O Seminarista/IX
A educação claustral é triste em si e em suas conseqüências: o regime monacal, que se observa nos seminários, é mais próprio para formar ursos do que homens sociais. Dir-se-ia que o devotismo austero, a que vivem sujeitos os educandos, abafa e comprime com suas asas lôbregas e geladas naquelas almas tenras todas as manifestações espontâneas do espírito, todos os vôos da imaginação, todas as expansões afetuosas do coração.
O rapaz que sai de um seminário depois de ter estado ali alguns anos, faz na sociedade a figura de um idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e instruído que seja, não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça e afabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezes ficar perdido para sempre.
Eis a razão por que Eugênio, que todos desejavam e esperavam ver brilhar na conversação como um pequeno sábio, representou o papel tristíssimo que vimos, diante de pessoas que desde a infância lhe eram familiares. Não era por certo, que ele não sentisse no cérebro um turbilhão de idéias, e mil sentimentos estuarem-lhe no coração; mas é que o espírito está sujeito às mesmas leis do corpo a certos respeitos. Como aquele, que esteve longos anos encarcerado, ao sair da prisão não pode mover mais os membros entorpecidos, assim o espírito recluso largo tempo entre as paredes de um claustro, atado continuamente ao poste do estudo forçado e da oração, sente-se paralisado, quando lhe é mister desenvolver-se em uma esfera mais ampla e mais livre.
Verdade é que a situação de Eugênio era naquela ocasião sobremaneira melindrosa. Seu coração passava por uma crise violenta e profunda, como o leitor pode imaginar. Se a imagem da simples e travessa menina de doze anos não se tinha apagado do espírito durante uma ausência de quatro anos, a presença real dela agora transformada em mulher, antes em anjo radiante de mocidade e formosura, o havia deslumbrado e subjugado completamente, ameaçando deitar por terra toda a sua vocação clerical, e anular de todo o resultado dos esforços empregados pelos padres durante quatro anos de noviciado.
O mancebo já se envergonhava de querer ser padre, e todas as vezes que olhava para Margarida, não podia conformar-se com semelhante idéia.
A visita de Umbelina e sua filha, como é de costume na roça, durou quase todo o dia. As vizinhas, em companhia da dona da casa e de Eugênio, correram a casa toda, foram ao moinho, ao paiol, passearam pelo quintal, comeram frutas, colheram flores, jantaram e tomaram café três ou quatro vezes. Eugênio as acompanhava mas quase sempre um pouco afastado, taciturno e sorumbático e apenas dizendo uma ou outra palavra, quando sua mãe ou Umbelina o interpelavam. Estava como que espantado, com os olhos fitos em Margarida, querendo falar, e não achando nada que dizer. As grandes emoções lançam uma nuvem no espírito e paralisam a língua.
Margarida, porém, que ainda não tinha sido iniciada nos rigores e escrúpulos da vida claustral, e por cujo espírito nunca passara a idéia de ser freira, abandonava-se com efusão à alegria de tornar a ver o seu companheiro de infância, e sorria, cantava, brincava como uma borboleta por entre os canteiros florescidos do jardim, ou pelas sombras do pomar, apanhando flores e frutas que vinha oferecer a Eugênio, e com suas alegres conversas e encantadoras travessuras o provocava a sair daquele estado constrangido e acanhado em que o via.
De repente, Margarida, dando uma volta pelo jardim, apanhou duas flores e correu a apresentá-las a Eugênio.
— Aqui estão duas flores - disse ela -, um cravo e uma rosa. O cravo é você, a rosa sou eu. Fique com a rosa, que eu guardarei o meu cravo. Aquele que deitar fora a sua flor, é porque não sabe querer bem.
Eugênio tomando a flor, pela primeira vez ousou fitar em Margarida olhos ardentes de ternura e paixão; mas para logo os abaixou, e cobriu-se de rubor, como faria a mais pudica e tímida virgem.
