

Fomos dançar. Era uma quadrilha. Pareceu-me triste.

Os movimentos da dança lembravam-me as cerimonias d’um culto. O meu ramo ficou espalhado pelo chão. N’esse instante, sem saber porquê, detestei Paris, o ruido, o imperio; desejei as sombras de Cintra, os retiros melancolicos de Bellas, cheios dos murmurios da agua.

Quiz sair. N’uma das ultimas salas uma mulher alta, loira, tomava das mãos d’um velho extremamente magro e distincto a sua sortie de bal.

Captain Rytmel, que me dava o braço, inclinou-se ao passar junto d’ella, e fallando baixo para mim:

— Miss Shorn! disse elle.

Era realmente linda. Grandes cabellos loiros, fortes, luminosos; os olhos largos, intelligentes, serios; um corpo perfeito.

N’essa noite chorei. No meu quarto as luzes e o fogão estavam accesos. Entrei, fui ao espelho precipitadamente. Deixei cair dos hombros o burnous. Ergui a cabeça, olhei a medo. A minha imagem apparecia ao fundo do quadro n’um vapor luminoso. Achei-me feia. Olhei mais. Tinha os braços nús, a cabeça erguida em plena luz. Lentamente a consciencia de que eu estava linda assim, penetrou-me, encheu-me de alegria. É tão bom ser linda!

D’ali a dois dias houve uma revista militar no campo de Longchamps. Captain Rytmel acompanhou-me. Eu tinha um logar na tribuna do Jockey. Havia uma enorme multidão. Estava a imperatriz, a córte, a diplomacia; — a tribuna resplandecia de fardas, de joias, de plumas, de reflexos de seda. As musicas, os clarins, o rufar altivo dos tambores, o surdo ruído dos batalhões em marcha, o luzir das bayonetas, as vozes de commando, o galopar dos cavallos, o brilho dos capacetes, o ceu resplandecente, como um largo pavilhão azul, tudo fazia palpitar, dava extranhos sentimentos de guerra e de gloria. E todo o corpo estremecia quando aquellas poderosas massas passavam gritando:

— Viva o imperador!

Sou uma pobre mulher, mas estremecia tambem!

A infanteria tinha passado. Rytmel fôra fallar com miss Shorn, que estava em companhia de lady Lyons. O barão Werther, embaixador da Prussia, ficara collocado junto d’ella.

Ia passar a artilheria e a cavallaria. O imperador, com o seu estado maior, tinha vindo collocar-se ao pé da tribuna do Jockey. Nós todos nos inclinavamos para ver os generaes que o cercavam: Montauban, o que tomára Pekim; Canrobert com os seus longos cabellos brancos; a espessa figura de Besaine; o altivo perfil trigueiro de Mac-Mahon, que viera da Algeria...

Miss Shorn era tambem muito olhada na tribuna do Jockey. Dizia-se que a imperatriz lhe tinha sorrido e que madame de Talouet lhe mandara, sem a conhecer, um ramo de violetas do polo.

Mas os olhos começavam a voltar-se para o fundo da planicie, d’onde a cavallaria devia partir, e corria um arrepio d’enthusiasmo perante um tão grande poder militar. N’essa manhã fallava-se em certas reservas entre o gabinete de Berlim e as Tulherias. Lembrava-se Sadowa, mil cousas que eu não sei; e olhava-se muito para o barão Werther, que sorria com o seu tumido sorriso prussiano.

No entanto, a cavallaria formara em linha. Os clarins tocavam, as bandeiras desdobravam-se: e de repente aquella enorme massa despediu á carga cerrada do fundo do campo, para a tribuna do Jockey.

Os capacetes, as couraças, as espadas, faiscavam ao sol. O chão tremia sob o compasso do galope. Sentia-se já o tinir dos ferros. Distinguiam-se já os coroneis, esbeltos moços condecorados. Ouvia-se o respirar offegante dos cavallos. O imperador tinha-se descoberto, todos na tribuna estavam de pé... De repente, por um movimento unico, toda aquella enorme columna estacou firme, vibrante, immovel, reluzente, agitando as espadas, e gritando:

— Hurrah! Viva o imperador!

A tribuna, de pé, respondeu:

— Hurrah!

Então, vendo uma tão admiravel cavallaria, uma tão grande força, tanto prestigio imperial, e tomados do indomavel orgulho das tradições ou possuidos da febre do sangue militar, muitos officiaes, que estavam nas outras alas, adiantaram-se, e elevando as espadas, gritaram:

— A Berlim! a Berlim!

Por todo o campo se ouviam agora gritos exaltados:

— A Berlim! a Berlim!

E na tribuna algumas vozes clamavam tambem:

— Sim, sim, a Berlim!

O imperador então, erguendo-se nos estribos, estendeu a mão aberta como impondo silencio, ou como dizendo: Esperae!

Áquele grito inesperado todo o estado maior se tinha apertado em torno do imperador, e eu que estava nos primeiros bancos da tribuna, vi o marechal Mac-Mahon deter subitamente o cavallo, voltar meio corpo rapidamente, e com a mão apoiada no xairel escarlate bordado a ouro, que cobria a anca do animal, erguer os olhos meio risonhos para o lado da tribuna em que estava o embaixador da Prussia. Eu segui o olhar do marechal, olhei tambem, e vi... como hei de dizel-o? Vi Rytmel. Vi-o junto de miss Shorn, curvado, fallando-lhe, sorrindo-lhe, absorto, afogado na luz dos seus olhos. Ella olhava-o, extremamente séria, com um longo olhar demorado e convencido, em que eu vi todo o fim da minha vida!

II

 

D’hai a dez dias o conde chegou; partimos para Portugal. Durante esse tempo que ainda estive com Rytmel em Paris, nem eu trahi as minhas duvidas, nem elle mostrou preoccupações alheias aos interesses do nosso amor.

Vim para Lisboa; recebia regularmente cartas d’elle. Estudava-as, decompunha as phrases palavra por palavra para encontrar a occulta verdade do sentimento que as creára. E terminava sempre — meu Deus! — por descobrir uma serenidade gradual no seu modo de sentir. Rytmel escrevia-me com muito espirito e com muita logica para poder pôr o coração no que escrevia. Evidentemente o seu amor passava da paixão para o raciocinio. Criticava-o: prova de que não estava dominado por elle. Tinha até já palavras engenhosas e litterarias. Valia-se da rethorica! Ao mesmo tempo a sua lettra tornava-se mais firme; já não eram aquellas linhas tortas, convulsivas e arrebatadas que palpitavam, que me envolviam... Era um infame cursivo inglez, pausado e correcto. Já me não escrevia como d’antes em papel d’acaso, em folhas de carteira, em pedaços de cartas velhas, que denotavam as inspirações do amor, os sobresaltos repentinos da paixão: escrevia-me em papel Maquet, perfumado! Pobre querido, o que o seu coração tinha de menos em amor tinha de mais o seu papel em marechala!

E eu? É talvez occasião de fallar aqui do meu sentimento. Duvidei fazel-o. Não queria collocar o meu coração sobre esta pagina como n’uma banca de anatomia. Mas pensei melhor. Eu já não sou alguem. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma especie de exemplo. Não vivo da minha respiração, nem da circulação do meu sangue: vivo abstractamente, da publicidade, dos commentarios de quem lê este jornal, das discussões que as minhas maguas provocam. Não sou uma mulher, sou um romance.

III

 

Não pense que digo isto com amargura. A maior alegria que eu posso ter é a anniquilação da minha individualidade.

Por isso não tenho escrupulos. As almas extremamente desgraçadas são como as creancinhas: devem mostrar-se nuas.

Além de tudo supponho que estas paginas podem ser uma revelação proveitosa para aquellas que estejam nas illusões da paixão. Que me escutem pois!

São 11 horas da noite. N’este momento quantas sei eu que soffrem, que esperam, que mentem, possuidas de um sentimento, que pouco mais lhes dá do que a felicidade de serem desgraçadas! Tu, minha pobre J..., mulher de discretos martyrios, a quem tantas vezes vi os olhos pisados das lagrimas! tu pobre Th..., que tens passado a tua vida a tremer, a receiar, a humilhar-te, a espreitar, e a fugir..., vós todas que estaes envolvidas pelo elemento cruel da paixão, quasi fóra da vida, e em lucta com a verdade humana, vós todas escutae-me!

Desde que amei, a minha vida foi um desequilibrio perpetuo. Não era voluntariamente que eu cedia á attracção, era com uma repugnancia altiva. Mil cousas choravam dentro em mim, soffria sobretudo o orgulho. Era impossivel fazer com elle uma conciliação. Reagiu sempre, protesta ainda. Parece vencido, resignado, mas de repente ergue-se dentro de mim, esbofetea-me o coração.

O que eu soffri! o que eu córei! Córei diante da minha pobre Joanna, da minha velha ama, um anjo cheio de rugas, que sabe sobretudo amar quando tem de perdoar! Córava diante das minhas criadas. Julgava-me feliz quando ellas me sorriam, tremia quando lhes via o aspecto serio. Dava-lhes vestidos, ensinava-lhes penteados. Saíam ás vezes de tarde, recolhiam alta noite; eu córava profundamente no meu coração, e sorria-lhes.

