O Primo Basílio/V

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A manhã estava abrasadora. Um pouco depois do meio-dia, Joana, estirada numa velha cadeira de vime da Ilha da Madeira que havia na cozinha, dormitava a sesta. Como madrugava muito, àquela hora da calma vinha-lhe sempre uma quebreira.

As janelas estavam cerradas ao sol faiscante; as panelas no lume faziam um romrom dormente; e toda a casa, muito silenciosa, parecia amodorrada no amolecimento do calor tórrido, quando Juliana entrou como uma rajada, atirou para o chão furiosa, uma braçada de roupa suja, e gritou:

— Raios me partam se não há um escândalo nesta casa que vai tudo raso!

Joana deu um salto estremunhada.

— Quem quer as coisas em ordem olha por elas! - berrava a outra com os olhos injetados. - Não é estar todo o dia na sala a palrar com as visitas!

A cozinheira foi fechar a porta precipitadamente, já assustada.

— Que foi, Sra. Juliana, que foi?

— Está com a mosca! Tem o sangue a ferver! Sangrias! Sangrias! Tem peguilhado por tudo! Não estou para a aturar, não estou!

E batia o pé com frenesi.

— Mas que foi? Que foi?

— Diz que os colarinhos tinham pouca goma; pôs-se a despropositar! Estou a aturar! Estou farta! Estou até aqui! - bradava, puxando a pele engelhada da garganta. - Pois que me não faça sair de mim! Que me vou, e pespego-lhe na cara por quê! Desde que aqui temos homem e pouca-vergonha, boas noites!... Quem quiser que se meta em alhadas...

— Ó Sra. Juliana, pelo amor de Deus! Jesus! - E a Joana apertava a cabeça nas mãos. - Ai, se a senhora ouve!

— Que ouça, digo-lho na cara! Estou farta! Estou farta!

Mas, de repente, fez-se branca como a cal; caiu sobre a cadeira de vime com as duas mãos contra o coração, os olhos em alvo.

— Sra. Juliana! - gritou Joana. - Sra. Juliana! Fale! Borrifou-a de água; sacudiu-a ansiosamente.

— Nossa Senhora nos valha! Nossa Senhora nos valha! Está melhor? Fale! Juliana deu um suspiro longo, de alivio, cerrou as pálpebras. E arquejava

devagarinho, muito prostrada.

— Como se sente? Quer um caldinho? É fraqueza; há de ser fraqueza... Foi a pontada - murmurou Juliana.

Ai! Aqueles frenesis matavam-na! - dizia a cozinheira, remexendo-lhe o caldo, muito pálida também. - A gente tinha de aturar os amos! Que tomasse a "substância", que sossegasse!...

Naquele momento Luísa abriu a porta. Vinha em colete e saia branca.

Que barulho era aquele?

A Sra. Juliana, que lhe tinha dado uma coisa, quase desmaiara...

Foi a pontada - balbuciou Juliana.

E erguendo-se, com um esforço:

— Se a senhora não precisa nada, vou ao médico...

— Vá, vá! disse Luísa logo. E desceu.

Juliana pôs-se a tomar o seu caldo com um vagar moribundo. Joana consolava-a baixo: - Também, a Sra. Juliana arrenegava-se por qualquer coisa. E quando a gente tem pouca saúde não há nada pior que enfrenesiar-se...

— É que não imagina! - e abafava a voz arregalando os olhos. - Tem estado de não se poder aturar! Está-se a vestir que nem para uma partida! Amarfanhou uns poucos de colares, atirou-os para o chão, que eu engomava que era uma porcaria, que não servia para nada... Ai! Estou farta! - repetia. - Estou farta!

— É ter paciência! Todos têm a sua cruz!

Juliana teve um sorriso lívido, ergueu-se com um grande "ai", escabichou os dentes, apanhou a roupa suja, e subiu ao sótão.

Daí a pouco, de luvas pretas, muito amarela, saiu.

Ao dobrar a esquina da rua, defronte do estanque, parou indecisa. Até ao médico era um estirão!... E estava, que lhe tremiam as pernas!... Mas também, largar três tostões para trem!...

— Psiu, psiu! - fez do lado uma voz doce.

Era a estanqueira, com o seu longo vestido de luto tingido, o seu sorriso desconsolado.

Que era feito da Sra. Juliana? A dar o seu passeio, hem?

Gabou-lhe a sombrinha preta de cabo de osso. De muito gosto - disse.

— E como ia de saúde?

Mal. Dera-lhe a pontada. Ia ao médico...

Mas a estanqueira não tinha fé nos médicos. Era dinheiro deitado à rua... Citou a doença do seu homem, os gastos, um ror de moedas. E para quê? Para o ver penar e morrer como se nada fosse! Era um dinheiro que sempre chorava!

E suspirou. Enfim, fosse feita a vontade de Deus! E lá por casa do senhor engenheiro?

— Tudo sem novidade.

— Ó Sra. Juliana, quem é aquele rapaz que vai agora por lá todos os dias?

Juliana respondeu logo:

— É o primo da senhora.

— Dão-se muito!...

— Parece.

Tossiu, e com um cumprimentozinho:

— Pois, muito boas tardes, Sra. Helena.

E foi resmungando:

— Ora, fica-te a chuchar no dedo, lesma!

Juliana detestava a vizinhança; sabia que a escarneciam, que a imitavam, que lhe chamavam a "Tripa Velha"!... Pois também dela não haviam de saber nada! Podiam rebentar de curiosidade! Vinham de carrinho! Boa! Tudo o que visse ou que lhe cheirasse havia de ficar guardadinho, lá dentro. - "Para uma ocasião" - pensava com rancor, sacudindo os quadris.

A estanqueira ficou à porta, despeitada. E o Paula dos móveis, que as vira conversar, veio logo, deslizando sutilmente nas suas chinelas de tapete:

— Então a Tripa Velha escorregou-se? Ai! Não se lhe tira nada!

O Paula enterrou as mãos nos bolsos, com tédio:

— Aquilo, a do Engenheiro besunta-lhe as mãos... É ela quem abre a portita de noite...

— Tanto não direi! Credo!

Paula fitou-a com superioridade:

— A Sra. Helena está ai ao seu balcão... Mas eu é que as conheço, as mulheres da alta sociedade! Conheço-as nas pontas dos dedos. É uma cambada!

Citou logo nomes, alguns ilustres; tinham amantes inumeráveis: até trintanários. Algumas fumavam, outras entortavam-se. E pior! E pior!

— E passeiam por ai, muito repimpadas de carrinho, à barba da gente de bem!

— Falta de religião! - suspirou a estanqueira.

O Paula encolheu os ombros:

— A religião é que é, Sra. Helena! Com os padres é que é!

E agitando furioso o punho fechado:

— Com os padres é uma choldra viva!

— Credo, Sr. Paula, que até lhe fica mal!...

E o carão amarelado da estanqueira tinha uma severidade de devota ofendida.

— Ora, histórias, Sra. Helena! - exclamou o homem com desprezo.

E bruscamente:

— Por que é que acabaram os conventos? Diga-me! Porque era um desaforo lá dentro.

— Oh, Sr. Paula! Oh, Sr. Paula! - balbuciava a Helena, recuando, encolhendo-se

O Paula atirava-lhe as impiedades como punhaladas.

— Um desaforo! De noite as freiras vinham por um subterrâneo ter com os vinhaça e mais vinhaça. E batiam o fandango em camisa! Anda isso por aí em todos os livros.

E erguendo-se nas chinelas:

— E os jesuítas, se vamos a isso! Sim! Diga!

Mas recuou, e levando a mão à pala do boné:

— Um criado da senhora - disse com respeito.

Era Luísa que passava, vestida de preto, o véu descido. Ficaram calados, a olhá-la.

— Que ela é muito bonita! - murmurou a estanqueira, com admiração.

O Paula franziu a testa:

— Não é mau bocado... - disse. E acrescentou, com desdém: - Pra quem gosta daquilo!...

Houve um silêncio. E o Paula rosnou:

— Não são as saias que me levam o tempo, nem disto!...

E bateu no bolso do colete, fazendo tilintar dinheiro.

Tossiu, pigarreou, e ainda áspero:

— Venha de lá um pataco de Xabregas.