— Oh!... Margarida!... eu - ia dizendo o moço, porém Margarida voltando-se ligeira sem o escutar foi correndo para junto de sua mãe, que se achava a alguma distância com a senhora Antunes.
— Eu te adoro!... - era por certo o que Eugênio ia dizer; essa palavra, porém, Margarida já a tinha lido nos olhos do mancebo.
Em sua ingênua candura, Margarida, não enxergava inconveniente algum em reatar e mesmo, se fosse possível, estreitar os laços da sua antiga, familiaridade e afeição para com o amigo da sua infância. Como a flor, que entrega sem resistência o perfume do seu cálix ao sopro das virações, ela dava livre expansão aos inocentes afetos do seu coração.
Quando as visitas se foram embora, Eugênio pôs-se a refletir e ficou muito descontente de si mesmo. A lembrança do papel nulo e quase ridículo que fizera diante de Margarida mortificava-o, e protestou de si para si que quando fosse à casa de Umbelina, havia de tirar completa desforra.
Portanto, no dia seguinte pela manhã Eugênio apressou-se em ir pagar a visita às suas boas vizinhas. Era em princípio de outubro; a manhã estava risonha e brilhante, as primeiras chuvas já tinham lavado os horizontes desse vapor fumacento que os abafa nos meses de agosto e setembro, e que, desbotando-lhes as cores e confundindolhes as formas, os envolve como em um véu místico de saudade e melancolia. O ar estava tão transparente, o céu era de um azul tão puro e límpido, que permitiam ver distintamente em toda a sua nitidez as formas e ondulações das últimas colinas nos mais remotos longes. O sol cintilava sobre o tapete orvalhado dos espigões, e a fresca aragem da manhã sacudia da coma dos arvoredos as lágrimas da noite.
À medida que se ia aproximando da casa de Umbelina, à vista daqueles sítios, onde não havia uma árvore, uma restinga, que o não tivesse abrigado à sua sombra, uma vereda do bosque
que não tivesse recebido o vestígio de seus passos, uma fonte ou arroio que não lhe tivesse lambido os pés ou umedecido os lábios sequiosos, ia-se cada vez mais exaltando na imaginação de Eugênio a viva e profunda impressão que na véspera nele deixara a presença de Margarida. Era a encantadora e pitoresca moldura que circundava a imagem de um anjo.
Aquela alva casinha atufada entre as ramagens da grande figueira silvestre, aquele vargedo coberto de fresca e macia grama, a ponte, a tranqueira, as paineiras vizinhas, o caminho da vila, que lá ia serpeando entre os capões e galgando de colina em colina, todo esse panorama o enlevava, e lhe afogava o coração num pego de mil suaves emoções.
O rumorejo daquelas folhagens, o murmúrio daquele córrego, o canto dessas aves, o eco dessas brenhas, como que lhe sussurravam ao ouvido um hino de amor, de felicidade e de esperança.
Todos aqueles seres eram também seus conhecidos, seus amigos de infância, que festejavam sua volta, e com ela exultavam de prazer.
Como respirava à larga o peito do mancebo através dos campos e colinas da terra natal! que bálsamo salutar e vivificante lhe entornavam na alma aquelas auras impregnadas de aromas silvestres, que lhe bafejavam a fronte e brincavam com seus cabelos!
Quão tristonhos e acanhados lhe pareceram então os horizontes e os outeiros de Congonhas do Campo à vista das risonhas campinas e largas perspectivas da fazenda paterna! como lúgubre e sombria se lhe afigurava a fachada do seminário em comparação do aspecto faceiro e festival da casinha da tia Umbelina!
Adeus, seminário!... adeus, místicas e devotas veleidades! adeus, rezas e penitências!... adeus, projetos eclesiásticos e sacerdotais! tudo isso fugiu-lhe de roldão da fantasia, como um bando de corujas, fugindo espavoridas da lôbrega caverna, onde o sol enfiou de chofre uma réstia de luz viva.