O olhar dos homens era-me insupportavel: parecia-me envolver uma affronta. Imaginava que era publica a aventura do meu coração, que era julgada como uma creatura de paixões faceis, o que dava a todos o direito de me fazerem córar. Quantas vezes sahi do theatro afogada em lagrimas! Analysava os gestos, os olhares, os movimentos dos labios. «Fulana olhou-me com desdem! Aquelle riu-se insolentemente, quando eu passei! Aquell’outra affectou não me ver.» Se n’uma modista, ao escolher um vestido, me diziam: «Esta côr é alegre, é bonita!» eu pensava commigo: «Bem sei, aconselham-me as côres vivas, ruidosas, as côres do escandalo, o género artiste!» E saía, fechava os stores do meu coupé, chorava desafogadamente.

Não me atrevia a beijar uma creança; olhava-a com uma ternura ineffavel, ia a tomal-a nos braços, mas dizia commigo: «Deixa esse pobre anjinho, não és bastante pura para lhe tocar!»

Devo dizer tudo. Córava diante do meu cocheiro! Sorria-lhe com o maior carinho: temia a todo o momento uma má resposta, uma audacia, uma palavra accusadora. Quando eu entrava para a carruagem, e elle se erguia respeitosamente, eu ficava tão satisfeita d’aquella prova de attenção, que tinha vontade de o abraçar...

Acha odioso, não?

Defino o meu estado por uma palavra precisa e terrivel: quando meu marido me apertava expansivamente a mão, eu soffria tanto como se o outro me atraiçoasse!

Ai de mim! Quantas vezes quiz eu consolar o meu orgulho, pensando nas glorias dramaticas do soffrimento e do martyrio! Quantas vezes me comparei ás figuras lyricas da paixão, que contam as legendas da sua dôr ao ruido das orchestras, á luz das rampas, e que são Traviata, Lucia, Elvira, Amelia, Margarida, Julietta, Desdemona! Ai de mim! mas onde estavam os meus castellos, os meus pagens, e o ruido das minhas cavalgadas? Uma pobre creatura que vive da existencia do Chiado, que veste na Aline, que glorificações pode dar á sua paixão?

E depois é cruel, e é forçoso dizel-o: ha sempre um momento em que uma mulher pergunta a si mesma se realmente são as grandes qualidades moraes do seu amante que a dominaram. Porque então haveria justificações. E ha uma profunda humilhação em nossa consciencia quando nos chegamos a convencer de que, se amamos um homem, não foi só a nobreza das suas idéas e o ideal dos seus sentimentos que nos dominaram, mas um não sei quê, em que entra talvez a côr do seu cabello e o nó da sua gravata. Sejamos francas; para que havemos de disfarçar a pequenez estreita das nossas inclinações? Para que havemos de colorir de ideal a origem vulgar das nossas preferencias? Não quero dizer que as elevações moraes não sejam um auxiliar poderoso á sympathia instinctiva; mas o que na realidade nos domina é o exterior de um homem. Que todas as que lerem estas confidencias dolorosas se consultem no silencio do seu coração e digam o que determinou n’ellas a sensação: se foi o caracter ou se foi a physionomia. E as que forem francas dirão que na sua vida influiu talvez mais a côr de um frack, do que a elevação de um espirito.

Sim, digo-o, francamente, d’aqui d’este canto do mundo, em que o ruido das cousas tem o som ôco da tampa de um esquife: os desvarios do coração em nós outras, nada os absolve, quasi nada os explica.

Fui nova; tive, como todas, as minhas horas de tedio assaltadas de chimeras; tive os meus romances intimos, que nasciam, soffriam, morriam entre duas flores do meu bordado. Creei aventuras, dramas apaixonados e fugas dramaticas, aconchegadamente encolhida na minha poltrona, ao canto do fogão.

Conheci mais tarde muitos caracteres femininos e a historia de muitas sensibilidades. Experimentei eu tambem os sobresaltos da paixão — e nunca vi, nunca soube que estas imaginações, que estas attracções nascessem de uma verdade da natureza, da logica das circumstancias, da irreparavel acção do coração. Vi sempre que saíam de um pequeno mundo ephemero, romantico, litterario, ficticio, que habita no cerebro de todas as mulheres.

Vejo-o d’aqui a sorrir... Não se admire de me ver fallar assim. Lembra-se d’aquellas conversações tão intimas e tão sérias na rua de...? Lembra-se do terraço de Clarence-Hotel, em Malta, quando a lua silenciosa cobria o mar? Não se recorda das minhas idéas então e d’aquellas imaginações que eu denominava gloriosamente os meus systemas? Não se lembra que me chammava então philosopho loiro? O philosopho sentiu, chorou, soffreu, teve por isso o melhor estudo. Que maior ensino que as lagrimas? A dôr é uma verdade eterna, que fica, emquanto as theorias passam. Não imagina o que tenho aprendido da vida desde que sou desgraçada! Não imagina quantas idéas rectas e precisas saem das incoherencias do pranto!

Por isso hoje não creio em certas fatalidades, com que as mulheres pretendem esquivar-se á responsabilidade. Não creio no que se chama theatralmente as fatalidades da paixão. A vontade é tudo; é um tão grande principio vital como o sol. Contra ella as fatalidades, as febres, o ideal, quebram-se como bolas de sabão.

Respondem-me chorando: a fatalidade! Mas, meu Deus! tomemos um exemplo, — a aventura trivial, a commum, o que se poderia chammar a aventura typo, o que se vê todos os dias, em qualquer rua, no primeiro numero par ou impar... a aventura que nós acotovellamos no passeio, que toma comnosco neve na confeitaria Italiana, e que se enterra ao pé de nós no Alto de S. João.

A scena é simples, de tres personagens. Eu, por exemplo, sou a mulher. Meu marido é um homem honesto e trabalhador. Cança-se, lucta, prodigaliza-se: logo de manhã sae para o seu escriptorio, ou para o seu jornal, ou para o seu officio, ou para o seu ministerio; cercea o seu somno, almoça á pressa, quebra o seu descanço. Todo elle é attenção, vigilia, trabalho, sacrificio. Para quê?

Para que os nossos filhos tenham uns bibes brancos, e uma ama aceada; para que as minhas cadeiras sejam de estofo e não de páu; para que os meus vestidos sejam de seda e talhados na Marie, e não de chita e cosidos pelas minhas mãos, de noite, a um candieiro amortecido.

Meu marido é um homem honesto, sympathico, serio, affavel. Não usa pós de arroz, nem brilhantine, não tem gravatas de apparato, não tem a extrema elegancia de ser moço de forcado, não escreve folhetins; trabalha, trabalha, trabalha! Ganha com o seu cançasso, com os seus tedios, em horas pesadas e longas, o jantar de todos os dias, o vestuario de todas as estações. A sua consolação sou eu, o centro da sua vida sou eu, o seu ideal e o seu absoluto sou eu! Não faz poemas romanticos, porque eu sou o seu poema intimo, a musa dos seus sacrificios; não tem aventuras porque eu sou a sua esposa; não tem viagens gloriosas pelos desertos nem o prestigio das distancias, porque o seu mundo não é maior do que o espaço que enche o som da minha voz; não ganhou a batalha de Sadowa mas ganha todos os dias a terrivel e obscura batalha do pão dos seus filhos...

É justo, é bom, é dedicado. Dorme profundamente porque o seu cançasso é legitimo e puro; gosta da sua robe de chambre porque trabalhou todo o dia. Julga-se dispensado de trazer uma flôr na boutonniére porque traz sempre no coração a presença da minha imagem.

Pois bem! que faço eu?

Aborreço-me.

Logo que elle sae, bocejo, abro um romance, ralho com as criadas, penteio os filhos, torno a bocejar, abro a janella, olho.

Passa um rapaz, airoso ou forte, louro ou trigueiro, imbecil ou mediocre. Olhamo-nos. Traz um cravo ao peito, uma gravata complicada. Temo o cabello mais bonito do que o do meu marido, o talhe das suas calças é perfeito, usa botas inglezas, pateia as dançarinas!

Estou encantada! sorrio-lhe. Recebo uma carta sem espirito e sem grammatica. Enlouqueço, escondo-a, beijo-a, releio-a, e desprezo a vida.

Manda-me uns versos — uns versos, meu Deus! e eu então esqueço meu marido, os seus sacrificios, a sua bondade, o seu trabalho, a sua doçura; não me importam as lagrimas nem as desesperações do futuro; abandono probidade, pudor, dever, familia, conceitos sociaes, relações e os filhos, os meus filhos! tudo — vencida, arrastada, fascinada por um soneto errado, copiado da Grinalda!

Realmente! É a isto, minhas pobres amigas, que vós chamaes — fatalidade da paixão!

E no emtanto como corresponde elle a este sacrificio terrivel?

Como tem uma aventura, não póde occultar a sua alegria, toma ares mysteriosos, provoca as perguntas; compromette-me; deixa-me para ir esperar os touros em intimidades ignobeis; mostra as minhas cartas em cima da mesa de um café, ao pé de uma garrafa de cognac; jura aos seus amigos que me não ama, e que é — para se entreter; e se meu marido o chicotear no meio do Chiado, como é vil, cobarde, vulgar e imbecil, irá queixar-se á Boa Hora!

Et voilá D. Juan!...

Não! é necessario demolir pelo ridiculo, pela caricatura, pelo chicote e pela policia correccional, esse typo indigno que se chama o conquistador. O conquistador não tem attracção, nem belleza, nem elevação, nem grandeza como typo, — e como homem não tem educação, nem honestidade, nem maneiras, nem espirito, nem toilette, nem habilidade, nem coragem, nem dignidade, nem limpeza, nem orthographia...