Foi para a porta do estanco enrolar o cigarro, assobiar; mas os seus olhos arregalaram-se indignados; numa das janelas de cima na casa do Engenheiro, tinha avistado, por entre as vidraças abertas, a figura enfezada do Pedro, o carpinteiro.

Voltou-se para a estanqueira, e cruzando dramaticamente os braços:

— E agora, que a patroa vai à vida, lá está o rapazola a entender-se com a criada!

Soltou uma larga baforada de fumo, e com uma voz soturna:

— Aquela casa vai-se tornando um prostíbulo!

— Um que, Sr. Paula?

— Um prostíbulo, Sra. Helena! E como se dissesse um alcouce!

E, com passos escandalizados, o patriota afastou-se.

Luísa ia enfim ao campo com Basílio. Consentira na véspera, declarando logo que era só um passeio de meia hora, de carruagem, sem se apearem. Basílio ainda insistiu, falando em sombras de alamedas, uma merendinha, relvas Mas ela recusou, muito teimosa, rindo, dizendo: - Nada de relvas!...

E tinham combinado encontrar-se na Praça da Alegria. Chegou tarde, já depois das duas e meia, com o guarda-solinho muito carregado sobre o rosto, toda assustada.

Basílio esperava, fumando, num cupê, à esquina, debaixo de uma árvore. Abriu rapidamente a portinhola, e Luísa entrou fechando atrapalhadamente a sombrinha; o vestido prendeu-se ao estribo, esgaçou-se no rufo de seda; e achou-se ao lado dele, muito nervosa, ofegante, com o rosto abrasado, murmurando:

— Que tolice, que tolice esta!

Mal podia falar. O cupê partiu logo a trote. O cocheiro era o Pintéus, um batedor.

— Tão cansada, coitadinha! - disse-lhe Basílio muito meigo. Levantou-lhe o véu; estava suada; os seus largos olhos brilhavam da excitação, da pressa, do medo...

— Que calor, Basílio!

Quis descer um dos vidros do cupê.

— Não, isso não! Podiam vê-los! Quando passassem as portas...

— Para onde vamos nós?

E espreitava, levantando o estore.

— Vamos para o lado do Lumiar, é o melhor sitio. Não queres?

Encolheu os ombros. Que lhe importava? Ia sossegando; tinha tirado o véu ~ luvas; sorria, abanando-se com o lenço, de onde saia um aroma fresco.

Basílio prendeu-lhe o pulso, pôs-lhe muitos beijos longos, delicados, na pele fina, azulada de veiazinhas.

— Tu prometeste ter juízo! - fez ela com um sorriso cálido olhando-o de lado.

Ora! Mas um beijo, no braço! Que mal havia? Também era necessário não ser beata!

E olhava-a avidamente.

Os velhos estores do cupê corridos eram de seda vermelha, e a luz que os atravessava envolvi-a num tom igual, cor-de-rosa e quente. Os seus beiços tinham um escarlate molhado, a lisura sã de uma pétala de rosa; e ao canto do olho um ponto de luz movia-se num fluido doce.

Não se conteve, passou-lhe os dedos um pouco trêmulos nas fontes, nos cabelos, com uma carícia fugitiva e assustada, e com a voz humilde:

— Nem um beijo na face, um só?

— Um só? - fez ela.

Pousou-lho delicadamente ao pé da orelha. Mas aquele contato exasperou-lhe o desejo brutalmente; teve um som de voz soluçado; agarrou-a com sofreguidão, e atirava-lhe beijos tontos pelo pescoço, pela face, pelo chapéu...

— Não! Não! - balbuciava ela, resistindo. - Quero descer! Dize que pare! Batia nos vidros; esforçava-se por correr um, desesperada, magoando os dedos na dura correia suja.

Basílio pôs-se a suplicar; que lhe perdoasse! Que doidice, zangar-se por um beijo! Se ela estava tão linda!... Fazia-o doido. Mas jurava ir quieto, muito quieto...

A carruagem, ao pé das portas, rolava sacudida na calçada miúda; nas terras, aos lados, as oliveiras de um verde empoeirado estavam imóveis na luz branca e sobre a erva crestada o sol batia duramente numa fulguração continua.

Basílio tinha descido um dos vidros; o estore corrido palpitava brandamente, pôs-se então a falar-lhe ternamente de si, do seu amor, dos seus planos. Estava resolvido a vir estabelecer-se em Lisboa - dizia. - Não tencionava casar-se; "não compreendia nada melhor do que viver ao pé dela, sempre. Dizia-se desiludido, enfastiado. Que mais lhe podia oferecer a vida? Tinha tido as sensações dos amores efêmeros, as aventuras das longas viagens. Ajuntara alguma de seu - e sentia-se velho.

Repetia, fitando-a, tomando-lhe as mãos:

— Não é verdade que estou velho?

— Não muito - e os seus olhos umedeciam-se.

Ah! Estava! Estava! O que lhe apetecia agora era viver para ela, vir descansar nas da sua intimidade. Ela era a sua única família. - Fazia-se muito parente. - A família no fim de tudo é o que há de melhor ainda. Não te incomoda que eu fume?

E acrescentou, raspando o fósforo:

— O que há de bom na vida é uma afeição profunda como a nossa. Não é verdade? Contento-me com pouco, de resto. Ver-te todos os dias, conversar muito, saber que me estimas... - Por dentro do campo, ó Pintéus! - gritou com força pela portinhola.

O cupê entrou a passo no Campo Grande. Basílio ergueu os estores; um ar mais vivo penetrou. O sol caía sobre o arvoredo, transpassando-o de uma luz faiscante, formando no chão poeirento e branco sombras quentes de ramagens. Tudo tinha em redor um aspecto ressequido e exausto. Na terra gretada, a erva curta, crestada, fazia tons cinzentos. Na estrada, ao lado, arrastava-se uma poeira amarelada. Saloios passavam, amodorrados sobre o albardão, bamboleando as pernas, abrigados sob os vastos guarda-sóis escarlates; e a luz que vinha de um céu azul-ferrete, acabrunhador, fazia reluzir com uma radiação crua as paredes muito caiadas, as águas de algum balde esquecido às portas, todas as brancuras de pedras.

E Basílio continuava:

— Vendo tudo o que tenho lá fora, alugo aqui uma casinha em Lisboa, em Buenos Aires, talvez... Não te agrada? Dize...

Ela calava-se; aquelas palavras, as promessas, a que a voz dele metálica e velada dava um vigor mais amoroso, iam-na perturbando como a inebriação dum licor forte. O seu seio arfava.

Basílio baixou a voz, disse:

— Quando estou ao pé de ti sinto-me tão feliz; parece-me tudo tão bom!...

— Se isso fosse verdade! - suspirou ela, encostando-se para o fundo do cupé.

Basílio prendeu-lhe logo a cintura; jurou-lhe que sim! Ia pôr a sua fortuna em inscrições. Começou a dar-lhe provas: já falara a um procurador; citou-lhe o nome, um seco, de nariz agudo...

E apertando-a contra si, os olhos muito vorazes:

— E se fosse verdade, dize, que fazias?

— Nem eu sei - murmurou ela.

Iam entrando no Lumiar, e por prudência desceram os estores. Ela afastou um, e, espreitando, via fora passar rapidamente, ao lado do trem, árvores empoeiradas; um muro de quinta de um cor-de-rosa sujo, fachadas de casas mesquinhas; um ônibus desatrelado; mulheres sentadas ao portal, à sombra, catando os filhos; e um sujeito vestido de branco, de chapéu de palha, que estacou, arregalou os olhos para as cortinas fechadas do cupé. E ia desejando habitar ali numa quinta, longe da estrada; teria uma casinha fresca com trepadeiras em roda das janelas, parreiras. sobre pilares de pedra, pés de roseiras, ruazinhas amáveis sob árvores entrelaçadas, um tanque debaixo de uma tília, onde de manhã as criadas ensaboariam, bateriam a roupa, palrando. E ao escurecer, ela e ele, um pouco quebrados das felicidades da sesta, iriam pelos campos, ouvindo sob o céu que se estrela, o coaxar triste das rãs.

Cerrou os olhos. O movimento muito lançado do cupê, o calor, a presença dele, o contato da sua mão, do seu joelho, amoleciam-na. Sentia um desejo a alargar-se dentro do peito.

