O Seminarista/XIV

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Eugênio passou uma noite febril entre cruéis insônias e ansiados pesadelos. Mal despontou a primeira alva do dia levantou-se e pôs-se à janela.

O dia levantou-se cheio de serenidade e esplendor. O sol que surgia por detrás das colinas do levante coroadas de arvoredos, brilhando através da ramagem, orlava o horizonte como de uma rede de ouro. Do lado fronteiro, em uma encosta longínqua, os troncos vetustos, que o machado respeitou aqui e acolá no meio de um vasto roçado, verberados pelos primeiros raios do sol pareciam colunas de bronze, que ficaram em pé no meio dos escombros de um templo derruído. Vapores diáfanos coloridos pelos fogos da aurora, erguendo-se da valada e despregando-se das colinas, dispersavam-se nos ares como pétalas de rosa que uma virgem desfolhasse às brisas da manhã. Os arbustos da vargem recamados de flores balanceavam-se brandamente ao sopro das aragens, e sacudindo da copa orvalhada uma chuva de pérolas abandonavam às auroras matinais as primícias de seus perfumes. Bandos de papagaios e periquitos garrulando alegremente atravessavam o espaço azul como nuvens de folhas verdes levadas pelo vento. Em derredor da casa também tudo era vida, prazer e animação. Tudo acordava pulando de alegria e de amor ao primeiro beijo do sol esplêndido do céu americano. Cada árvore era uma orquestra de pios, trinados e gorjeios, onde o sabiá, o gaturamo, o pintassilgo e outros mil passarinhos pareciam disputar entre si a palma da harmonia.

A viração trazia dos pomares aromas inebriantes de flores de laranjeira, de maracujá, de jambo e de jasmim, e do mato os suaves eflúvios que destilam uma multidão de plantas balsâmicas e flores sem nome, que vegetam à sombra de nossos bosques.

Entretanto, nessa hora de magia, de prazer e de esplendores, em que a terra parecia sorrir-se para o céu, que a envolvia em ondas de luz tépida e serena, só Eugênio estava triste, sombrio e abatido, só ele pendia para o chão a fronte esmorecida, como a planta mimosa que a geada crestou, e a quem o calor vivificante do sol, nem o beijo da brisa matinal pode mais reerguer o colo desfalecido.

O olhar do moço enfiava-se imóvel pelo longo do vale, que acompanhando o córrego entre dois espigões ia-se perder no pitoresco vargedo, em que se achava a casa de Umbelina. Um boleado da colina lhe encobria a casa desta, e apenas lhe acordavam n'alma tão suaves recordações, agora amarguradas pelo fel do presente.

Seu olhar estava fito sobre esses topes, sua alma conversava com eles, e lhes murmurava um doloroso adeus.

Largo tempo esteve ali Eugênio na mesma posição, mergulhado nas mais acerbas e pungentes reflexões. A energia dos sentimentos havia despertado com extraordinária precocidade na alma do mancebo, que apenas púbere já sentia fundamente todos os violentos transportes da paixão, todos os seus inefáveis gozos, e raladoras angústias.

Ao sair dali, Eugênio foi direito procurar sua mãe.

— Minha mãe, não poderei ao menos hoje ir à casa da tia Umbelina despedir-me dela e de Margarida? Sabe Deus se não será a última vez que tenho de vê-las!...

— Não fales assim, meu filho; Deus há de permitir que as veja ainda por muitos e muitos anos

— Não sei, minha mãe, mas...

— Mas o que queres lá fazer? temos muito que arrumar para a tua viagem, que é amanhã sem falta. Eu te desculparei para com elas...

— Oh! minha mãe! temos muito tempo para isso. Eu não me demorarei mais de uma hora, meia hora mesmo, se Vm. quiser. Tenho de me ir embora por seis ou sete anos, ou mais... talvez para sempre, e me ficará um grande prazer se lhes puder dizer adeus.

— Queres que te diga a verdade, meu filho?... desde o outro dia fiquei muito mal satisfeita com aquela gente, e a minha vontade é que nunca mais lá ponhas os pés. Se souberes o susto que raspei, quando soube que lá andaste metido em folias e batuques no meio de gente malvada!...

— Mas, minha mãe, a culpa foi minha.

— Bem sei, bem sei, mas se aquela comadre de uma figa tivesse mais juízo na cachola, e menos malícia no coração, não consentiria que parasses lá um só instante...