Perdôe-me, meu primo, estas exaltações. Sou impressionavel, vou como se costuma dizer — atraz da phrase. Esqueço ás vezes as minhas dôres modernas, para me lembrar das minhas velhas indignações.

E pensa que, por condemnar estes amores triviais, eu me absolvo a mim? Não. Apesar de ter amado um homem de todo o ponto excellente, cuja superioridade d’espirito o meu primo conhecia e amava, d’uma distincção tão perfeita e tão completa; posto que a nossa affeição tivesse vivido n’um meio tão elevado, tão nobre, tão altivo, — apezar de tudo, eu tenho-me por tão condemnavel como aquellas de quem fallei, — e julgando-me sem justiça e fóra da graça, faço penitencia diante do mundo.

IV

 

E quanto, quanto soffri então, na modestia da minha vida, no apartamento do meu segredo! Quanto desejei ser uma pobre costureira que leva o seu filho pela mão!

Dentro do meu coupé, puxado a largo trote á saida do theatro, envolvida n’um cachemire, com uma pelle de martha nos pés, e um aroma doce na seda das almofadas, quantas vezes invejei as pequenas burguezas que saíam das torrinhas, embrulhadas em disformes mantas de agazalho, pisando a lama!

No dia em que recebia cartas d’elle, saía de Lisboa, fugia, ia para o campo! Levava-as, amarrotadas e beijadas, ia para a quinta de..., penetrava nas sombras espessas, ali ficava, longo tempo, envolta no calor tépido do sol, entorpecida pelo rumor sereno das ramagens, e pelo murmuroso correr da agua nas bacias de pedra!

Oh doce vida das arvores e das plantas! passividade da relva, irresponsabilidade da agua, pacifico somno dos musgos, suave pousar da sombra! quantas vezes me consolastes, e me ensinastes a soffrer calada! quantas vezes invejei a immobilidade do vosso ser!

Era ali, só, relendo essas cartas crueis, que eu sentia o amor d’aquelle homem fugir-me como a agua de um regato que se quer tomar entre os dedos.

Que me restaria então?

Voltar outra vez á serenidade legitima da vida? Não podia, ai de mim! estava para sempre expulsa do paraizo pacifico da familia, da casta sombra do dever. Lançar-me nas aventuras e na revolta? Meu Deus! isso repugnava tanto ao meu caracter como o contacto d’um animal viscoso á pelle do meu peito.

Ficava pois sem situação na vida. Não tinha n’ella um logar definido. Entrava n’essa legião dolorosa e tristemente miseravel — das mulheres abandonadas.

A minha unica honestidade agora devia ser conservar-me captiva d’aquelle sentimento. A minha unica absolvição estava na verdade da minha paixão. Quanto mais me separasse do mundo e me désse ao meu amor; mais me approximava da dignidade. Nas situações definidas e corajosas ha sempre um lado honesto; o que repugna ao instincto casto são as conciliações hypocritas. A posição que me restava, era ser de Rytmel, só d’elle e para sempre: e eu sentia que elle se ia lentamente affastando de mim como eu me affastava de meu marido.

Era a minha entrada na expiação.

N’estes amores, o castigo não vem só do mundo: elles mesmo conteem os elementos da justiça cruel. O coração é o primeiro castigado pela mesma paixão. A punição da falta contra a honra vem mais tarde pelos juizos dos homens.

Eu estava então diante da maior miseria moral em que se póde encontrar uma mulher n’estas condições lamentaveis.

Eu amava Rytmel, Rytmel queria casar.

Que faria, meu Deus? Iria em nome da minha paixão desviar aquella existencia de homem, da linha natural, simples, humana, que leva ao casamento, á familia, ao dever?

Devia eu impedir que elle casasse? Mas não era isto impedir, abafar a legitima expansão da sua vida? Não era proscrevel-o das fecundas e serenas alegrias da familia, para o ter preso nos asperos, nos estereis sobresaltos de uma paixão romantica?

Tinha eu o direito de sequestrar aquelle homem para uso exclusivo do meu coração, encarceral-o dentro d’uma ligação illegitima e secreta, onde elle se esterilisaria, onde os seus talentos e as suas qualidades se enferrujariam como armas inuteis, e toda a sua acção social se limitaria a seguir o frou-frou dos meus vestidos? Não dava isto ao meu sentimento um aspecto de egoismo animal? Não tirava isto ao meu amor a melhor qualidade: a virtude do sacrificio?

Poderia eu prival-o de ter um dia os filhos, que fossem a continuação do seu ser e a sua immortalidade? Podia eu prival-o em nome do meu ideal de ter na velhice aquella doce e branca companheira, sob cujo olhar pacifico, o homem justo espera, socegado, o nobre momento da morte?

E era só isto?... Póde um espirito sincero acreditar na duração d’estes amores exaltados, feitos de sensibilidades e de martyrios, que não têem o dever por base, e têem a traição por origem? E por dois ou tres annos mais que esta aventura continuaria, tinha eu o direito de ir quebrar o destino da outra, d’ella, pobre rapariga, que o amava, que edificava a sua vida sobre o coração d’elle, que se preparava para ser no lar, e para sempre, a presença da graça e a consciencia viva? Não: isto não podia ser.

Mas por outro lado, era justo que eu, tendo sacrificado por elle tudo, desde o pudor intimo até á honra social, fosse agora arremessada como uma luva velha?

Eu que tinha sido tudo quando se tratava da sua imaginação, não seria nada agora porque se tratava do seu interesse? Não me exilara eu por elle, do paraizo domestico? Por elle não renunciara as alegrias pacificas da vida, e a sublime esperança d’uma morte digna? Como eu tinha sacrificado por elle a honra d’um homem, não podia elle sacrificar por mim as esperanças romanescas d’uma creança? Era justo ter-me trazido enganada, envolvida, como n’um arminho, nas apparencias do amor, ter-me conduzido com os olhos vendados, attrahida, suspensa do rythmo dos seus passos, a um logar perigoso, a uma situação intoleravel, e chegando ahi dizer-me: «Adeus agora! eu vou para a felicidade. Tu fica; mas cuidado, que para traz não pódes voltar; e se deres um passo para diante, vaes abysmar-te na infamia!».

Não, isto não deve ser: o amor não é uma creação litteraria, é um facto da natureza: como tal produz direitos, origina deveres. E os direitos do amor não os abdico.

Pois quê! Por causa da outra! Hei de dar tamanha consideração ás lagrimas que choram dois olhos alheios, que nunca vi, que estão a duzentas leguas de distancia e não hei de apiedar-me das minhas lagrimas, que escorrem aqui na minha face, e que eu aparo na tremura das minhas mãos!

«És casada» dizem-me. O que! Porque perdi mais, devo ser attendida menos! Eu, que vivo quasi fóra do mundo, sem estar ligada a nenhuma d’estas cousas superiores que amparam a vida, suspensa sobre a morte por um leve fio, por este amor unico, é por isso que devo ir com as minhas mãos quebrar esse fio, quebrar esse amor!

Ha algum direito humano que exija isto de mim? Ha alguma piedade que o veja friamente? Ha alguma consciencia que o justifique? Se ha, essa consciencia poderia ensinar a serem duros os rochedos do mar!

Mas, meu primo, tudo isto é aqui, n’este papel em que lhe escrevo. Porque na realidade eu não podia luctar com ella! Ella era a miss, a que havia de ser esposa e mãe, — vencia tudo! Elevava-se sobre as velhas affeições, sobre os velhos erros, como a imagem da virgem sobre o globo feito de barro e de lama, onde se enrosca a serpente.

Nem tentei luctar!

E foi por esse tempo que recebi uma carta em que elle me dizia: Parto para Portugal.

Que vinha fazer? O que era? Vinha despedir-se de mim? Vinha ver as minhas agonias? Vinha consolar-me? Vinha convencer-me? Vinha de novo dar-se captivo ao meu amor? Vinha. Nem elle mesmo sabia mais nada!

V

 

Rytmel chegou. A primeira vez que o vi foi em minha casa.

O conde estava então em Bruxellas. Era noite e na minha sala de musica achavam-se reunidas algumas pessoas: a marqueza de... velha legitimista, que fôra a graça da córte toureira de D. Miguel; o visconde de... moço insignificante e vagamente loiro, que eu acolhia bem, porque sua irmã, que morrera, fôra a minha intima, a minha confidente de collegio.

Viera tambem a viscondessa de... pequenita creatura petulante e mediocre, que tinha a graça de ter vinte annos, junta com a desgraça de os não saber ter e cuja especialidade era o querer parecer profundamente perversa, quando era apenas perfeitamente incaracteristica. Mas ao pé de mim, sentado n’um sophá com um abandono asiatico, estava um homem verdadeiramente original e superior, um nome conhecido — Carlos Fradique Mendes. Passava por ser apenas um excentrico, mas era realmente um grande espirito. Eu estimava-o, pelo seu caracter impeccavel, e pela feição violenta, quasi cruel, do seu talento. Fôra amigo de Carlos Beaudelaire e tinha como elle o olhar frio, felino, magnetico, inquisitorial. Como Beaudelaire, usava a cara toda rapada: e a sua maneira de vestir, de uma frescura e de uma graça singular, era como a do poeta seu amigo, quasi uma obra d’arte, ao mesmo tempo exotica e correcta. Havia em todo o seu exterior o que quer que fosse da feição romantica que tem o Satan de Ary Sheffer, e ao mesmo tempo a fria exactidão de um gentleman. Tocava admiravelmente violoncello, era um terrivel jogador d’armas, tinha viajado no Oriente, estivera em Meca, e contava que fôra corsario grego. O seu espirito tinha um imprevisto profundo e que fazia scismar: fôra elle que dissera da pallida duquesa de Morny: elle a la bêtise melancolique d’un ange. O imperador citava muitas vezes este dito, como sendo conjunctamente a critica profunda de uma physionomia e de um caracter.