— Em que vais tu a pensar? - perguntou-lhe ele baixo, muito terno. Luísa fez-se vermelha. Não respondeu. Tinha medo de falar, de lhe dizer...

Basílio tomou-lhe a mão devagarinho, com respeito, com cuidado, como coisa preciosa e santa; e beijou-lha de leve, com a servilidade de um negro e a unção de um devoto. Aquela carícia tão humilde, tão tocante, quebrou-a; os seus nervos distenderam-se; deixou-se cair para o canto do cupê, rompeu a chorar...

Que era? Que tinha? Prendera-a nos braços, beijava-a, dizia-lhe palavras loucas.

— Queres que fujamos?

As suas lagrimazinhas redondas e luminosas, rolando devagarinho sobre a aquela face mimosa, enterneciam-no, e davam aos seus desejos uma vibração quase dolorosa.

— Foge comigo, vem, levo-te! Vamos para o fim do mundo!

Ela soluçou, murmurou muito doridamente:

— Não digas tolices.

Ele calou-se; pôs a mão sobre os olhos com uma atitude melancólica, pensando:

— "Estou a dizer tolices, não há que ver!"

Luísa limpava as lágrimas, assoando-se devagarinho.

— É nervoso - disse. - É nervoso. Voltamos, sim? Não me sinto bem. volte.

Basílio mandou bater para Lisboa.

Ela queixava-se de um ameaço de enxaqueca. Ele tinha-lhe tomado a mão, repetia-lhe as mesmas ternuras: chamava-lhe "sua pomba", "seu ideal". E pensava: - "Estás caída!"

Pararam na Praça da Alegria. Luísa espreitou, saltou depressa, dizendo:

— Amanhã, não faltes, hem?

Abriu o guarda-solinho, carregou-o sobre o rosto, subiu rapidamente para a Patriarcal.

Basílio então desceu os vidros, e respirou com satisfação. Acendeu outro charuto, estendeu as pernas, gritou:

— Ao Grêmio, ó Pintéus!

Na sala de leitura, o seu amigo o Viscondo Reinaldo, que havia anos vivia em Londres, e muito em Paris também, lia o Times languidamente, enterrado numa poltrona. Tinham vindo ambos de Paris, com a promessa de voltarem juntos por Madri. Mas o calor desolava Reinaldo; achava a temperatura de Lisboa reles; trazia lunetas defumadas; e andava saturado de perfumes, por causa "do cheiro ignóbil de Portugal". Apenas viu Basílio deixou escorregar o Times nu tapete, e com os braços moles, a voz desfalecida:

— E então essa questão da prima, vai ou não vai? Isto está horrível, menino! Eu morro! Preciso o Norte! Preciso a Escócia! Vamos embora! Acaba com essa prima. Viola-a. Se ela te resiste, mata-a!

Basílio, que se estendera numa poltrona, disse, estirando muito os braços:

— Oh! Está caidinha!

— Pois avia-te, menino, avia-te!

Apanhou moribundamente o Times, bocejou, pediu soda - soda inglesa!

Não havia, veio dizer o criado. Reinaldo fitou Basílio com espanto, com terror, e murmurou soturnamente:

— Que abjeção de país!

Quando Luísa entrou, Juliana, ainda vestida, disse-lhe logo à porta:

— O Sr. Sebastião está na sala. Tem estado um ror de tempo à espera... Já cá estava quando eu cheguei.

Tinha vindo com efeito havia meia hora. Quando a Joana lhe veio abrir, muito encarnada, com ar estremunhado, e resmungou que a senhora estava para fora, Sebastião ia logo descer, com o alívio delicioso de uma dificuldade adiada. Mas reagiu, retesou a vontade, entrou, pôs-se a esperar... Na véspera tinha decidido falar-lhe, avisá-la que aquelas visitas do primo, tão repetidas, com espalhafato, numa rua maligna, podiam comprometê-la... Era o diabo, dizer-lho!... Mas era um dever! Por ela, pelo marido, pelo respeito da casa! Era forçoso acautelá-la... E não se sentia acanhado. Perante as reclamações do dever, vinham-lhe as energias da decisão. O coração batia-lhe um pouco, sim, e estava pálido... Mas, que diabo havia de lho dizer!...

E passeando pela sala com as mãos nos bolsos, ia arranjando as suas frases, procurando-as muito delicadas, bem amigas...

Mas a campainha retiniu, um frufru de vestido roçou o corredor - e a sua coragem engelhou-se como um balão furado. Foi-se logo sentar ao piano, pôs-se a bater vivamente no teclado. Quando Luísa entrou, sem chapéu, descalçando as luvas, ergueu-se, disse embaraçado:

— Tenho estado aqui a trautear um bocado... Estava à espera... Então de onde vem?

Ela sentou-se, cansada. Vinha da modista - disse. Fazia um calor! Por que não tinha entrado as outras vezes? Não estava com visitas de cerimônia! Era família, era seu primo que viera de fora.

— Está bom, seu primo?

— Bom. Tem estado aqui, bastante. Aborrece-se muito em Lisboa, coitado! Ora, quem vive lá fora!

Sebastião repetiu, esfregando devagar os joelhos:

Está claro, quem vive lá fora!

— E Jorge, tem-lhe escrito? - perguntou Luísa.

— Recebi carta ontem.

Também ela. Falaram de Jorge, dos tédios da jornada, do que contava do fantástico parente de Sebastião, da demora provável...

— Faz-nos uma falta, aquele maroto! - disse Sebastião.

Luísa tossiu. Estava um pouco pálida, agora. Passava às vezes a mão pela testa, cerrando os olhos.

Sebastião, de repente, teve uma decisão:

— Pois eu vinha, minha rica amiga... - começou.

Mas viu-a ao canto do sofá com a cabeça baixa, a mão sobre os olhos.

— Que tem? Está incomodada?

— É a enxaqueca que me veio de repente. Já tinha tido ameaços na rua. E com uma força!

Sebastião tomou logo o chapéu:

— E eu a maçá-la! É necessário alguma coisa? Quer que vá chamar o médico?

— Não! Vou-me deitar um momento; passa logo.

Que não apanhasse ar, ao menos, recomendava ele. Talvez sinapismos ou limão nas fontes... E em todo o caso, se não estivesse melhor que o mandasse chamar...

— Isto passa! E apareça, Sebastião! Não se esconda...

Sebastião desceu, respirou largamente; e pensava:

— "Eu não me atrevo, Santo Deus!..." - Mas à porta, ao levantar os olhos, no fundo escuro da loja de carvão o vulto enorme da carvoeira, de chambre

branco, estendendo o olhar, cocando; por cima, três das Azevedos, entre as velhas cortinas de cassa, juntavam as suas cabecinhas riçadas nalgum conciliáculo maligno! Por trás dos vidros a criada do doutor costurava, com olhares de lado, a cada momento, que lambiam a rua; e ao lado, na loja de móveis, Sentiam-se as expectorações do patriota.

— "Não passa um gato que esta gente não dê fé!" - pensou Sebastião. "E que línguas! Que línguas! Devo fazê-lo, ainda que estoure! Se ela amanhã está melhor, digo-lhe tudo!"

Estava com efeito já boa, às nove horas, no dia seguinte, quando Juliana a foi acordar, com "uma cartinha da senhora D. Leopoldina".

A criada de Leopoldina, a Justina, uma magrita muito trigueira, de buço e esperava na sala de jantar. Era amiga de Juliana; beijocavam-se muito, diziam-se sempre finezas. E depois de ter guardado a resposta de Luísa num cabazinho que trazia no braço, traçou o xale e muito risonha:

— Então que há por cá de novo, Sra. Juliana?

— Tudo velho, Sra. Justina. E mais baixo:

— O primo da senhora, agora, vem todos os dias. Perfeito rapaz! Tossiram ambas, baixinho, com malícia.

— E por lá, Sra. Justina, quem vai por lá?

Justina fez um aceno de desprezo.

— Um rapazola, um estudante. Fraca coisa!...

— Sempre pinga - disse Juliana com um risinho.

A outra exclamou:

— Olha quem! O pelintra! Nem cheta!

