O Pajem Negro/IV
Ao tempo desta crônica a vila de São Paulo, que apenas contava setenta anos, não tinha a área da cidade atual, e no seu pequeno âmbito a casaria era ainda muito espaçada.
Assim toda a quadra que se estende do Largo de São Bento à Luz, entre o Tamandateí e o Anhangabaú, era uma só quinta da propriedade dos Buenos de Ribeira.
No fim da atual rua de São Bento, que então ainda se chamava de Martim Afonso, à esquerda ficavam as casas de morada do velho Bartolomeu Bueno de Ribeira, o chefe da família, e mais adiante, já no largo, porém fronteiras, as do Capitão-Mor Amador Bueno de Ribeira, filho mais velho daquele.
O largo fora aberto para edificação do mosteiro, que assim ficou encravado com sua cerca nas terras da quinta, em parte cedidas pela poderosa família aos monges beneditinos dos quais foi ela sempre a mais zelosa protetora.
Ainda se viam ao lado da igreja as ruínas da casa do Tibiriça, que ali se estabelecera quando abandonando Ramalho veio com os jesuítas fundar a aldeia de São Paulo.
A casa do velho Bartolomeu formava um acervo irregular de edifícios, que pela sua vária construção, como pela sua disposição, bem se via serem fabricados em épocas diferentes e à medida que fora crescendo o tráfego doméstico.
Essas construções, gênero espanhol, tinham o mesmo aspecto sombrio e refolhudo, que apresentavam há bem poucos anos as velhas casas de São Paulo, e que ainda hoje distingue as antigas cidades da Andaluzia.
O gênio dos povos reflete-se em seu domicílio, como em seu trajo, e pois não admira que esses castelhanos sempre tapados às canhas em longa capa; e essas donas rebuçadas em escuras mantilhas guarnecessem as suas janelas de altas gelosias, que não deixavam penetrar no interior senão um crepúsculo.
No dia em que estamos, porém, e que era o da Invenção da Santa Cruz, 3 de maio de 1626, aquelas casas tinham ar de festa.
Deviam ser dez horas da manhã. A todo instante paravam à porta principal ricos palanquins e cavaleiros vestidos de gala, que rompiam dentre a multidão apinhada no Largo de São Bento e alvoroçada pela curiosidade.
Entremos com os convidados e vamos até a vasta sala do sobrado onde se reuniam.
Os estrados baixos e corridos à direita da casa estavam cheios de damas ricamente adereçadas; e nas altas poltronas de couro, com pregarias de prata, viam-se as matronas paulistas, entre as quais distinguia-se a venerável D. Mécia Fernandes.
Era D. Mécia neta de Antônio Rodrigues, o companheiro de Ramalho, e de sua mulher Antônia Rodrigues, filha do chefe Piquiroí. Em 1590 casara com Salvador Pires, de quem ficara viúva em 1592.
Os índios a chamavam Mécia Grande, em sua língua Meciaçu, por causa dos grandes cabedais que herdara, e do estado que tinha. Dela nos resta a memória de um fato, que pinta bem a feição da sociedade daquele tempo.
Um indivíduo, de sobrenome Aia, matara a Marco Fernandes, irmão da matrona, a qual por escritura de 1º de janeiro de 1612 outorgou perdão ao assassino.
Pedro Taques diz que D. Mécia Fernandes faleceu em 1625; entretanto que a encontramos ainda no ano seguinte em casa de seu genro, e na companhia de suas noras D. Maria Pires e D. Inês Monteiro, intitulada a matrona.
Do outro lado agrupavam-se em volta do dono da casa os fidalgos paulistas, seus parentes ou amigos, homens robustos, tostados pelo sol americano, que lhes dera com a têmpera do bronze, o caráter de antes quebrar que torcer.
Ali estava o Capitão Salvador Pires de Medeiros, filho de D. Mécia, cunhado de Bartolomeu Bueno. Era opulento e senhor das dilatadas vinhas de Apiá, donde recolhia anualmente e à farta excelente malvasia. Se hoje buscarem por toda serra um bago de uva moscatel, talvez não o encontrem.
Também estava João Pires, irmão do antecedente, e tão grande criador de gado, que dotara a cada um de seus nove filhos com duzentas cabeças de cada espécie. Era também lavrador; e tinha grande colheita de trigo e outros cereais.