Carlos Fradique tinha por mim uma amisade elevada e sincera. Chamava-me seu querido irmão. Conhecia-me desde pequena, andara commigo ao colo. Em Paris tornou-se celebre; era o que se poderia chamar um philosopho do boulevard. Tinha sido l’ami de coeur de Rigolboche, e quando ella rompeu por se ter apaixonado por Capoul, Carlos Fradique deixou-lhe no album uns versos quasi sublimes, de um desdem cruel, de um comico lugubre, uma especie de Dies irae do dandysmo... Promettia á Rigolboche que quando ella morresse elle velaria para que ainda além do tumulo ella vivesse no chic, sentindo Paris na sepultura. Algumas das estrophes que elle traduziu para mim, e que depois se publicaram, fizeram sensação e escola...

    E eu qu’inda te amo, ó pallida canalha,       Que sou gentil e bom,     Far-te-hei enterrar n’uma mortalha       Talhada á Benoiton!     Irei á noite com Marie Larife,       Venus do macadam,     Fazer sentir ao pó do teu esquife       Os gostos do cancan...     E no tempo das courses, p’lo verão        — Assim t’o juro eu —     Irei dar parte á tua podridão       Se o Gladiador venceu...

Eram dez horas. Carlos Fradique, com uma voz impassivel, quasi languida, contava as situações monstruosas de uma paixão mystica que tivera por uma negra antropophaga. A sua veia, n’aquelle dia, era toda grotesca.

— A pobre creatura, dizia elle, untava os cabellos com um oleo ascoroso. Eu seguia-a pelo cheiro. Um dia, exaltado d’amor, approximei-me d’ella, arregacei a manga e apresentei-lhe o braço nú. Queria fazer-lhe aquelle mimo! Ella cheirou, deu uma dentada, levou um pedaço longo de carne, mastigou, lambeu os beiços e pediu mais. Eu tremia de amor, fascinado, feliz em soffrer por ella. Suffoquei a dôr, e estendi-lhe outra vez o braço...

— Oh! sr. Fradique! gritaram todos, escandalisados com a invenção monstruosa.

— Comeu mais, continuou elle gravemente, gostou e pediu outra vez.

Fallava com um sorriso fino, quasi beatifico. Nós iamos revoltar-nos contra a cruel excentricidade d’aquella historia.

N’este momento vi á porta da sala, trémula, com um grande espanto nos olhos, chamando-me baixo, a minha criada Betty. Fui: ella tomou-me pela mão, foi-me levando, e no corredor, olhando com receio, abrindo n’um grande pasmo os braços, disse-me ao ouvido:

— É elle!

Encostei-me desfallecidamente á parede, sentindo parar o coração.

Betty, com passos discretos foi abrir a porta do meu toillette. Entrei. De pé junto d’uma mesa, extremamente pallido, estava elle. Apertei as mãos sobre o peito, fiquei immovel, suspensa. Elle caminhou para mim com os braços abertos, para me envolver; eu deixei-me cahir aos seus pés, e calada beijei-lhe os dedos. Elle tinha ajoelhado commigo, e com as mãos enlaçadas, os olhos confundidos, choravamos ambos. Eu só dizia n’um murmurio de lagrimas:

— Ha tanto tempo!...

— Minha senhora, minha querida menina, dizia Betty da porta, e aquella gente, santo Deus, que ha de dizer?

Eu não a escutava. Foi elle que disse sorrindo:

— Tem razão, Betty, tem razão! É necessario voltar á sala.

E deu-me o braço. Entrámos: elle grave, eu meio desfallecida, abstracta, com os olhos marejados de lagrimas e um sorriso vago nas feições.

Disse o nome de captain Rytmel, e a sua antiga amisade com o conde. Vi a marqueza sorrir levemente.

E voltando-me para Rytmel:

— O sr. Carlos Fradique, disse eu, antigo pirata.

Os dois homens apertaram a mão.

— A senhora condessa lisongeia-me extremamente. Eu fui apenas corsario, disse Carlos.

Sentei-me ao piano acordando, a fugir, o teclado. Assim via bem Rytmel. A luz envolvia-o. Estava mais pallido, o seu rosto apresentava linhas mais graves. A testa tinha perdido a sua pureza: havia uma ruga estreita e funda que a dominava.

Fradique continuava fallando. Agora fazia a critica das mulheres do Norte.

— A irlandeza, dizia elle, tem mais que nenhuma mulher, a graça... Sobre tudo a que vive junto dos lagos! A melhor religião, a melhor moral, a melhor sciencia para um espirito feminino — é um lago. Aquella agua immovel, azul, pallida, fria, pacifica, dá um extremo repouso á alma, uma necessidade de cousas justas, um habito de recolhimento e de pensamento, um amor da modestia e das cousas intimas, o segredo de ser infinito, sendo monotono, e a sciencia de perdoar... Exijo na mulher com quem casar, que tenha as unhas rosadas e polidas, e um anno de convivencia com um lago!

Eu vi Rytmel córar de leve e torcer nervosamente o bigode.

Pelo lucido instincto da paixão, comprehendi que entre aquella glorificação dos lagos, e os occultos pensamentos de Rytmel, havia uma affinidade. Lembrou-me a revista de Longchamps, os louros cabellos irlandezes de miss Shorn, e voltando-me para Carlos Fradique:

— Meu caro amigo, um pouco do seu violoncello, sim?

A sala abria sobre os jardins. A placida respiração do vento fazia arfar as cortinas. Carlos Fradique começou a tocar uma ballada das margens do mar do norte, de um encanto singularmente triste. Sentia-se o chorar das aguas, o feerico correr das ondas, o compassado bater dos remos de um pirata norvegio, a fria lua. Eu tinha ido com Rytmel para junto da varanda, e emquanto a pequena melodia soava nas cordas do violoncello, lembravam-me as antigas cousas do meu amor, o Ceylão, as noites silenciosas em que elle me jurava a verdade da sua paixão e a voz do mar parecia uma affirmação infinita; lembravam-me os terraços de Malta batidos da lua, as moitas de rosas de Clarence-Hotel, os prados suaves de Ville d’Avray; via-o ferido, pallido sobre as suas almofadas; via-o a bordo do Romantic, commandando as manobras da fuga, chorando os desastres do amor... E estas memorias emballavam-se no meu cerebro, confundidas com as melodias do violoncello.

VI

 

Ao outro dia eu devia encontrar-me com elle n’essa fatal casa n.^o... Fui, como sempre, toda vestida de preto, envolta n’um grande veu. Estava extremamente pallida, palpitava-me o coração de susto. Era aquelle um momento de transe. Eu decidira ter com Rytmel uma explicação clara, definitiva, sem equivocos... Uma palavra que elle dissesse, sêcca ou indifferente, um gesto impaciente, e eu considerar-me-hia como abandonada, exilada da vida; retirava-me para um chalet da Suissa, ou para Jerusalem, ou para a melancolia d’um claustro no sul da França. Tinha determinado assim a solução do meu destino.

Quando cheguei á casa n.^o... elle não estava ainda. Fiquei alli muito tempo, immovel n’uma cadeira. Os ruidos da rua chegavam-me como no fundo d’um sonho. A sala tinha uma luz esbatida, atravez dos vidros foscos como os globos dos candieiros. Eu sentia aquella impressão indefinida, que nos vem quando estamos durante muito tempo n’um logar socegado e triste, olhando o silencioso caír da chuva.

De repente a porta gemeu docemente, elle entrou.

Vinha do campo. Tinha colhido para mim um pequenino ramo de flôres miudas das sebes. Veio apoiar-se nas costas da minha cadeira, e deixou-m’as cahir no regaço...

Depois, fallando-me baixo, junto da face:

— Andei todo o dia a pensar em si, á travers champs.

Não respondi, e com os olhos errantes nas côres do tapete, desfolhei cruelmente as pequeninas flôres dos prados. Tinha um contentamento amargo em torturar aquelles delicados seres, que vinham d’elle, e que me parecia terem d’elle aprendido a mentir.

— Pensei constantemente em si, e o passeio foi encantador, repetiu com uma voz docemente insistente.

Eu ergui os olhos para elle.

— Responda-me: sabe mentir?

— Mas, meu Deus, disse elle, affastando-se, parece que me quer hoje mal, minha querida filha!

Não respondi; mas o meu regaço estava coberto de flôres mutiladas.

Elle então ajoelhou ao meu lado, e tomando-me as mãos, espreitando os meus olhos impassiveis, ficou esperando, n’uma contemplação amante e paciente, que eu quebrasse aquella imobilidade. Eu sentia todo o meu ser pender para elle, n’uma attracção insensivel; mas dominava-me. Até que por fim elle ergueu-se lentamente, arremessou o corpo para um sofá, e ali ficou, como refugiado, folheando um volume de Musset, que estava sobre a mesa...