E erguendo o olhar com saudade:

— Ai, como o Gama não há! Quando era do tempo do Gama, isso sim! Nunca ia que me não desse os seus dez tostões, às vezes meia libra. Ai, devo dize-lo, foi ele que me ajudou para o meu vestido de seda! Este agora!... E um fedelho. Eu nem sei como a senhora suporta aquilo! E amarelado, enfezado! Aquilo pode prestar para nada!

Juliana disse então:

— Pois olhe, Sra. Justina, eu agora é que começo a considerar: é onde se está bem, é em casas em que há podres! Encontrei ontem a Agostinha, a que está em casa do comendador, ao Rato... Pois senhor, não se imagina. É tudo o que se pode! Tudo! Anel, vestido de seda, sombrinha, chapéu! E de roupa branca diz que é um enxoval. E tudo o Couceiro, o que está com a ama. E pelas festas sua moeda. Diz que é um homem rasgado. Ela também, verdade seja, tem um trabalhão: fá-lo entrar pelo jardim, e para o fazer sair tem de esperar...

— Ah, lá não! - acudiu a Justina. - Lá é pela escada.

Riram baixinho, saboreando o escândalo.

— Gênios... - disse Juliana.

— Ai, lá isso, o nosso tem estômago - afirmou Justina. - Encontram na escada, e tanto se lhe dá...

E muito afetuosamente, arranjando o xale:

— E adeusinho, que se faz tarde, Sra. Juliana. Ela vem hoje cá jantar, a senhora. Estive toda a manhã a engomar uma saia; desde às sete!

— Também eu por cá - disse Juliana. - Elas é o que tem; quando há amante sempre há mais que engomar.

— Deitam mais roupa branca, deitam - observou a Justina.

— As que deitam! - exclamou Juliana, com desprezo.

Mas Luísa tocou a campainha dentro.

— Adeus, Sra. Juliana - disse logo a outra, ajeitando o chapéu.

— Adeus, Sra. Justina.

Foi acompanhá-la ao patamar. Beijocaram-se. Juliana voltou muito apressada ao quarto de Luísa; estava já a pé, vestindo-se, muito alegre, cantarolando.

O bilhete de Leopoldina dizia na sua letra torta:

Meu marido vai hoje para o campo. Eu vou-te pedir de jantar, mas não posso ir antes das seis. Convém-te?

Ficou muito contente. Havia semanas que a não via... O que iam rir, palrar! E o Basílio devia vir às duas. Era um dia divertido, bem preenchido...

Foi logo à cozinha dar as suas ordens para o jantar. Quando descia, o criadito de Sebastião tocava a campainha, com um ramo de rosas, a saber se estava melhor.

— Que sim, que sim! - gritou logo Luísa. - E para o tranqüilizar, para que ele não viesse: - Que estava boa, que até talvez saísse...

As rosas, sim, é que vinham a propósito. Foi ela mesma pô-las nos vasos, olhando sempre, o olhar vivo, satisfeita de si, da sua vida que se tornava interessante, cheia de incidentes...

E às duas horas, vestida, veio para a sala, pôs-se ao piano a estudar a Medjé de Gounod, que Basílio trouxera, e que a encantava agora muito, com os seus acentos suspirados e cálidos.

— Às duas e meia, porém, começou a estar impaciente; os dedos embrulhavam-se no teclado. - "Já devia ter vindo, Basílio!" - pensava.

Foi abrir as janelas, debruçar-se para a rua; mas a criada do doutor, que costurava por dentro dos vidros, ergueu logo olhos tão sôfregos que Luísa fechou rapidamente as vidraças. Veio recomeçar a melodia, já nervosa.

Uma carruagem rolou. Ergueu-se agitada; batia-lhe o coração. A carruagem passou...

Três horas já! O calor parecia-lhe maior, insuportável; sentia-se afogueada; foi cobrir-se de pó-de-arroz. Se Basílio estivesse doente! E num quarto de hotel! Só, com criados desleixados! Mas não, ter-lhe-ia escrito nesse caso!... Não viera, não se importara! Que grosseiro, que egoísta!

Era bem tola em se afligir. Melhor! Mas, abafava-se, positivamente! Foi um leque, e as suas mãos enraivecidas sacudiram num frenesi a gaveta, ao se abriu logo, um pouco perra. Pois bem, não o tornaria a receber!

E o seu grande amor, de repente, como um fumo que uma rajada dissipa, desapareceu! Sentiu um alivio, um grande desejo de tranqüilidade. Era absurdo, realmente, com um marido como Jorge, pensar noutro homem, um leviano, um estróina!...

Deram quatro horas. Veio-lhe uma desesperação, correu ao escritório de uma folha de papel, escreveu à pressa:

Querido Basílio.

Por que não vens? Estás doente? Se soubesse os tormentos por que me fazes passar...

A campainha retiniu. Era ele! Amarrotou o bilhete, meteu-o no bolso do ficou esperando, palpitante. Passos de homem pisaram no tapete da sala. Entrou com o olhar faiscante... Era Sebastião, um pouco pálido, que lhe apertou muito as mãos. Estava melhor? Tinha dormido bem?

Sim, obrigada, estava melhor. Sentara-se no sofá, muito vermelha. Mal sabia o que dizer.

Repetiu com um sorriso vago:

— Estou muito melhor! - E pensava: - "Não me deixa agora a casa, este maçador!"

— Então, não saiu? - perguntou Sebastião, sentado na poltrona, com o chapéu desabado nas mãos.

Não, estava um pouco fatigada ainda.

Sebastião passou devagar a mão pelos cabelos, e com uma voz que o embaraço engrossava:

— Também agora tem sempre companhia pela manhã...

— Sim, meu primo Basílio tem aparecido. Há tanto tempo que nos não víamos! Fomos criados de pequenos, quase... Tenho-o visto quase todos os dias.

Sebastião fez logo rolar um pouco a poltrona, e curvando-se, baixando a voz:

— Eu mesmo tinha vindo para lhe falar a esse respeito...

Luísa abriu um olhar surpreendido.

— A respeito de quê?

— É que se repara... A vizinhança é a pior coisa que há, minha rica amiga. Repara em tudo. Já se tem falado. A criada do lente, o Paula. Até já vieram à tia Joana. E como o Jorge não está... O Neto também reparou. Como não sabem o parentesco... E como vem todos os dias...

Luísa ergueu-se bruscamente, com o rosto alterado:

— Então eu não posso receber os meus parentes sem ser insultada? - exclamou.

Sebastião levantou-se também. Aquela cólera súbita nela, uma pessoa tão doce, atarantou-o como um trovão que estala num céu claro de verão.

Pôs-se a dizer, quase ansiosamente:

— Oh, minha rica senhora! Mas repare, eu não digo... É por causa da vizinhança!...

— Mas que pode dizer a vizinhança?

A sua voz tinha uma vibração aguda. E batendo com as mãos, apertando-as, exaltada:

— Isto é curioso! Tenho um parente único, com quem fui criada, que não vejo há uns poucos de anos, vem-me fazer três ou quatro visitas, está um momento, e já querem deitar maldade!

Falava convencida, esquecendo as palavras de Basílio, os beijos, o cupê...

Sebastião, acabrunhado, enrolava o chapéu nas mãos trêmulas. E com uma voz abafada:

— Eu, tinha-me parecido prudente avisar; o Julião também...

— O Julião? - exclamou ela. - Mas que tem o Julião com isso? Com que direito se metem no que se passa em minha casa? O Julião!

A intervenção, as decisões de Julião pareciam-lhe um acréscimo de afronta. Caiu numa cadeira, com as mãos contra o peito, os olhos no teto.

— Oh! Se o Jorge aqui estivesse! Oh! Se ele aqui estivesse, Santo Deus!

Sebastião balbuciou aniquilado:

— Era para seu bem...

— Mas que mal me pode suceder?

E erguendo-se, indo de um móvel a outro, numa excitação:

— É o meu único parente. Fomos criados ambos; brincávamos juntos. Em casa de mamã, na Rua da Madalena, estava lá sempre. Ia lá jantar todos os dias. fôssemos irmãos. Em pequena trazia-me ao colo...

E amontoava detalhes daquela fraternidade, exagerando uns, inventando acaso, na improvisação da cólera.

— Vem aqui - acrescentava - está um bocado; fazemos música; ele toca ente, fuma um charuto, vai-se...