Eugênio sentia reverdecer em seu seio a flor da pura e inocente afeição da sua infância e aspirava-lhe os últimos e inebriantes perfumes.
Margarida, que já esperando Eugênio o tinha avistado de longe, foi ao seu encontro na ponte das paineiras. Ali, à vista daquelas mudas testemunhas de todos os seus brinquedos de infância, todo o seu medo e acanhamento esvaeceu-se como a névoa da montanha ao sopro da brisa matinal. Quando chegaram à casa de Umbelina com semblante risonho e as mãos entrelaçadas, já toda a afeição e intimidade entre eles estavam restabelecidas no antigo pé.
Eugênio soube retribuir com usura as visitas que lhe fizeram as vizinhas; ficou o dia inteiro em casa delas.
À tarde, depois de ter Eugênio desenferrujado a língua em plena liberdade, contando-lhes todas as particularidades da sua vida de seminarista, e de ter Margarida esgotado os capítulos da crônica de casa durante a ausência do seu amigo, esta convidou Eugênio a passear.
Sem que tivesse precedido ajuste algum, os passos dos dois adolescentes se encaminharam instintivamente para o sitio favorito de seus brinquedos de outrora e dirigiram-se através do vargedo para a ponte das paineiras. Chegados ali, Eugênio encostou-se ao tronco de uma das paineiras, e de braços cruzados ali ficou por alguns instantes silencioso e pensativo. A lembrança das horas de puro e inocente prazer, que ali outrora havia fruído em companhia de Margarida, se elevava como um perfume do íntimo do coração, e remontando ao espírito o envolvia como em um ambiente de odor e suavidade.
— Que está aí a cismar? - disse Margarida, sacudindo-lhe o braço. - Volte-se e veja o que é que está aí na casca dessa paineira e daquela também.
Eugênio reparou para o tronco das duas paineiras, e viu neles entalhados em um a letra E, e no outro a letra M.
— Eugênio e Margarida! - exclamou ele. - Aposto que é isto que querem dizer estas letras.
— É isso mesmo; adivinhou. Fui eu que fiz essas letras aí com a ponta de um canivete.
— Que bonita lembrança você teve! eu também no seminário às vezes tive essa idéia, quando estava traduzindo Virgílio... se você soubesse latim, eu havia, de jurar, que já leu aquele autor...
"Crescent illae, et vos crescetis, amores."
— Não entendo nada desses latinórios; o que sei é que esta árvore sou eu, e essa lá é você. Assim como elas nasceram aqui juntas e juntas hão de morrer, assim desejo que aconteça a nós dois, que também nascemos perto um do outro e fomos criados juntos. Nós também havemos de viver juntos como estas duas árvores, entrançando no ar os ramos uns nos outros, não é assim, Eugênio!
— Quem dera, Margarida!... se Deus permitisse isso era tão bom!... mas... eu sei?...
— Há de permitir; por que não? que necessidade temos nós de nos apartar um do outro?
— Mas eu não sou senhor de mim, Margarida; hei de fazer o que o meu pai mandar.
— Isso é agora; mas depois que ficar homem...
— Ah! isso sim; depois que eu for homem, hei de fazer o que eu entender, e Deus nos há de ajudar, que acabados os meus estudos nunca mais nos havemos de separar, sou eu que to juro, Margarida.
Depois os dois, continuando a passear pela vargem, a cada passo evocavam uma lembrança de seus brincos e travessuras infantis.
— Lembra-se do juramento que aqui me fez?... perguntou Margarida parando subitamente em certo lugar.
— Eu? qual... juramento?...
— Bem que se lembra; está se fazendo esquecido.
— Palavra, que não me lembro...
— Não creio... Pois não me jurou aqui que havia de ser eu a primeira pessoa que havia de confessar quando fosse padre?...
Padre!... a esta palavra fatal Eugênio sentiu um arrepio e estremeceu, quereria nunca mais ouvi-la em dias de sua vida, principalmente dos lábios de Margarida.