Levantei-me, tirei-lhe arrebatadamente o livro das mãos:

— Sabe o que é? Não o comprehendo, e é necessario que me diga, mas francamente, claramente, syllaba por syllaba, o que tem! Não me ama, é claro. Escusa de protestar. Vi-o logo pelo tom das primeiras cartas que me escreveu de Londres. E agora vejo-o pelo seu olhar, as suas menores palavras, o seu silencio, até. Ha uma cousa qualquer, não sei qual, mas ha. A verdade é que me abandona, que me não ama. É necessario que se explique. Isto não póde ser assim. Soffro. Se soubesse! chorei toda a noite...

E recomecei a chorar deante d’elle, com soluços que me quebravam. Elle tinha-me tomado as mãos e dizia-me baixo as cousas mais tocantes, em que havia as ternuras do amante e as consolações do amigo. Affastei-o de mim, e comprimindo o pranto:

— Não, não, é necessario que me diga claramente tudo. Eu não sei o que te quero perguntar ou não me atrevo talvez... Mas tu sabes o que me deves responder... Dize-me a verdade...

Elle, cruzando os braços, respondeu-me, com uma extrema placidez:

— Mas, minha querida amiga, a verdade é que as illusões do seu espirito são a nossa desgraça. Não é culpa sua, sei: é uma fatalidade do caracter feminino. É-lhes insupportavel a serenidade. Na vida pacifica procuram o romance, no romance procuram a dôr. É necessario que esses pequeninos e graciosos craneos tenham sempre a honra de cobrir uma tempestade. Que quer então que lhe diga? Não vim a Portugal espontaneamente? Não tem encontrado sempre ao seu lado o meu amor, fiel como um cão? — Que mais quer? Acha-me reservado, diz. E se eu tivesse as violencias d’Othelo, achava-me de certo ridiculo! De resto, sabe-o bem, amo-a! Digo-lh’o aqui, sentado n’um sofá, de sobrecasaca, em uma casa que tem numero para a rua, e vou d’aqui a pouco; n’um coupé, jantar, jogar talvez o xadrez, vestir — quem sabe? — uma robe de chambre! É lamentavel tudo isto, bem sei. E é por isto que não tem confiança em mim? E diga-me francamente: se eu estivesse aqui nos paroxismos d’Antony, ou tivesse uma toilette veneziana, ou se isto fosse uma abbadia feudal, ou se eu partisse d’aqui para conquistar Jerusalem, diga-me — tinha mais confiança?

— Tudo isso não quer dizer nada.

— Oh minha querida amiga...

— A sua querida amiga, interrompi, nada mais pede que um coração franco e recto. São tudo pois imaginações minhas? Não ha nada que nos separe? Pois bem, vou dizer-lhe uma cousa e juro-lhe que é irremissivel, juro que o digo em toda a frieza do meu juizo, sem exaltação e sem paixão, com o discernimento mais livre, o calculo mais positivo...

— Mas, meu Deus! Diga...

— E esta resolução, acceita-a?

— Uma resolução... E o que envolve ella?

— Envolve a unica cousa possivel, a unica que me fará crer em si, com a mesma fé com que creio em mim. Acceita-a?

— Mas como não hei de acceitar?...

— Pois bem, comecei eu.

E tomando-lhe as mãos, disse-lhe junto da face n’uma voz ardente como um beijo:

— Fujamos ámanhã.

Rytmel empallideceu levemente e retirando de vagar as suas mãos d’entre a pressão das minhas:

— E sabe que é uma cousa irreparavel?

— Sei.

Elle sentara-se, com os olhos sobre o tapete, e eu no emtanto, de pé junto d’elle, com a minha mão pousada sobre o seu hombro, dizia-lhe como no murmurio de um sonho:

— Pensava n’isto ha um mez. Vamos para Napoles. Vamos para onde quizer. Adoro-te... É como uma pessoa que se deixa adormecer. Adoro-te, e quero viver comtigo...

Pousei-lhe a mão sobre a testa, ergui-lhe a cabeça, para ver a resposta dos seus olhos; estavam cerrados de lagrimas.

— Meu Deus! Rytmel, tu choras...

— Não, não, minha querida! estava pensando em minha mãe, que não torno talvez mais a ver... Acabou-se... Amo-te, amo-te... e... Avante!

E tomou-me nos seus braços, ardentemente, como sellando um pacto eterno.

VII

 

Fui logo para casa, chamei precipitadamente Betty.

— Betty, disse eu fechando a porta do quarto, Betty, depressa, quero dizer-te uma coisa. Não me digas que não...

— Santo Deus! Socegue, descance, minha querida menina! Jesus, como vem pallida!

— Betty, é uma cousa irreparavel... devia ser. Foi pensada a sangue frio. Vês como estou tranquilla, sem exaltação, sem nervos. É uma resolução digna. Betty, não me digas que não!...

— Mas, minha rica senhora...

— Não se podia voltar atraz. Demais, sou feliz assim, tão feliz, tão feliz!

— Bem feliz, ao menos?

— Doidamente. E se não fosse assim, morria...

— Mas então...

— Fugimos ámanhã.

Ella estremeceu toda, deitou-me um grande olhar em que appareciam lagrimas, e suffocada, com as mãos juntas:

— E eu?

Atirei-me aos seus braços:

— Pois havias de ficar, Betty? Tu vens comnosco, Betty.

E correndo pelo quarto, abria os guarda-vestidos, tirando roupas, batendo as palmas, e gritando:

— Arranja, Betty, arranja tudo. Depressa! Arranja, arranja!

Mandei pôr a caleche. Eram quatro horas. Desci o Chiado. Ia alegre, triumphava: a minha vida apparecia-me, larga, cheia, explendida, coberta de luz. Entrei nas modistas, olhei, escolhi, comprei, com impaciencias de noiva, e recatos de conspirador. Apertei a mão a algumas amigas.

— Partes? perguntavam-me.

— Para França.

— Com a guerra?

— Não ha guerra. E havendo, não é interessante ver matar prussianos?

Á porta do Sassetti, encontrei Carlos Fradique.

— Sabe que parto ámanhã? disse-lhe eu.

— Sabe que parto hoje? respondeu-me. Ia lá, apertar-lhe a mão.

— Mas é inesperado isso! Vae para França? Para quê?

— Ver os campos de batalha ao luar, ou aos archotes. Deve haver attitudes de mortos muito curiosas.

— Mas vae debalde. Não ha guerra. É positivo. Por isso eu vou para Italia.

— Vae para Italia?... Mas, então... Ah! Vae para Italia? Minha pobre amiga, quem sabe se isso devia ser! Em todo o caso, em qualquer parte, ou feliz, ou triste, para a consolar, ou para fazer um trio com o meu violoncello, sou seu, adesso e sempre.

Apertou-me a mão. Não sei porque, aquellas palavras deram-me uma sensação triste.

Quiz ir ao Aterro. A tarde caía. A agua tinha uma immobilidade luminosa. Do outro lado os montes estavam esbatidos n’um vapor azulado e suave. Sobre o mar havia nuvens inflammadas, d’uma côr fulva, como no fundo d’uma gloria. Algumas velas passavam rosadas, tocadas da luz.

Sentia-me vagamente melancolica. O rio, aquellas casas triviaes, todos aquelles aspectos que eu conhecia, que eram para mim até ahi quasi inexpressivos, appareciam-me pela ultima vez que os via, com uma feição sympathica. Tive uma saudade piegas daquelles logares: quiz sorrir, escarnecer; mas a verdade era que aquella paisagem, o pesado hotel Central, o terraço de Braganza-hotel, a grosseira e escura rua do Arsenal, todas essas cousas alheias a mim, me despertavam inesperadamente o desejo instinctivo de tranquillidade, de familia, de situações pacificas, fazendo destacar no fundo da minha vida, n’um relevo negro, a aventura que eu ia intentar; e apparecendo-me como um ajuntamento de velhos rostos amigos que se despedem, faziam-me pensar nas cousas irreparaveis, no exilio e na morte!

A minha carruagem subia a passo a rua do Alecrim. As luzes accendiam-se. O ceu estava ainda pallido.

Uma senhora passou, só, a pé, levando uma creança pela mão: era uma mulher nova e distincta; parecia feliz. O pequenino, loiro, gordo, ria, palrava n’aquella linguagem mysteriosa e doce, que é o que ficou ainda na voz humana do a b c do ceu.

Como seria bom ser assim uma mulher pacifica, com um equilíbrio suave no coração, uma toilette fresca, o amor das cousas justas, e um filho pela mão! Se eu fosse assim seria alegre, amavel, passearia, daria bonbons ao meu pequerrucho, tral-o-hia vestido de côres leves, com uma flôr no cinto; conversaria com elle, e á volta, depois do cansaço do meu passeio, amaria a tranquillidade da minha vida. Elle adormeceria sobre o sofá. A janella estaria aberta. Grandes borboletas brancas voariam em volta do candeeiro; eu, ajoelhada, procuraria despil-o, sem o acordar, cantando, baixo, em segredo, uma melodia dormente de Mozart, e no entretanto a penna do pae rangeria, a um canto, sobre o papel. Ó perfumados paraizos da vida! como eu me affasto de vós!