Instintivamente justificava-se.

Sebastião estava sem idéia, sem resolução. Parecia-lhe aquela uma outra Luísa, diferente, que o assustava; e quase curvava os ombros sob a estridência da sua voz, que nunca conhecera tão forte, vibrando numa loquacidade trapalhona.

Erguendo-se enfim, disse com uma dignidade melancólica:

— Eu entendi que era o meu dever, minha senhora.

Fez-se um silêncio grave. Aquele tom sóbrio, quase severo, obrigou-a a corar um pouco dos seus espalhafatos; baixou os olhos; disse embaraçada:

— Perdoe, Sebastião! Mas realmente!... Não, acredite, juro-lhe, estou-lhe muito obrigada em me avisar. Fez muito bem Sebastião!

Exclamou logo, vivamente:

— Para evitar qualquer calúnia dessas línguas danadas! Pois não é verdade?

Justificou então a sua intervenção, com muita amizade: às vezes por uma palavra arma-se uma intriga, e quando uma pessoa está prevenida...

— Decerto, Sebastião! - repetiu ela. - Fez perfeitamente bem em me avisar. Decerto!

Tinha-se sentado; o olhar reluzia-lhe febrilmente; e a cada momento limpava com o lenço os cantos secos da boca.

— Mas que hei de eu fazer, Sebastião! Diga!

Ele comovia-se agora de a ver assim ceder, aconselhar-se, quase lamentava gravidade das suas advertências, perturbar a alegria das suas intimidades. Disse:

— Está claro que deve ver seu primo; recebê-lo... Mas enfim, sempre é bom uma certa reserva, com esta vizinhança! Eu se fosse a si contava-lhe... explicava-lhe...

— Mas, por fim, que diz essa gente, Sebastião?

— Repararam. Quem seria? Quem não seria? Que vinha; que estava; o diabo!

Luísa ergueu-se impetuosamente:

— Eu bem tenho dito a Jorge! Tantas vezes lho tenho dito! Isto é uma rua impossível! Não se mexe um dedo que não espreitem, que não cochichem!

— Não têm que fazer...

Houve um silêncio. Luísa passeava pela sala, com a cabeça baixa, a testa franzida; e parando, olhando quase ansiosamente para Sebastião:

— O Jorge se soubesse é que tinha um desgosto! Santo Deus!

— Escusa de saber! - exclamou logo Sebastião. - Isto fica entre nós!

— Para o não afligir, não é verdade? - acudiu ela

— Está claro! Isto fica entre nós.

E Sebastião estendendo-lhe a mão, quase humildemente.

— Então não está zangada comigo, hem?

— Eu, Sebastião! Que tolice!

— Bem, bem. Acredite! - e espalmou a mão sobre o peito - eu entendi que era o meu dever. Porque enfim, a minha rica amiga não sabia nada...

— Estava bem longe!...

— Decerto. Bem, adeus. Não a quero maçar mais. - E com uma voz profunda, comovida: - Cá estou às ordens, hem!

— Adeus, Sebastião... Mas que gente! Por ver entrar o pobre rapaz três ou quatro vezes!...

— Uma canalha, uma canalha! - disse Sebastião, arregalando os olhos.

E saiu.

Apenas ele fechou a porta:

— Que desaforo! - exclamou Luísa. - Isto só a mim!

Porque a intervenção de Sebastião, no fundo, irritava-a mais que os mexericos da vizinhança! A sua vida, as suas visitas, o interior da sua casa era discutido, resolvido por Sebastião, por Julião, por tutti quanti! Aos vinte e cinco anos tinha mentores! Não estava má! E por quê, Santo Deus? Porque seu primo, o seu único parente vinha vê-la!...

Mas então, de repente, emudecia interiormente. Lembravam-lhe os olhares de Basílio, as suas palavras exaltadas, aqueles beijos, o passeio ao Lumiar. A sua alma corava baixo, mas o seu despeito seguia declamando alto: - decerto, havia um sentimento, mas era honesto, ideal, todo platônico!... Nunca seria outra coisa! Podia ter lá dentro, no fundo, uma fraqueza... Mas seria sempre uma mulher de bem, fiel, só de um!...

E esta certeza irritava-a então contra os palratórios da rua! Que de resto era lá possível, que só por verem entrar Basílio, quatro ou cinco vezes, às duas horas da tarde, começassem logo a murmurar, a cortar na pele?... Sebastião era um caturra, com terrores de ermitão! E que idéia, ir consultar Julião! Julião! Era ele, decerto, que o instigara a vir pregar, assustá-la, humilhá-la!... Por quê? Azedume, inveja! Porque Basílio tinha beleza, toalete, maneiras, dinheiro!... Se tinha!

As qualidades de Basílio apareciam-lhe então magníficas e abundantes como os atributos de um deus. E estava apaixonado por ela! E queria vir viver junto dela! O amor daquele homem, que tinha esgotado tantas sensações, abandonado decerto tantas mulheres, parecia-lhe como a afirmação gloriosa da sua beleza e a irresistibilidade da sua sedução.

A alegria que lhe dava aquele culto trazia-lhe o receio de o perder. Não o queria ver diminuído; queria-o sempre presente, crescendo, balouçando sem cessar diante dela, o murmúrio lânguido das ternuras humildes! Podia lá separar-se de Basílio! Mas se a vizinhança, as relações começavam a comentar, a cochichar... Jorge podia saber!... Aquela suposição o coração arrefecia-lhe... - Sebastião tinha razão, no fundo, era evidente!

Numa rua pequena, com doze casas, vir todos os dias, aquele lindo rapaz, e, agora que seu marido não estava... Era terrível! - Que havia de fazer, Santo Deus!...

A campainha retiniu com força; Leopoldina entrou.

Vinha furiosa com o cocheiro; que imaginasse ela, hem! Tinha parado ao Correio e o homem queria duas corridas. Uma canalha assim!...

E que calor, uf! - Atirou a sombrinha, as luvas; agitou as mãos no ar para descer o sangue, dando-lhes palidez; e diante do toucador, compondo ligeiramente os frisados do cabelo, com uma cor na pele, muito espartilhada, admirável corpete couraçado:

— Que tens tu, filha? Estás toda no ar!

Nada. Tinha-se zangado com as criadas...

— Ai! Estão insuportáveis! - Contou as exigências da Justina, os seus desmazelos. - E muito agradecida ainda que ela se me não vá! Quando a gente depende delas... - E pondo pó-de-arroz no rosto, com uma voz lenta: - Lá o meu senhor foi para o Campo Grande. Eu estive para ir jantar fora com...- Suspendeu-se, sorriu, e voltada para Luísa, mais baixo, com um tom alegre, muito sincero: - Mas olha, a falar a verdade, nem sabia onde, nem tinha dinheiro... Que ele coitado com a sua mesada mal lhe chega. Disse comigo: nada, vou ver a Luísa. Também os homens sempre, sempre, secam!... - Que tens tu para jantar? Não fizeste cerimônia, hem?

E com uma idéia súbita:

— Tens tu bacalhau?

Devia haver, talvez. Que extravagância! Por quê?

— Ai! - exclamou. - Manda-me assar um bocadinho de bacalhau! Meu marido detesta bacalhau! Aquele animal! Eu é a minha paixão. Com azeite e alho! - Mas calou-se, contrariada - Diabo!

— O quê?

— É que hoje não posso comer alho...

E entrou para a sala a rir. Foi tirar uma rosa do ramo de Sebastião, pô-la casa do corpete. Desejava ter uma sala assim - pensava, olhando em redor. Queria-a de repes azul, com dois grandes espelhos, um lustre de gás, e o seu retrato a óleo de corpo inteiro, decotada, ao pé de um rico vaso de flores...

Sentou-se ao piano, bateu rijamente o teclado, tocou motivos do Barba-Azul.

E vendo Luísa entrar:

— Mandaste arranjar o bacalhau?

— Mandei.

— Assado?

— Sim.

— E atirou, com a sua voz mordente, a sua canção querida da Grã-duquesa:

— Ouvi dizer que meu avô de vinho,
Era um tal amador...

Mas Luísa achava aquela música "espalhafatona"; queria alguma coisa triste, doce... O fado! Que tocasse o fado!...