— Ora! ora! que lembrança essa agora!... replicou o moço com um sorriso desapontado e procurando disfarçar a sua perturbação - como é que eu hei de me lembrar mais dessas tolices de criança!
— Tolice! por quê?... pois não é tão bonito ser padre?...
— E é mesmo, e eu na verdade tinha muita vontade de o ser.
— Como é isso, Eugênio?... tinha? então já não tem mais?...
— A falar a verdade, Margarida... - respondeu Eugênio com hesitação - não sei o que te diga... hoje em dia não me acho com muito jeito para padre, não.
— Por quê?...
— Ora por quê?... por quê? pois você não adivinha?
— Nunca fui adivinhadeira...
— Pois está bem claro. Para ser padre é preciso que eu não olhe mais para você, que não te queira mais bem, e que nem me lembre de você... e isso é coisa que eu não posso, é teimar à toa, não posso fazer.
— E o mais é que é verdade, Eugênio; você tem razão. Eu também - para que hei de mentir?... -, eu também, cá comigo, não tinha lá grande vontade que você fosse padre, não; para sempre é uma coisa que mete respeito, e até faz medo. Oh! meu Deus! e como é que eu havia de me acostumar a ter respeito a você?... Para isso era preciso deixar de te querer bem, e isso eu não posso mesmo, e de mais a mais não quero ser mula-sem-cabeça, não... cruz! Deus me defenda!
— Ah! ah! ah! - como é isso, Margarida; mulasem-cabeça?... exclamou o rapaz soltando uma risada.
— Você ri-se?... pois não sabe que toda a mulher que quer bem a um padre, vira mula-sem-cabeça?...
— E você ainda acredita nessas bruxarias?...
— Sim senhor!... minha mãe já viu, e diz que na vila há uma que ela conhece bem. Diz que é um bicho muito feio, do feitio de uma besta, que só tem três pés, dois atrás e um adiante, e não tem cabeça. Todas as noites de sexta-feira para sábado anda rondando os becos, correndo o seu fadário e assombrando a gente. Mamãe tem visto ela muitas vezes batendo a ferragem e abanando as orelhas pelos cemitérios.
— Ah! ah! ah! bravo! essa ainda é melhor! continuou Eugênio sempre a galhofar. - Pois se ela não tem cabeça, como pode ter orelhas?...
— Ora!... eu sei lá?... é que terá as orelhas no pescoço.
— Pois bem, Margarida; não tenha susto; só para que você não seja mula-sem-cabeça, eu te protesto que não hei de ser padre; e não hei de, e não hei de; está decidido!
— Mas seu pai e sua mãe, que querem por força...
— Meu pai e minha mãe, acho que não me hão de querer obrigar, se eu disser que não quero ser padre.
— Mas eles fazem tanto gosto nisso! coitados! hão de ficar tão aborrecidos, se você não quiser se ordenar.
— Paciência! eles se hão de consolar.
— Pois está dito - disse Margarida depois de um breve instante de silêncio e reflexão. - O nosso antigo juramento está desmanchado. Agora em lugar dele havemos de fazer outro...
— Qual é?...
— É que você sempre, sempre me há de querer bem...
— Isso nem precisa jurar...
— Ande lá!... e que acabados os seus estudos nunca mais há de se apartar de mim.
— Juro!... Juro por esta cruz! - disse com emoção o moço cruzando os dedos sobre a boca.
— E eu juro a mesma coisa - repetiu Margarida fazendo o mesmo sinal.
O anjo dos puros e santos amores sorriu-se àquelas juras, e depois de ter bafejado com os leques de suas asas de ouro e seda aquelas duas frontes juvenis e cândidas, remontou seu vôo para o empíreo, enquanto o austero e sombrio gênio da beatice, que procurava disputar-lhe o coração do mancebo, pesaroso, bateu as fuscas asas, e foi-se esconder entre as ruínas de algum mosteiro abandonado.
Naquele momento vinha chegando Umbelina; os dois jovens mudaram de conversa.
Já entre eles havia um segredo.