Assim pensava, quando cheguei a casa. No meio do meu quarto estavam fechadas, affiveladas, sobrepostas as minhas malas. Ao pé uma grande pelle, apertada na sua correia. Tudo estava prompto, deviamos partir na manhã seguinte. As minhas idéas simples debandaram.

Senti um extremo desejo de liberdade, de mares abertos, de paizes extensos e distantes, que se atravessam ao galope da posta ou na velocidade d’um wagon. Era noite. Não pedi luz. O luar entrava no quarto atravez das arvores do jardim. Sentei-me á janella.

A minha situação appareceu-me então com o prestigio de um bello romance. Mil imaginações e phantasias cantavam no meu cerebro. Sentia-me á entrada de uma vida de perigos, de extasis, de glorias. Via-me na tolda de um paquete entre os perigos de um naufragio: ou n’uma serra espessa, por um grande luar, n’uma companhia de contrabandistas que cantam á Virgem; ou no silencio de uma caravana escoltada de beduinos, acampando no monte das Oliveiras, defronte de Jerusalem. Percorreria a Italia; entraria nas cidades ao galope dos cavallos, ao accender o gaz, quando a multidão enche os corsos entre fileiras de altivos palacios da Renascença. Via-me em Napoles, na bahia, por um luar calmo: dormindo sob as vinhas em Ischia; ou na frescura das grutas do Pausilippo, onde ainda choram as nayades... A porta abriu-se de repente, um criado entrou com uma carta. Não vi a letra do enveloppe, não olhei sequer, mas sentia-a! Veiu luz. Era verdade, era de Rytmel! Tive-a longo tempo na mão, incerta, trémula. Pul-a em cima da pedra d’uma console, fui olhar-me ao espelho, vi-me pallida. No emtanto a carta attrahia-me, parecia-me que luzia sobre o marmore branco. Tomei-a, pesei-a, senti-lhe o aroma, e de vagar, cançada, suspirando, com os braços vergados ao peso d’ella, fui-a lentamente abrindo.

VIII

 

Transcrevo textualmente essa carta terrivel:

«Querida: — Tenho aqui no meu quarto, diante de mim, as minhas malas fechadas e afiveladas: Tenho o meu passaporte... É verdade! não te esqueças de tirar o teu. Escrevi a minha mãe. Escrevi a um amigo querido, que vive na intimidade da minha vida. Por isso bem vês que te escrevo, na austera firmeza da tua resolução. Sou só. O meu destino tenho-o aqui preso na minha mão, como um passaro, ou como uma luva: posso pousal-o sobre a tolda d’um paquete, pol-o n’uma mesa de jogo em cima d’uma carta, collocal-o na ponta d’uma espada, ou fechar-t’o na mão e dar-t’o. Mas tu pelas condições da tua vida tens um logar definido no mundo, limitado e circumscripto. Estás presa, por um annel de casamento, a uma ordem de cousas, a um certo numero de leis, e és na vida como um navio ancorado no mar. Por isso é justo que antes de te separares violentamente do teu centro legitimo, eu, que tenho a experiencia das desgraças, das viagens, e do espectaculo do mundo, te diga algumas palavras, que, se não me tornarem mais amado ao teu coração, tornar-me-hão mais estimado ao teu caracter. Fias-te de mais no amor, minha doce amiga! Abstrae n’este momento de mim, da minha honra e da minha fidelidade. Fallo do amor, lei ou mysterio ou symbolo, força natural ou invenção litteraria. Fias-te de mais no amor! Aquelle amparo superior, aquelle apoio solido e protector, que todo o espirito procura no mundo, e que uns acham na familia, outros na sciencia, outros na arte, tu parece quereres encontral-o sómente na paixão, e não sei se isso é justo, se isso é realisavel!

Creio que te fias de mais no amor! Elle não construe nada, não resolve nada, compromette tudo e não responde por cousa alguma. É um desequilibrio das faculdades; é o predominio momentaneo e ephemero da sensação; isto basta para que não possa repousar sobre elle nenhum destino humano. É uma limitação da liberdade, é uma diminuição do caracter; especialisa, circumscreve o individuo é uma tyrannia natural, é o inimigo astuto do criterio e do arbitrio. E queres que tenha esta base a tua situação na vida? E crês na estabilidade do amor, tu?... Sim, é possivel, emquanto elle viver do imprevisto, do romance e do obstaculo; emquanto necessitar do coupé de stores cerrados; mas logo que entre n’um estado regular, que se estabeleça definidamente para durar, que se organise, que se economise, extingue-se trivialmente; e quando quer conservar-se, tem a miseria de se assimilhar ás chammas pintadas d’um inferno de theatro. E então, desde o momento que o amor desapparecesse, que rasão de ser tinha a tua vida, e que justificação tinha que dar de si o teu incoherente destino? Ficavas sem uma situação definida: tudo te era vedado, ou pela força das leis sociaes, ou pela altivez da tua honra. Recuar para as cousas legitimas, arrepender-te, era impossivel: o arrependimento é um facto catholico, não é um facto social. Continuar e persistir em viver pelo amor era um equivoco hypocrita, e poderias um dia encontrar-te a viver na libertinagem.

Imaginas hoje que o amor é a unica tendencia, a unica preoccupação da tua vida... Não: é apenas idéa dominante na tua natureza. Ha outras exigencias, que hoje não sentes chamarem dentro de ti, porque teem sido plenamente satisfeitas no meio legitimo em que tens vivido; mas quando, mais tarde, estiveres retirada de tudo, fechada no amor como n’uma concha, sentirás então amargamente que te falta o quer que seja que é a sociedade, a opinião, o centro d’amisades, o rang, as consolações incomparaveis que dá a estima dos que nos saudam. E o não encontrar então no mundo o teu logar, elegante, avelludado, agaloado, emplumado e coroado, dar-te-ha a sensação do abandono; e as consolações que então te quizer ministrar o amor pela sociedade que te falta, encontrarão aos teus olhos o mesmo tedio que encontrariam agora as consolações da sociedade pelo amor que te fugisse. Uma mulher que foge com o seu amante, só pode ter um logar no Demi-Monde; ou então um logar equivoco nas salas, quando é celebre por um talento ou por uma arte. Ora tu não quererás ir para a Italia frequentar, em Napoles, Madame de Salmé, nem quererás cantar n’um theatro, nem commetter a inconveniencia de escrever um livro. A viver modesta, tens de viver triste; a viver radiante, tens de viver humilhada. E pensas que pódes, por um anno sequer, viver na intimidade absoluta e no segredo?

O segredo, o refugio, um ninho perfumado n’um quinto andar, são cousas extremamente doces, no meio da sociedade e das relações do mundo; a publicidade official da vida dá então um encanto extranho áqueles momentos de mysterio. Mas a perpetuidade do mysterio deve ser egual áquella legendaria tortura da beatitude eterna! Quando dois entes se encontram pelas fataes condições do seu procedimento, obrigados a viverem um do outro, um para o outro, um eternamente no segredo do outro, quando isto se não passa na ilha de Robinson, nem entre dois discipulos de Sedwinborg, nem entre dois desgraçados cheios de fome — mas n’uma cidade ruidosa e viva, entre duas pessoas positivas e educadas pelo segundo imperio, e que têem as complacencias do luxo, crê que deve ser amargo.

E depois, pensa! A nossa vida arrastar-se-ha tristemente, de paiz em paiz, sem um centro amado, sem uma familia, sem um fim. Não teremos, nem durante a existencia, nem no grave momento da morte, a serenidade de quem é justo. A nossa vida será como a das sombras romanticas de Paulo e Francesca de Rimini, levadas pelo vento contradictorio. Morreremos emfim como dois seres estereis, que nada crearam, e que não têem quem fique na terra com a herança do seu caracter; e quando todos pelos seus filhos ganham a unica justa immortalidade, nós sómente seremos mortaes, e para nós mais que para ninguem será terrivel a lembrança do fim! Perdôa que te escreva estas cousas. Mas fiz o meu dever. E agora posso livremente, insuspeitamente, dizer-te que me sinto feliz, e que o momento d’amanhã, quando virmos desapparecer a terra e nos acharmos sós, no infinito mar, — será para mim tão bello, que só por elle julgarei justificada a minha vida.»

Quando acabei de lêr esta carta, sentei-me machinalmente deante das malas, com os olhos fixos, como idiota. Abri uma gaveta, tirei não me recordo que pequeno objecto de renda, e tornei a fechar, com um movimento automatico, lugubre, e a ausencia absoluta da consciencia e da vida. Chamei Betty:

— Betty, que horas são?

— Onze, minha senhora.

— Dá-me agua, tenho sede. Dá-me agua com limão...

Quando ella sahiu fui encostar a cabeça á vidraça, a olhar o movimento ondeado e lento das ramagens escuras. A lua pareceu-me regelada. Betty entrou.

— Betty, disse-lhe eu n’uma voz sumida, sabes? Tenho medo de morrer doida...

Ella olhou-me, e viu no meu rosto uma tal expressão d’angustia, que me disse:

— Que tem, meu Deus, que tem? Chore, minha rica menina, chore...

— Não posso, não posso. Eu morro... Vem para o pé de mim, Betty!...

— Meu Deus, quer-se deitar? diga...

E erguendo os olhos e as mãos, n’uma imploração cheia de dôr, de desespero:

— Deus me leve para si! Ai! nada d’isto era se a mamã fosse viva, minha senhora!