Leopoldina exclamou logo:

— Ai, o fado novo! Tu não ouviste? É lindo! Os versos são divinos!

Preludiou, cantando com um balouçar lânguido da cabeça, o olhar erguido e turvo:

— O rapaz que eu ontem vi
Era moreno e bem feito...

— Tu não sabes isto, Luísa? Oh, filha! É o último! É de chorar! Recomeçou, com o tom muito quebrado. Era a história rimada de um amor infeliz. Falava-se nas "raivas do ciúme, nas rochas de Cascais, nas noites de luar, nos suspiros da saudade", todo o palavreado mórbido do sentimentalismo lisboeta. Leopoldina dava tons dolentes à voz, revirava um olhar expirante; uma quadra sobretudo enternecia-a; repetiu-a com paixão:

— Vejo-o nas nuvens do céu
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteia
Sinto-o sempre ao pé de mim.

— Lindo! - suspirava Luísa.

E Leopoldina terminava com ais! em que a sua voz se arrastava numa extensão desafinada.

Luísa, de pé junto do piano, sentia o cheiro do feno que ela usava; o fado, os versos entristeciam-na um pouco; e com o olhar saudoso seguia sobre o teclado os dedos ágeis e magros de Leopoldina, onde reluziam as pedras dos anéis que lhe tinha dado o Gama.

Mas Juliana entrou, vestida de passeio, com a sua cuia nova. Estava o jantar na mesa!

Leopoldina declarou que vinha a cair de fome! E a sala de jantar com as vidraças abertas, as verduras dos terrenos vagos defronte, um azul de horizonte onde se algodoavam nuvenzinhas muito brancas - alegrou-a; a sala de jantar dela tirava-lhe até o apetite; era uma tristeza; deitava para o saguão!

Pôs-se a depenicar bagos de uvas, a trincar bocadinhos de conserva - e reparando no retrato do pai de Jorge, desdobrando o guardanapo:

— Havia de ser divertido teu sogro! Tem cara de pândego!

— E há que tempos que não jantavam juntas! Desde quando?

— Desde o meu primeiro ano de casada - lembrou Luísa.

Leopoldina fez-se um pouco vermelha. Viam-se muito nesse tempo; Jorge ir às lojas ambas, aos confeiteiros, à Graça... A lembrança daquela camaradagem levou-a às recordações mais distantes do colégio. Tinha visto, havia dias, a Rita Pessoa, com o sobrinho. - Lembraste dele?

— O Espinafre?

— "Espinafre" ou não era no colégio o homem, o ideal, o herói; todas lhe escreviam bilhetes, desenhavam-lhe corações de onde saia uma fogueira; metiam-lhe no boné muito sebento ramos de flores de papel... E quando a Micaela foi apanhada, no cacifo dos baús, a devorá-lo de beijos!...

Luísa disse:

— Que horror!

— Não que a Micaela era doida!

Coitada! Tinha casado com um alferes, um homem que a espancava. Estava cheia de filhos...

— Isto é um vale de lágrimas! - resumiu Leopoldina, recostando-se.

Estava loquaz. Servia-se muito, com gula; depois picava um bocadinho na ponta do garfo, provava, deixava, punha-se a comer côdeas de pão que barrava de manteiga. E deleitava-se nas recordações do colégio! Que bom tempo!

— Lembraste quando estivemos de mal?

Luísa não se lembrava...

— Por tu teres dado um beijo na Teresa, que era o meu sentimento - disse Leopoldina.

Puseram-se a falar dos sentimentos. Leopoldina tivera quatro; a mais bonita era a Joaninha , a Freitas. Que olhos! E que bem feita! Tinha-lhe feito a corte um mês.

— Tolices! - disse Luísa corando um pouco.

— Tolices! Por quê?

Ai! Era sempre com saudades que falava dos sentimentos. Tinham sido as primeiras sensações, as mais intensas. Que agonia de ciúmes! Que delírio de reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares! E os bilhetinhos, e todas as palpitações do coração, as primeiras da vida!

— Nunca - exclamou -, nunca, depois de mulher, senti por um homem o que senti pela Joaninha!... Pois podes crer...

Um olhar de Luísa deteve-a. - A Juliana! Diabo! Tinha-se esquecido! Constrangia-se muito, com o seu sorrisinho torcido, a figura de peito chato, o tique-taque dos metálico dos tacões.

— E que foi feito da Joaninha? - perguntou Luísa.

— Morrera tísica - e a voz de Leopoldina fez-se saudosa. Uma doença bem triste, não era? Mas não lhe tinha medo, ela! Batia no seio, bem formado:

— Isto é rijo, isto é são!

Juliana saiu, e Luísa observou logo:

— Vê no que falas, filha! Tem cuidado!

Leopoldina curvou-se:

— Ah! A respeitabilidade da casa! Tens razão! - murmurou.

E como Juliana entrava com o bacalhau assado, fez-lhe uma ovação!

— Bravo! Está soberbo!

Tocou-lhe com a ponta do dedo, gulosa; vinha louro, um pouco toscado, abrindo em lascas.

— Tu verás - dizia ela. - Não te tentas? Fazes mal!

Teve então um movimento decidido de bravura, disse:

— Traga-me um alho, Sra. Juliana! Traga-me um bom alho!

E apenas ela saiu:

— Eu vou ter logo com o Fernando, mas não me importa!... Ah! Obrigada, Sra. Juliana! Não há nada como o alho!...

Esborrachou-o em roda do prato, regou as lascas do bacalhau de um fio mole de azeite, com gravidade. - Divino! - exclamou. Tornou a encher o copo; achava aquilo uma pândega.

— Mas que tens tu?

Luísa com efeito parecia preocupada. Tinha suspirado baixo. Duas vezes, endireitando-se na cadeira, dissera a Juliana, inquieta:

— Parece que tocaram a campainha, vá ver.

Não era ninguém.

— Quem havia de ser? Não esperas teu marido, decerto.

— Ah! não!

E então Leopoldina, com os olhos no prato, partindo devagar, muito atenta, lascazinhas de bacalhau:

— E teu primo veio ver-te?

Luísa fez-se vermelha.

— Sim, tem vindo. Tem vindo várias vezes.

— Ah!

E depois de um silêncio:

— Ainda está bonito?

— Não está feio...

— Ah!

Luísa apressou-se a perguntar se tinha encomendado o vestido de xadrezinho? Não. E começaram a falar de toaletes, fazendas, lojas e preços... Depois, de conhecidas, de outras senhoras, de boatos - perdendo-se numa conversa de mulheres sós, miudinha e divagada, semelhante ao ramalhar de folhagens.

Viera o assado. Leopoldina já ia tendo uma cor quente nas faces. Pediu a Juliana que lhe fosse buscar o leque; - e recostada, abanando-se, declarou que se sentia como um príncipe. E ia bebericando golinhos de vinho. Que boa idéia, jantarem juntas!...

Apenas Juliana dispôs os pratos de fruta, Luísa disse-lhe logo que chamaria para o café, que podia ir. Foi ela mesmo fechar a porta da sala, correr o reposteiro de cretone:

— Estamos à vontade, agora! Faço-me velha só de olhar para esta criatura! Estou morta por a ver pelas costas!

— Mas por que a não pões na rua?

Jorge que não queria, senão...

Leopoldina protestou. Boa! Os maridos não deviam ter vontade!... Era o que faltava!...

— E o teu, então? - disse Luísa, rindo.

— Obrigada! - exclamou Leopoldina. - Um homem que faz quarto à parte!...

De resto detestava os homens que se ocupam de criadas, de róis, de azeites e vinagres...

— Que lá o meu cavalheiro até pesa a carne! - Sorriu, com ódio. - Também é o que vale, senão!... Eu só de ir à cozinha me dão enjôos...

Quis deitar vinho, mas a garrafa estava vazia.

Luísa acudiu:

— Queres, tu champanhe? - Tinha-o muito bom, que o mandava a Jorge um proprietário de minas.

Foi ela mesmo buscar a garrafa, desembrulhou-a do seu papel azul; - e com risinhos, sustos, fizeram estalar a rolha. A espuma encantou-as; olhavam os copos, caladas, com um bem-estar feliz. Leopoldina gabou-se de saber abrir muito bem o champanhe; falava vagamente de ceias passadas...