Com ele conversava o famoso Manuel Preto, o mais afouto dos bandeirantes, e incansável conquistador do gentio, do qual possuía 999 flecheiros em sua fazenda da Capela do Ó. Foi este o capitão das primeiras entradas do Paraguai, onde havia três anos destruíra a missão de Santo Inácio.
A seu lado ficava Manuel João Branco, administrador das minas de São Paulo, e riquíssimo do ouro que havia extraído do Jaraguá. Mais tarde e com cerca de noventa anos, empreendeu a viagem a Lisboa só para ter a honra de beijar a mão a El-Rei; e apresentou-se nos Paços da Rainha em uma rede carregada por seus escravos.
Seguiam-se José Ortiz de Camargo, o chefe dessa importante família, e Fernando Camargo mais tarde conhecido pela alcunha de Tigre; Fernão Dias Pais Leme, e seu filho do mesmo nome que foi depois o governador das esmeraldas; o Capitão-Mor Pedro Vaz de Barros, e outros muitos potentados de São Paulo.
Mas entre todos sobressaía por seu porte grave e conspícuo, o Capitão-Mor Amador Bueno de Ribeira. Apesar de moço, era o alvo da geral deferência, que lhe tributavam até mesmo os anciãos, e entre estes seu próprio pai, o velho Bartolomeu.
Se algum vidente profetizasse, naquela festa, que um dos convidados ali presentes seria quatorze anos mais tarde proclamado rei de São Paulo; ninguém hesitaria em nomear Amador Bueno.
Muito se exaltam as energias e os cometimentos dessa raça norte-americana dos ianques; e entretanto fica ela ainda assim muito longe dessa primitiva raça paulista, cruzada do sangue tupi, e que ali se achava representada naquela festa pelos Buenos, Pires, Lemes, Camargos e outras famílias.
Ainda hoje nos admiram e surpreendem os prodígios desses bandeirantes que por indomável arrojo conquistaram o deserto, quando não tinham nem a gente precisa para povoá-lo.
Que heroísmos sublimes e façanhas estupendas não se cometeram nessa luta colossal do homem com as pujanças da natureza brasileira, que à temeridade dos sertanistas opunha suas florestas impenetráveis, suas torrentes impetuosas e seus alcantis inacessíveis?
Essa formidável raça paulista extinguiu-se. Era ela filha da liberdade; e não podia submeter-se a um despotismo torpe e aviltante, a um despotismo beato, como foram o espanhol e português, depois que o corrompeu o ouro da América.
De feito para compreender a existência dos intrépidos bandeirantes que exploraram todo o sertão do Brasil até os Andes, é mister estudar a natureza dessa sociedade especial que no século XVI dominava a capitania de São Vicente.
A vila era para o povo uma república, e os seus vizinhos diziam-se republicanos de São Paulo. Embora antigamente se costumasse designar por esses vocábulos as cousas e pessoas da governança; não é menos certo que os paulistas insistiam neles com um espírito de independência bem pronunciado.
Alguma razão teve o Pe. Vaineta quando referindo-se a esse período considerou a capitania de São Vicente como uma república tributária do rei de Portugal; e apesar de Fr. Gaspar da Madre de Dios que muito se incomodou com a asseveração do jesuíta, parece incontestável que os paulistas naquela época se governavam como um povo livre.
Homens audazes, de gênio afouto e aventureiro, os primeiros povoadores tinham como capitães de entradas acumulado grandes cabedais, e fundado essas famílias de potentados, que dividiam entre si o cargo da governança.
Ao donatário por seus capitães-mores e procuradores competia sem dúvida o provimento dos ofícios de justiça e fazenda, mas de quem as confiaria ele senão dos verdadeiros senhores da terra, que podiam se os irritassem intimar-lhe o despejo?
Como os barões da Idade Média, os potentados de São Paulo reconheciam um suserano só pelo receio de que roto esse vínculo nominal, algum de seus iguais se arrogasse o mando e a supremacia. Para evitar esses abusos e a guerra que eles acenderiam, é que toleravam o donatário.
A prova ali estava nessa assembleia, onde Álvaro Luís do Vale, capitão-mor e lugar-tenente do Conde de Monsanto confundia-se na multidão dos convidados que faziam sala aos Buenos.
Publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, ano II, n.º 5, julho de 1911.