Começou a chorar. Eu olhei-a com uma grande afflicção, senti os olhos humidos, os soluços suffocaram-me, e arremessando-me aos seus braços, chorei, chorei, chorei amargamente, chorei cruelmente, chorei pela saudade, chorei pela traição, chorei pelo meu passado legitimo, chorei pelo encanto dos meus peccados, chorei por me sentir chorar...

IX

 

Soceguei. Vencida, fiquei n’uma chaise longue, muda e como morta. Olhava machinalmente o tremer da luz.

— Betty, disse eu, deita-te. Eu estou bem. Vae...

Ella saiu, chorando. O quarto estava mal allumiado. Eu via, fóra, as ramagens do jardim, recortando-se n’um relevo negro sobre o pallido ceu, cheio da lua. Estive muito tempo assim, olhando, sem consciencia e sem vontade. Lentamente, creio, comecei pensando em cousas alheias aos interesses da minha dôr: lembrava-me a fórma d’um vestido que eu tinha desenhado para a Aline.

Por fim ergui-me, passeei muito tempo no quarto, o movimento chamou-me á consciencia e á verdade das minhas afflicções. Arranquei a folha d’uma carteira, e escrevi a lapis tumultuosamente: «Tem rasão, tem rasão. Espero-o ámanhã ás 10 horas da noite na casa... Até lá não lhe direi que o amo; só lá lhe direi o que soffro.»

Eu mesma saí ao corredor, e do alto da escadaria, silenciosa, allumiada por um grande globo fosco, chamei um criado, André, imbecil e indiscreto, e atirei-lhe o bilhete lacrado, dizendo-lhe:

— Leve esse bilhete já... Vá n’uma carruagem.

E indiquei-lhe a casa de meu primo. Rytmel estava hospedado lá.

Vim sentar-me á janella do meu quarto: vinha um aroma suave do jardim; o luar, as grandes sombras, tinham um repouso romantico e triste. Lentamente, a minha desgraça começou apparecendo-me inteira, nitida, em pormenores, n’uma grande synthese, como se fosse um mappa.

Eu era trahida! Aos vinte e tres annos, com todas as intelligencias da paixão, com todos os delicados prestigios do luxo, era trahida, era trahida! Senti então pela primeira vez a presença do ciume, esse personagem tão temido, tão cantado nas epopéas, tão arrastado pela rampa do theatro, tão conhecido da policia correccional, tão cruel, tão ridiculo, tão real! Vi-o! Conheci-o! Senti o seu contacto irritante e mordente como um corrosivo; a sua argumentação miuda, jesuitica, implacavel, sanguinaria: todo o seu processo d’acção, que torna de repente o coração mais puro tão immundo como a toca d’uma fera.

Senti o mais cruel dos ciumes todos; aquelle que se define, que diz um nome, que desenha um perfil, que nol-o mostra, o nosso inimigo, que nos enche as mãos d’armas, que nos obriga a avançar para elle. Eu sentia no meu ciume um ponto fixo — ella. Era ella, a outra! Lembrava-me confusamente: tinha cabellos louros, finos, espalhados, uma nuvem de ouro esfiado. Eu tinha-a visto em Paris vestida de roxo na revista de Longchamps. O seu olhar era franco: os homens deviam encontrar n’elle o quer que fosse, que promettia um destino pacifico. Que secreto encanto se irradiaria da esbelta fraqueza do seu corpo? Era a simplicidade? Era a intelligencia? Era a sciencia das cousas do amor?... Como eu ardia por a conhecer! E não sabia nada d’ella senão que era irlandeza, e que se chamava Miss Shorn!

Ah sim, sabia outra cousa — que elle a amava!

Conhecel-a! conhecel-a! Mas como? Podia ser, pelas suas cartas! De certo! Ella devia pôr n’ellas toda a sua intima personalidade. Era loira, era ingleza, por isso raciocinadora: devia escrever pacificamente, sem sobresaltos, e sem inspirações da paixão; nas suas cartas provavelmente desfiava o seu coração. Eu conhecel-a-hia bem, se as lesse! Eu saberia o estado de espirito de Rytmel, a marcha da sua paixão, pelas cartas d’ella. Devia lel-as! Era necessario pedil-as, roubal-as, compral-as, eu sei! Mas era necessario lel-as!

Para pensar assim eu nenhuma prova tinha de que elle recebia cartas d’ella, mas tinha a certeza que ellas existiam e que o seu coração estava cheio d’ellas...

Quiz serenar, pacificar-me, dormir.

Deitei-me. O meu pobre cerebro estava n’uma vibração tempestuosa; era como n’uma tormenta em que veem á superficie da mesma vaga os destroços d’um naufragio e as flores da alga; no meu espirito revolto, surgiam no mesmo redemoinho, as cousas graves, e as recordações futeis, as minhas dôres e as minhas phantasias, os desastres do meu amor, e ditos de operas comicas! Sentia a chegada da febre. Chamei Betty.

— Betty! não posso dormir, não sei que tenho. Quero dormir por força. Quero ámanhã todas as minhas faculdades em equilibrio. Se não durmo estou perdida, endoideço... Dá-me alguma cousa.

— Mas o quê, minha senhora?

— Olha, dá-me aquella bebida que davam á mamã nas insomnias, a que tu tomas quando tens dôres... Tens?

— Quer opio?

— Não sei! agua opiada, vinho opiado, o quer que seja. Foi o doutor que me disse...

— Minha querida menina, eu tenho opio. Uma gota, n’um copo de agua. Eu sei? Talvez lhe faça mal!

— Dá-m’a, o doutor disse-m’o hontem. Dá, depressa.

Bebi. Era agua opiada, creio eu. Não sei. Parece-me que adormeci logo, e lembro-me que durante o somno sentia-me encaminhar incessantemente, n’um movimento perpetuo que affectava todas as fórmas; ora lento e pacifico, como um passeio sob uma alameda; ora rapido, volteado, e era a walsa de Gounod que eu dançava; ora solemne e melancholico, e era um enterro que eu acompanhava; ora cortante, escorregadio, veloz, e era em Paris, e era no inverno, e eu patinava sobre a neve.

Acordei de manhã, serena, e decidida. Mandei pôr um coupé. Saí. Fiz parar á porta de meu primo. Eram duas horas da tarde. Eu sabia, desde essa manhã, que Rytmel estava com elle em Bellas. Subi. Appareceu um criado portuguez, Luis, que eu conhecia, um imbecil, atrevido para o ganho, discreto pelo medo.

— Mr. Rytmel!

— Saiu, senhora condessa.

— Jacques?

— Foi com elle, senhora condessa.

Jacques era um criado antigo de Rytmel.

— Luis, leva-me ao quarto de mr. Rytmel.

Ao abrir a porta do quarto estremeci. Sentia-me humilhada. Fui rapidamente a uma secretária, revolvi as gavetas, as pequenas papeleiras. Nenhumas cartas, apenas cartas indifferentes. Irritada, abri as commodas, espalhei as roupas, procurei nos bahus, nas malas, nos bolsos, ergui o travesseiro. Tremia, arquejava. Era uma busca inquisitorial, frenetica, desesperada, infame!

— Luis, disse eu baixo, Luis, tens vinte libras. Tens cincoenta.

— Mas, minha senhora...

— Este senhor onde tem as suas cartas? Tens cem libras. Dou-te tudo, estupido... Onde tem elle as cartas, elle?

— Oh minha senhora! disse o creado, com uma voz lamentavel, eu não sei.

— Não tens visto? Não tem uma secretária, uma papeleira, uma carteira?...

— Tem. Tem uma carteira de marroquim. Tral-a comsigo. Anda cheia de cartas...Levou-a decerto. Nunca a deixa.

Sahi, desci a escada, correndo, fugindo d’aquelle desastre, d’aquella vergonha, d’aquellas confidencias. Atirei-me para o fundo da carruagem.

— A casa! gritei.

Tinha fechado os stores; soluçava, sem soluçar[2].

— Betty! Betty! clamei logo no corredor.

Ella appareceu, correndo.

— Betty, disse eu, vivamente, fechando a porta do quarto. Dize-me: aquella agua com opio não faz mal?

— Porque? sente-se doente?

— Não. Estou bem. Não faz mal?

— Nenhum.

— Juras?

— Juro. Mas...

— Jura sobre estes santos Evangelhos.

— Oh, senhora! Mas porque? Juro. Mas porque?

— Tens opio? Dá-m’o.

— Quer dormir?

— Não.

Ella então olhou-me, fez-se extremamente pallida:

— Mas, senhora condessa, que quer isto dizer?

— Dá-m’o. Dá-m’o, Betty. Pensas que me quero matar?

Ella calou-se.

— Oh, doida! disse eu, rindo. Se me quizesse matar não t’o pedia. Mas sou feliz... Passaram-se outras cousas, vês tu? Não t’as digo, mas sou feliz. Sabes o que é? É que me vou logo encontrar com elle.

E com a voz mais baixa, como envergonhada:

— É ás dez horas, e vês tu? Queria dormir para não esperar.

— Oh, minha senhora, não lhe vá fazer mal! De resto, eu lh’o dou. O frasco d’opio está aqui n’esta gaveta do lavatorio. Não lhe faça isto mal, meu Deus!

