O Seminarista/V
No seminário o menino Eugênio era um exemplo de boa conduta e aplicação. Cordato, dócil e obediente, depressa granjeou a benevolência e estima dos padres, e a simpatia de seus companheiros. No estudo, porém, não deu a princípio muito boas contas de si, nem apresentou os progressos que eram de esperar de sua boa memória e inteligência.
A imagem de Margarida e a saudade do lar paterno enchiam-lhe de sombra o espírito e o coração para deixarem lugar às fastidiosas lições de gramática latina. O compêndio de Antônio Pereira foi para ele um pesadelo, diante do qual teve de gemer e suar por alguns meses. Lia e relia as páginas da lição a ponto de as esfarelar para conseguir gravar na memória algumas palavras. É que eram seus olhos somente que passeavam por sobre aquelas letras mortas, que nada diziam ao seu espírito.
Aquelas definições e classificações tão frias e áridas, aquelas enfiadas enfadonhas de declinações e conjugações, como um bando de morcegos e corujas, recusavam-se obstinadamente a penetrar no cérebro inflamado do adolescente, onde como em um santuário ardente e luminoso fulgurava incessantemente a imagem de Margarida. Se desde o começo lhe tivessem posto nas mãos o livro dos Testes de Ovídio ou as Éclogas de Virgílio, talvez aquela calma impressionável e apaixonada se tivesse mais depressa congraçado com o latim.
Foi pois com muita lentidão e um insano trabalho, que só a muita perseverança e força de vontade tornara suportável, que Eugênio conseguiu ir gravando na memória os seus rudimentos de latim.
Entretanto, era preciso saber para ser padre, e portanto Eugênio entregava-se ao estudo com um ardor inexcedível, e fazia esforços inauditos para banir do espírito a sedutora visão que o perturbava. Neste empenho a sua tendência ao misticismo e à vida religiosa vieram eficazmente auxiliá-lo, e mesclando-se às suas afeições terrenas contribuíram para extingui-las até certo ponto, tirando-lhes o caráter ardente e inquieto, e confundindo-as com aquele culto respeitoso e sereno, com aquela adoração calma e extática, que o menino consagrava à Virgem Mãe de Deus.
Amor e devoção se confundiam na alma ingênua e cândida do educando, que ainda não compreendia a incompatibilidade que os homens têm pretendido estabelecer entre o amor do criador e o amor de uma das suas mais belas e perfeitas criaturas - a mulher; a mulher, que Deus criou para amar e ser amada, a mulher que sem o amor é como a caçoula de perfumes, a que o ministro do templo esqueceu-se de comunicar o fogo santo, que os faz arder e subir em nuvens recendentes a beijar os pés de Deus.
Assim, o coração naturalmente afetuoso e terno de Eugênio, não podendo dar ampla expansão a seus afetos mundanos, se refugiava no ascetismo da devoção religiosa, e derramava-se com efusão aos pés do altar, sem que esse culto da divindade excluísse dele o terno sentimento que experimentava por Margarida, sentimento de que ele ainda ignorava a natureza, e nem lhe sabia o verdadeiro nome.
Volvendo ao céu o pensamento nas asas da oração, nessas horas de êxtase e de místico recolhimento, por entre os coros de anjos que rodeavam o sólio estrelado da Rainha de todos os santos, ele entrevia o faceiro e mimoso rosto de Margarida, e adorava-a também.
Assim essa afeição pura e casta, a qual se ainda não era o amor, era a sua fecunda e brilhante crisálida, amenizava e como que embalsamava com seu tépido bafejo os atos de devoção e a austeridade da vida claustral, enquanto a devoção, por seu lado, mitigando os ardores e impaciências daquele sentimento, impedia que se tornasse uma paixão imperiosa e fatal.
Tinham os padres em muito apreço e estima as belas qualidades de Eugênio, e principalmente a decidida vocação que revelava para o estado clerical. Ignorando o que se passava no íntimo do seu coração, assentaram de animá-lo naquele santo propósito com exortações e leituras adequadas a esse fim.
Naqueles tempos os dignos e veneráveis sacerdotes da Congregação da Missão de S. Vicente de Paulo, aos quais tantos benefícios deve a província de Minas, não se descuidavam de empregar meios para atrair neófitos ao seio daquela respeitável corporação. Como os jesuítas, porém com mais escrúpulo e menos violência, procuravam dirigir a educação moral e intelectual dos meninos, de modo a inspirar-lhes o gosto pela vida ascética dos claustros e a resolvê-los a tomar a loba e o barrete de congregados.
Não ficaram totalmente sem frutos os seus esforços, e viram-se muitos moços de famílias distintas alistarem-se nas fileiras dos filhos de S. Vicente.
Notando as felizes disposições de Eugênio, os padres não podiam deixar de nutrir a esperança de vê-lo no seu grêmio, e para esse fim empregavam desde já habilmente os meios convenientes.