— Eu enganei-a, minha mãe, e ela acreditou que meu pai me tinha dado licença...

— Não creias tal; tão tola não é ela. Bem viu que foste fugido; acreditou-te porque lhe fez conta. É ela mesma que te anda seduzindo e te pondo a perder, ela e a minha boa afilhada que também - Deus me perdoe! - está ficando uma fresca jóia.

Eugênio compreendeu que era tempo perdido instar mais com sua mãe. Resignou-se e conformou-se com sua sorte. Para despedir-se de Margarida restava-lhe ainda uma última esperança; essa abrigava-se debaixo do manto propício da noite, pela qual esperou com ansiedade.

Um luar escasso e melancólico esbatia-se frouxamente pelas campinas adormecidas no mais profundo silêncio. Sua luz baça mal disfarçava a escuridão da noite no pequeno vale, em que se achava situada a casa de Umbelina, a qual apenas se distinguia na sombra, escondida embaixo da frondosa copa da figueira como o filhote da ema abrigado à sombra das asas maternas. Como dois gigantes negros abraçando-se no ar, as duas altas paineiras alçavam-se projetando pelo vargedo as sombras colossais. Indolente aragem mal bulia nos ramos dos arvoredos, e somente os pios intercedentes do curiango resvalando pelo chão no vôo rasteiro quebravam o silêncio daquela solidão.

De entre as sombras das paineiras surgiu um vulto esguio e lesto à semelhança de um silfo aéreo que, parecendo nem tocar a terra com os pés, atravessou rapidamente o vargedo, penetrou no terreiro, e sumindo-se por baixo da grande figueira foi colocar-se bem junto à janelinha de balaústres.

A favor daquela mudez profunda quem de ouvido afiado estivesse encostado à cerca do terreiro, ouviria um ciciar de vozes abafadas segredando ternuras e entreveladas de beijos, suspiros e soluços a confundirem-se com o frêmito da folhagem, que de quando em quando estremecia a uma frouxa lufada de viração espreguiçando-se nos ramos da figueira.

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— Adeus, Margarida!... adeus!

— Pois já?... um momento! um instantezinho ainda.

— Pois sim... mas se meu pai der por minha falta... não deve tardar a amanhecer... mais um beijo, Margarida!...

— Toma... tu hás de me querer bem sempre, não é assim, Eugênio?

— Sempre! eu te juro, torno a jurar; padre, nunca hei de ser. Adeus!...

— Adeus, Eugênio...

— Ah, não chores assim, que me cortas o coração. Enxuga essas lágrimas, para que eu possa ter ânimo de ir-me embora.

— Deixa-me chorar, Eugênio. Que hei de eu fazer?... hei de orar sempre até que voltes.

— E hei de voltar, Margarida; tanto hei de pedir, instar, rogar a minha mãe, que ela há de mandar buscar-me, e um dia, Margarida, um dia hei de ser homem, e havemos de viver juntos, e não haverá poder na terra que nos possa separar.

— Mas... meu Deus! até lá eu morro de saudades.

— Não, Margarida; hei de fazer tudo para sair do seminário, e voltar o mais breve possível... ah! não chores mais assim... já não te pedi?...

— Pois bem... olha, já não estou mais chorando... mas... não fiques lá muito tempo, não; ouviste?... volta, volta depressa, Eugênio.

— Fica sossegada, meu amor, eu hei de voltar. Adeus... um último beijo ainda...

Este diálogo era suspirado com voz trêmula e abafada entre lágrimas, e ninguém poderia adivinhar que fundas tristezas, que ansiosas e cruéis inquietações se exalavam naqueles tímidos e sentidos arrulhos, que mais pareciam vagos murmúrios da solidão perdendo-se nas asas da brisa, confundidos com o ramalhar da folhagem e o burburinho da fonte vizinha.

Um momento depois, o mesmo vulto, que vimos atravessar o vale rápido e leve como um silfo noturno, lá se ia vagaroso e como que se arrastando a custo a se esgueirar pelas sombras do vargedo. De quando em quando parava, voltava-se para trás, apertava as mãos convulsivamente contra o peito; um estremeção como de um soluço agitava o corpo, e com a voz que mais era um gemido murmurava Margarida!

Dir-se-ia alma penada ou duende da noite, que com a aproximação do dia se recolhia ululando aos fúnebres lugares donde havia saído.