— Em terça-feira gorda, há dois anos!...

E toda recostada na cadeira, com um sorriso cálido, as asas do nariz dilatadas, a pupila úmida, olhava com sensualidade os globulozinhos vivos que subiam, sem cessar, no copo esguio.

— Se fosse rica, bebia sempre champanhe - disse.

Luísa não, ambicionava um cupê; e queria viajar, ir a Paris, a Sevilha, a Roma... Mas os desejos de Leopoldina eram mais vastos: invejava uma larga vida, com carruagens, camarotes de assinatura, uma casa em Sintra, ceias, bailes, toaletes, jogo... Porque gostava do monte. - dizia - fazia-lhe bater o coração.

E estava convencida que havia de adorar a roleta.

— Ah! - exclamou. - Os homens são bem mais felizes que nós! Eu nasci para homem! O que eu faria!

Levantou-se, foi-se deixar cair muito languidamente na voltaire, ao pé da janela. A tarde descia serenamente; por trás das casas, para lá dos terrenos vagos, nuvens arredondavam-se, amareladas, orladas de cores sangüíneas ou de tons alaranjados.

E voltando-lhe a mesma idéia de ação, de independência:

— Um homem pode fazer tudo! Nada lhe fica mal! Pode viajar, correr aventuras... Sabes tu, fumava agora um cigarrito...

O pior é que Juliana podia sentir o cheiro. E parecia tão mal!...

— É um convento, isto! - murmurou Leopoldina. - Não tens má prisão, minha filha!

Luísa não respondeu; tinha encostado a cabeça à mão: e com o olhar vago, como continuando alguma idéia.

— São tolices, no fim, andar, viajar! A única coisa neste mundo é a gente estar na sua casa, com o seu homem, um filho ou dois...

Leopoldina deu um salto na voltaire. Filhos! Credo, que nem falasse em semelhante coisa! Todos os dias dava graças a Deus em os não ter!

— Que horror! - exclamou com convicção. - O incômodo todo o tempo que se está!... As despesas! Os trabalhos, as doenças! Deus me livre! É uma prisão! E depois quando crescem, dão fé de tudo, palram, vão dizer... Uma mulher com filhos está inútil para tudo, está atada de pés e mãos! Não há prazer na vida. E estar ali a aturá-los... Credo! Eu? Que Deus não me castigue, mas se tivesse essa desgraça parece-me que ia ter com a velha da Travessa da Palha!

— Que velha? - perguntou Luísa.

Leopoldina explicou. Luísa achava uma infâmia. A outra encolheu os ombros, acrescentou:

— E depois, minha rica, é que uma mulher estraga-se; não há beleza de corpo que resista. Perde-se o melhor. Quando se é como a tua amiga, a D. Felicidade, enfim!... Mas quando se é direitinha e arranjadinha!... Nada, minha rica! Embaraços não faltam!

Por baixo, na rua, o realejo do bairro, no seu giro da tarde, veio tocar o final da Traviata; ia escurecendo; já as verduras dos quintais tinham uma igual cor parda; e as casas para além esbatiam-se na sombra.

A Traviata lembrou a Luísa a Dama das camélias; falaram do romance; recordaram episódios...

— Que paixão que eu tive por Armando em rapariga! - disse Leopoldina.

— E eu foi por D'Artagnan - exclamou ingenuamente Luísa.

Riram muito.

— Começamos cedo - observou Leopoldina. - Dá-me uma gotinha mais.

Bebeu, pousou o cálice - e encolhendo os ombros:

— Oh! Começamos cedo? Começam todas! Aos treze anos já a gente vai na sua quarta paixão. Todas são mulheres, todas sentem o mesmo! - E batendo o compasso com o pé, cantou, no tom do fado:

— O amor é uma doença
Que costuma andar no ar;
Só d'ir à janela às vezes
S'apanha a febre d'amar!

— Estou hoje com uma telha! - E espreguiçando-se muito languidamente: - No fim de contas é o que há de melhor neste mundo; o resto é uma sensaboria! Não é verdade? Dize, tu! Não é verdade?

Luísa murmurou:

— Se é! - E acrescentou logo: - Creio eu!

Leopoldina ergueu-se, e escarnecendo-a:

— Crê ela! Pobre inocentinha! Vejam o anjinho!

Foi-se encostar à janela; ficou a olhar pelos vidros o descer do crepúsculo; de repente pôs-se a dizer devagar:

— Realmente vale bem a pena estar uma pobre de Cristo a privar-se, a passar uma vida de coruja, a mortificar-se, para vir um dia uma febre, um ar, uma soalheira e boas noites, vai-se para o alto de São João! Tó rola!

A sala agora estava um pouco escura.

— Pois não te parece? - perguntou ela.

Aquela conversa embaraçava Luísa; sentia-se corar, mas o crepúsculo, as palavras de Leopoldina davam-lhe como o enfraquecimento de uma tentação. Declarou todavia imoral semelhante idéia.

— Imoral, por quê?

Luísa falou vagamente nos deveres, na religião. Mas os deveres irritavam Lepoldina. Se havia uma coisa que a fizesse sair de si - dizia - era ouvir falar em deveres!...

— Deveres? Para com quem? Para um maroto como meu marido?

Calou-se, e passeando pela sala excitada:

— E em quanto à religião, histórias! A mim me dizia o Pe, Estêvão, o de luneta, que tem os dentes bonitos, que me dava todas as absolvições, se eu fosse com ele a Carriche!

— Ah, os padres... - murmurou Luísa.

— Os padres quê? São a religião! Nunca vi outra. Deus, esse, minha rica, está longe, não se ocupa do que fazem as mulheres.

Luísa achava horrível aquele modo de pensar. A felicidade, a verdadeira, segundo ela, era ser honesta...

— E a bisca em família! - resmungou Leopoldina, com ódio.

Luísa disse, animada:

— Pois olha que com as tuas paixões, umas atrás das outras...

Leopoldina estacou:

— O quê?

— Não te podem fazer feliz!

— Está claro que não! - exclamou a outra. - Mas... - procurou a palavra; não a quis empregar decerto; disse apenas com um tom seco: - Divertem-me!

Calaram-se. Luísa pediu o café.

Juliana entrou com a bandeja, trouxe luz; daí a pouco foram para a sala.

— Sabes quem me falou ontem de ti? - disse Leopoldina, indo estender-se no divã,

— Quem?

— O Castro.

— Que Castro?

— O de óculos, o banqueiro.

— Ah!

— Muito apaixonado por ti sempre.

Luísa riu.

— Doido, palavra! - afirmou Leopoldina.

A sala estava às escuras, com as janelas abertas; a rua esbatia-se num crepúsculo pardo, um ar lânguido e doce amaciava a noite.

Leopoldina esteve um momento calada; mas o champanhe, a meia obscuridade deram-lhe bem depressa a necessidade de cochichar confidenciazinhas. Estirou-se mais no divã, numa atitude toda abandonada; pôs-se a falar dele. Era ainda o Fernando, o poeta. Adorava-o.

— Se tu soubesses! - murmurava com um ar de êxtase. - É um amor de rapaz!

A sua voz velada tinha inflexões de uma ternura cálida. Luísa sentia-lhe o hálito e o calor do corpo, quase deitada também, enervada; a sua respiração alta tinha por vezes um tom suspirado; e a certos detalhes mais picantes de Leopoldina soltava um risinho quente e curto, como de cócegas... Mas passos fortes de botas de tachas subiram a rua, e no candeeiro defronte o gás saltou com um jato vivo. Uma branda claridade pálida penetrou na sala.

Leopoldina ergueu-se logo. - Tinha de ir já, já, ao acender do gás. Estava à espera, o pobre rapaz! Entrou no quarto, mesmo às escuras, a pôr o chapéu, buscar a sombrinha. - Tinha-lhe prometido, coitado, não podia faltar. Mas realmente embirrava de ir só. Era tão longe! Se a Juliana pudesse vir acompanhá-la...

— Vai, sim, filha! - disse Luísa.

Ergueu-se preguiçosamente com um grande ai!, foi abrir a porta, e deu de cara com Juliana, na sombra do corredor.

— Credo, mulher, que susto!

— Vinha saber se queriam luz...