Passaram-se assim doze anos, em que a vida correu para Eugênio, senão descuidosa e prazenteira como na fazenda paterna, ao menos serena e sem dissabores. Cada vez mais estimado dos padres e benquisto de seus companheiros, à medida que seu coração se ia acalmando, sua inteligência se desobumbrava, e fazendo rápidos progressos compensava largamente o tempo perdido com a dificuldade dos primeiros esforços.
É verdade que a imagem de Margarida nunca lhe saía do coração mas já não o incomodava tanto, nem lhe agitava espírito como outrora.
Ela lhe aparecia como a figura de um anjo, desenhando-se ao longe e sorrindo-lhe tristemente por entre as brumas melancólicas do horizonte pavoroso. A lembrança de Margarida era já em sua alma essa saudade meiga e maviosa, que nos espreme o coração, e dele faz borbotar lágrimas de fel e de sangue.
Passados dois anos, porém, um incidente veio perturbar a uniformidade suave e serena, se bem que um pouco melancólica, da vida de Eugênio. Um dia, a íntima confiança que merecia de seus mestres e diretores, ia-se abalando profundamente.
Eugênio já tinha entrado para a terceira classe de latim, e começando a traduzir o livro dos Tristes de Ovídio e as Éclogas de Virgílio sentiu-se tomado de um vivo gosto pela poesia. Para isso o predispunham sua terna sensibilidade e ardente imaginação. Só esperava a mão que viesse correr aos olhos de sua inteligência inesperta o véu que encobre esses desconhecidos e encantados horizontes, essas paisagens fantásticas e deslumbrantes, tão cheias de magia, de luz e de harmonia em que os espíritos elevados encontram tão grato abrigo contra a insipidez e as asperezas da vida real.
Virgílio, de um lado, e Ovídio, do outro, deram-lhe as mãos e o introduziram no templo da harmonia.
Era mais um precioso achado para aquela imaginação esta viva e brilhante, para aquele coração tão rico de afetos. Mais uma corda virgem acabava de ser vibrada naquela feliz e delicada organização. À devoção e ao amor vinha juntar-se mais um novo encanto na vida do adolescente; mais um eco acordava melodioso no seio dessa alma tão cheia de harmonias íntimas e misteriosas.
Religião, amor, poesia, eis os elementos, que bastavam para encher aquela existência e torná-la a mais feliz do mundo. Eram como três anjos de asas de azul e ouro, que esvoaçavam de contínuo em torno dessa alma infantil e cândida, e a arrebatavam aos céus em gozos inefáveis.
Eugênio, pois, ao ler os primeiros versos de Virgílio, sentiu na fronte o bafejo do anjo da poesia que lhe dava, à alma como um sentido mais, abrindo nela uma nova fonte de suaves e inefáveis emoções. As Éclogas do imortal Mantuano o encantavam. As cenas do amor bucólico o arrebatavam, retraçando-lhe na fantasia em cadentes e melodiosos versos os singelos e aprazíveis painéis da vida campesina, em que tantas vezes ele figurava como ator, e fazendo-lhe lembrar com a mais viva saudade o ditoso tempo em que, junto com Margarida errante pelos vargedos e colinas da fazenda paterna, lidava com o pequeno rebanho de Umbelina. A não ser padre santo - que era até então a sua mais forte aspiração -, a vida que mais lhe sorria à imaginação era a de pastor, contanto que fosse em companhia de Margarida.
Não contente com admirar e sentir as belezas desses grandes poetas, Eugênio, que tinha em si um grande fundo de sentimento e calor poético, ensaiava-se às vezes procurando traduzir em estrofes as emoções de seu coração, e as imagens que lhe pululavam no espírito. E quem senão Margarida, aquela beleza em botão poderia inspirar os cantos daquela musa ainda no berço?...
Mas, um dia, Eugênio esteve a ponto de perder todo o bom conceito e estima, que até então tinha merecido de seus preceptores.
Eugênio se ocupava às vezes em escrever algumas coisas, que não eram os seus temas de latim, e escondia cuidadosamente esses manuscritos, em que cismava longamente. Como os meninos estudavam e dormiam em um vasto salão aberto, esta circunstância não pôde escapar aos olhos escrutadores e perspicazes do regente. Picado de curiosidade, este entendeu que devia saber o que continham aqueles papéis. Portanto, na hora do recreio, incumbindo a outro o cuidado de levar os meninos a passeio, deixou-se ficar no salão, e foi dar busca aos papéis de Eugênio, esperando não encontrar entre eles afora as listas de significados e os temas de latim, senão algum esboço de sermão ou talvez algum ensaio de hinos religiosos, com cuja leitura já de antemão se regalava sua ávida curiosidade.
De fato, encontrou alguns esboços informes nesse gênero, mas qual não foi a sua surpresa, quando entre esses papéis encontrou também uma longa carta escrita no tom mais sentimental e uma porção de versinhos amorosos dirigidos a uma rapariga de nome Margarida!? Que terrível auto de corpo de delito! Que sentença esmagadora, que anátema tremendo pairava então sobre a cabeça de Eugênio, que a essa hora sentado como de costume no paredão da esplanada do quintal, tranqüilo e descuidoso cismava saudades da sua Margarida!...