— Não, não, minha Betty! Ah! está na gaveta? Bem. São duas gotas, sim? Não me faz mal. Estou tão contente! Olha, até nem quero dormir. Fica aqui a conversar commigo. São cinco horas. Para as dez pouco falta. Não custa esperar. Está então n’aquella gaveta o frasco... Bom. Sabes, Betty? sou feliz. Não quero dormir. Conta-me uma historia.

A pobre creatura, vendo-me alegre, sorria. Eu, entretanto, tinha os olhos fitos na gaveta do lavatorio. Betty fallava, fallava! Eu ouvia as suas palavras sem comprehender, como se ouve um murmurio d’agua.

X

 

A tarde descia no emtanto, e eu sentia uma inquietação, uma angustia crescente.

Meu primo, não sei se poderei contar-lhe miudamente todos os transes d’aquella noite. Não o exigirá de certo. Nada seria mais terrivel do que ter de redigir e colorir o meu crime. Perdôe-me a confusão afflicta das minhas palavras e os arabescos tremulos da minha lettra.

Eram dez horas da noite: fui á casa n.^o... Rytmel estava lá. Achei-o pallido, e instinctivamente estremeci. Conversámos. Enquanto elle fallava, eu olhava-o ávidamente, examinava a sua casaca, espreitava o volume que devia fazer a carteira onde estavam as cartas. E revolvia com a mão humida o bolso do meu vestido: tinha n’elle o frasco d’opio. Era um frasco de crystal verde, facetado, com tampa de metal fixa. As palavras de Rytmel n’essa noite eram muito doces e muito amantes. Procuravam explicar-me a sua carta, e palpitavam ainda de paixão... Vinham realmente da verdade do seu coração? Era uma rhetorica artificial á flor dos labios, enganadora, como um panno de theatro? Não o sabia: só as cartas d’ella m’o poderiam revelar, e elle tinha-as ali no bolso! Eu via o volume que fazia a carteira no peito da casaca! Estava ali a sentença da minha vida, a minha infelicidade insondavel, ou a immensa pacificação do meu futuro! Podia porventura hesitar? — Elle fallava no emtanto. Eu tremia toda. Olhava fixamente para um copo que estava sobre a mesa ao pé d’uma garrafa de crystal da Bohemia. O reposteiro da alcova achava-se corrido; dentro estava escuro.

Betty tinha ido commigo, e ficára n’um quarto distante, que dava para uns terrenos vagos...

— E se houvesse um desastre! pensei eu de repente. Não ha pessoas que succumbiram completamente, cujo adormecimento foi acabar de arrefecer no tumulo?

Mas eu via sempre a saliencia da carteira, que me tentava como uma cousa resplandecente e viva. Podia approximar-me d’elle de repente, enfraquecel-o ao calor das minhas palavras, ir levemente, astuciosamente, arrebatar-lhe a carteira, saltar, correr, atirar-me para o fundo do meu coupé, e fugir. Mas se elle resistisse? Se perdesse a consciencia da sua dignidade e da humilde debilidade do meu ser? Se me sujeitasse violentamente, se me arrancasse outra vez as cartas?

Não podia ser. Era necessario que dormisse tranquillamente! Se as cartas fossem innocentes, simples, inexpressivas como eu ajoelharia depois, ao pé do seu corpo adormecido, como esperaria com uma ancia feliz que elle acordasse! que aurora sublime acharia elle nos meus olhos quando os seus se abrissem! Mas se houvesse nas cartas a culpa, a traição, o abandono?!

Levantei-me. Rytmel tinha ao pé de si um copo com agua. Bebia aos pequenos golos quando fumava. Eu deixava-o fumar. Mas eu não sabia como havia de achar um momento meu, bastante para deitar duas gotas de opio no copo.

Tive um expediente trivial, estupido.

— Rytmel, disse eu, como n’um theatro, como nas comedias de Scribe, com uma voz imbecilmente risonha, — vá dizer a Betty, que póde ir, se quizer. A pobre creatura dormiu pouco, está doente.

Elle saiu; ergui-me. Mas ao approximar-me da mesa, defronte do copo, fiquei hirta, suspensa. Estive assim um tempo infinito, segundos, com a mão convulsa apertando o frasco no bolso. Mas era necessario, eu tinha-o ouvido fallar, voltava, sentia-lhe os passos, ia entrar... Tirei o frasco, e louca, precipitada, mordendo os beiços para não gritar, esvasiei-o no copo.

Elle entrou. Eu deixei-me abater sobre uma cadeira, trémula em suor frio, e, não sei por quê, sentindo uma infinita ternura, disse-lhe sorrindo, e quasi chorando:

— Ah, como eu sou sua amiga! Sente-se ao pé de mim.

Elle sorriu. E — meu Deus! — approximou-se, creio que sorriu, e tomou o copo! E com o copo na mão:

— E sabe, disse elle, que ninguem o crê mais do que eu!... Se não fosse o teu amor como poderia eu viver?

E conservava o copo erguido. Eu estava como fascinada. Via o reflexo da agua, parecia-me vagamente esverdeada. Via as scintilações do crystal facetado.

Finalmente bebeu!

... Desde esse momento fiquei n’um terror. Se elle morresse? Meu Deus, por que? Não se dá opio ás creanças, aos doentes? não é elle a clemente pacificação das dôres? Não havia perigo. Quando acordasse eu seria tão sua amiga, tão terna com elle, para me absolver d’aquella aventura imprudente! Ainda que seja culpado, amal-o-hei! pensava eu. Pobre d’elle! Não lhe bastava ter de dormir assim forçadamente n’um somno pesado e cruel? Amal-o-hia, culpado. Trahida, amal-o-hia ainda!

Elle entretanto estava calado, no sophá, com a cabeça encostada. De repente pareceu-me vel-o empallidecer, ter uma ancia, sorrir. Não sei o que houve então. Não me lembra se fallámos, se elle adormeceu brandamente, se alguma convulsão o tomou. De nada me lembro.

Achei-me ajoelhada ao pé d’elle. Devia ser meia noite. Estava immovel, deitado no sophá. Tinham passado duas horas. Senti-o frio, via-o livido, não me attrevia a chamar Betty. Dei alguns passos pelo quarto em uma distracção idiota. Cobri-o com uma manta.

— Vae accordar dizia eu machinalmente. Compuz-lhe os cabellos ligeiramente desmanchados. De repente a idéa da morte appareceu-me nitida, e pavorosa. Estava morto! Senti como o fim de todas as cousas. Mas chamei-o, chamei-o brandamente, e com doçura...

— Rytmel! Rytmel!

E andava nos bicos dos pés para o não acordar! Subitamente estaquei, olhei-o ávidamente, precipitei-me sobre o corpo d’elle, envolvi-o, gritando suffocada:

— Rytmel! Rytmel!

Ergui-o: a hallucinação dava-me uma força cruel. A cabeça pendeu-lhe inanimada. Desapertei-lhe a gravata. Amparei-o nos braços, e n’esse momento senti o volume, a saliencia que na sua casaca fazia a carteira. Veiu-me a idéa das cartas. Tudo tinha sido pelo desejo de as lêr. Tirei-lhe a casaca; era difficil; os seus musculos estavam hirtos. Junto com a carteira havia outros papeis e um masso de notas de banco. Ao tomal-os, os papeis e as cartas espalharam-se no chão. Apanhei-as, apertei-as na gravata branca e metti tudo no bolso.

Isto tinha sido feito convulsivamente, inconscientemente. Dei com os olhos em Rytmel. Pela primeira vez via contracção mortal do seu rosto. Chamei-o, fallei-lhe! Estava frenetica! Porque não queria elle acordar? Empurrei-o, irritei-me com elle. Porque estava assim, porque me fazia chorar? Tinha vontade de lhe bater, de lhe fazer mal.

— Acorda! acorda!

Insensivel! Insensivel! Morto! Ouvi passar na rua um carro. Havia pois alguem vivo!

De repente, não sei por que, lembrei-me que tinha esvasiado o frasco! Deviam ser só duas gotas! Estava morto!

Gritei:

— Betty! Betty!

Ella appareceu, arremessei-me aos seus braços. Chorei. Voltei para junto d’elle. Ajoelhei. Chamei-o. Quiz dar-lhe um beijo: toquei-lhe com os labios na testa. Estava gelada. Dei um grito. Tive horror d’elle. Tive medo do seu rosto livido, das suas mãos geladas!

— Betty, Betty, fujamos!

Consciencia, vontade, raciocinio, pudor, perdi tudo aos pedaços. Tinha medo, sómente medo, um medo trivial, vil!

— Fujamos! Fujamos!

Não sei como saí.

Fóra da porta vi ao longe, no começo da rua, uma luz caminhar! caminhava, crescia! Havia alguem, vestido de vermelho, que a trazia! Parecia-me ser sangue! A luz crescia. Esperei, a tremer. Aquillo caminhava para mim. Approximava-se! Eu estava encostada á porta, na sombra, fria de pedra. A luz chegou: vi-a. Era um padre, era outro homem com uma opa vermelha e uma lanterna. Iam levar a alguem a extrema uncção...

Amparei-me no braço de Betty, e principiei a andar, sem saber para onde, como louca.[*]

[*] Seguiam-se as linhas em que se contava o encontro que teve commigo, as quaes linhas elimino por se referirem a successos que eu mesmo narrei e que v. sr. redactor, já conhece. — A. M. C.