— Não. Vá por um xale para acompanhar a senhora D. Leopoldina! Depressa!

Juliana foi correndo.

— E quando apareces tu, Leopoldina? - perguntou Luísa.

Logo que pudesse. Para a semana estava com idéias de ir ao Porto ver a tia Figueiredo, passar quinze dias na Foz...

A porta abriu-se.

— Quando a senhora quiser... - disse Juliana.

Fizeram grandes adeuses, beijaram-se muito. Luísa disse rindo ao ouvido de Leopoldina: - Sê feliz!

Ficou só. Fechou as janelas, acendeu as velas, começou a passear pela sala, esfregando devagar as mãos. E, sem querer, não podia desprender a idéia de Leopoldina que ia ver o seu amante! O seu amante!...

Seguia-a mentalmente: caminhava depressa decerto falando com Juliana; chegava; subia a escada, nervosa; atirava com a porta - e que delicioso, que ávido, que profundo o primeiro beijo! Suspirou. Também ela amava - e um mais belo, mais fascinante. Por que não tinha vindo?

Sentou-se ao piano preguiçosamente; pôs-se a cantar baixo, triste, o fado de Leopoldina:

— E por mais longe que esteia
Vejo-o sempre ao pé de mim!...

Mas um sentimento de solidão, de abandono, veio impacientá-la. Que seca, estar ali tão sozinha! Aquela noite cálida, bela e doce, atraía-a, chamava-a para fora, passeios sentimentais, ou para contemplações do céu, num banco de jardim, com as mãos entrelaçadas. Que vida estúpida, a dela! Oh! Aquele Jorge! Que idéia ir para o Alentejo!

As conversas de Leopoldina e a lembrança das suas felicidades voltavam-lhe a cada momento; uma pontinha de champanhe agitava-se no sangue. O relógio do quarto começou lentamente a dar nove horas - e de repente a campainha retiniu.

Teve um sobressalto; não podia ser ainda Juliana! Pôs-se a escutar assustada. Vozes falavam à cancela.

— Minha senhora - veio dizer Joana baixo - é o primo da senhora que se vem despedir...

Abafou um grito, balbuciou:

— Que entre!

Os seus olhos dilatados cravavam-se febrilmente na porta. O reposteiro franziu-se; Basílio entrou, pálido, com um sorriso fixo.

— Tu partes! - exclamou ela surdamente, precipitando-se para ele.

— Não! - E prendeu-a nos braços. - Não! Imaginei que me não recebias a esta hora, e tomei este pretexto.

Apertou-a contra si, beijou-a; ela deixava, toda abandonada; os seus lábios prendiam-se aos dele. Basílio deitou um olhar rápido, em redor, pela sala, e foi-a levando abraçado, murmurando: - Meu amor! Minha filha! - Mesmo tropeçou na pele de tigre, estendida ao pé do divã.

— Adoro-te!

— Que susto que tive! - suspirou Luísa.

— Tiveste?

Ela não respondeu; ia perdendo a percepção nítida das coisas; sentia-se como adormecer; balbuciou: - Jesus! Não! Não! - Os seus olhos cerraram-se.

Quando a campainha retiniu fortemente às dez horas, Luísa, havia momentos, sentara-se à beira do divã. Mal teve força de dizer a Basílio:

— Há de ser a Juliana, tinha ido fora...

Basílio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala, foi acender um charuto. Para quebrar o silêncio sentou-se ao piano, tocou alguns compassos ao acaso, e, erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a ária do terceiro ato do Fausto.

— Al pallido chiarore
Dei ostri d'oro...

Luísa, através das últimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu espírito, ainda estremunhado: era uma noite, havia anos, em São Carlos, num camarote com Jorge; uma luz elétrica dava ao jardim, no palco, um tom lívido de luar legendário; e numa atitude extática e suspirante o tenor invocava as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe: "Que lindo!" E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento. Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge, passando-lhe a mão pela cinta, repetia:

— Al pallido chiarore
Dei astri d'oro...

E apertava-a contra si...

Ficara imóvel à beira do divã, quase a escorregar, os braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabelo desmanchado. Basílio então veio sentar-se devagarinho junto dela. Em que estava a pensar?

— Nada.

Ele passou-lhe o braço pela cinta, começou a dizer que havia de procurar uma casinha para se verem melhor, estarem mais à vontade; não era mesmo prudente ali em casa dela...

E falando, voltava a cada momento o rosto, soprava para o lado o fumo do charuto.

— Não te parece que vir eu aqui, todos os dias, pode ser reparado?

Luísa ergueu-se bruscamente; lembrara-lhe Sebastião!... E com uma voz um pouco desvairada:

— Já é tão tarde! - disse.

— Tens razão.

Foi buscar o chapéu em bicos de pés, veio beijá-la muito, saiu.

Luísa sentiu-o acender um fósforo, fechar devagarinho a cancela.

Estava só; pôs-se a olhar em roda, como idiota. O silêncio da sala parecia-lhe enorme. As velas tinham uma chama avermelhada. Piscava os olhos, tinha a boca seca. Uma das almofadas do divã estava caída, apanhou-a.

E com um ar sonâmbulo entrou no quarto. Juliana veio trazer o rol. E já vinha com a lamparina, estava a arranjá-la...

Tinha tirado a cuia; subiu à cozinha quase a correr. A Joana, que estivera dormitando, espreguiçava-se com bocejos enormes.

Juliana pôs-se a arranjar a torcida da lamparina; os dedos tremiam-lhe; tinha no olhar um brilho agudo; e depois de tossir, devagarinho, com um sorriso para Joana:

— E então a que horas veio o primo da senhora?

— Veio logo que vossemecê saiu, estavam a dar as nove.

— Ah!

Desceu com a lamparina; e sentindo Luísa na alcova despir-se:

— A senhora não quer chá? - perguntou, com muito interesse.

— Não.

Foi à sala, fechou o piano. Havia um forte cheiro de charuto. Pôs-se a olhar em redor, devagar, andando com um passo sutil... De repente agachou-se, ansiosamente: ao pé do divã uma coisa reluzia. Era uma travessa de Luísa, de tartaruga, com o aro dourado. Tornou a entrar no quarto em pontas de pés, pousou-a no toucador, entre os rolos de cabelo.

— Quem anda aí? - perguntou da alcova a voz sonolenta de Luísa.

— Sou eu, minha senhora, sou eu; estive a fechar a sala. Muito boas noites, minha senhora!

Àquela hora Basílio entrava no Grêmio. Procurou pelas salas. Estavam desertas. Dois sujeitos, com os rostos entre os punhos, curvados em atitudes lúgubres, ruminavam os jornais; aqui, além, junto a mesinhas redondas, pessoas de calça branca mastigavam torradas com uma satisfação plácida; as janelas estavam fechadas, a noite quente, e o calor mole do gás abafava. Ia descer quando de uma saleta de jogo, de repente, saiu o ruído irritado de uma altercação; trocavam-se injúrias, gritava-se: - Mente! O asno é você!

Basílio estacou, escutando. Mas subitamente, fez-se um grande silêncio; uma das vozes disse com brandura:

— Paus!

A outra respondeu com benevolência:

— É o que devia ter feito há pouco.

E imediatamente a questão rebentou de novo, estridente. Praguejavam, obscenidades.

Basílio foi ao bilhar. O Visconde Reinaldo, de pé, apoiado ao taco, seguia com uma imobilidade grave o jogo do seu parceiro; mas apenas viu Basílio, veio para ele rapidamente, e muito interessado:

— Então?

— Agora mesmo - disse Basílio mordendo o charuto.

— Enfim, hem? - exclamou Reinaldo, arregalando os olhos, com uma grande alegria.

— Enfim!

— Ainda bem, menino! Ainda bem!

Batia-lhe no ombro, comovido.

Mas chamaram-no para jogar; e todo estirado sobre o bilhar, com uma perna no ar, para dar com mais segurança o efeito, dizia com a voz constrangida pela atitude:

— Estimo, estimo, porque essa coisa começava a arrastar...

— Taque! Falhou a carambola.

— Não dou meia! - murmurou com rancor.

E chegando-se a Basílio, a dar giz no taco:

— Ouve cá...

Falou-lhe ao ouvido.

— Como um anjo, menino! - suspirou Basílio.