O Seminarista/XXII
No quarto da enferma, apesar da sua pobre simplicidade, reinava uma ordem e asseio, que contrastava com o aspecto miserável do resto da casa. O leito bem composto era guarnecido de um transparente cortinado cor-de-rosa, e em frente dele sobre uma pequena mesa de jacarandá de pés torneados, via-se um lindo oratório dourado, diante do qual ardia uma vela de cera entre duas jarras cheias de viçosas e fragrantes flores. Parecia mais uma gruta mística e perfumada, um voluptuoso ninho de amor, do que o quarto de uma moribunda.
Margarida estava sobre a cama, meio deitada, meio assentada, com as costas apoiadas na cabeceira, os braços cruzados e a cabeça pendida sobre o peito.
À primeira vista não parecia uma pessoa que estava precisada dos últimos socorros da religião. O rosto nada tinha de desfigurado, e estava fresco e corado, e a moça parecia estar no gozo da melhor saúde, e de todas suas forças. Examinando-a porém mais atentamente, notava-se o arquejo ansiado e violento de seu peito, o coração pulsar-lhe forte e descompassado de modo assustador, e na luz dos olhos um não sei quê de sombrio e desvairado. Via-se que aquelas duas rosas excessivamente vivas, que lhe tingiam as faces, não podiam denotar um estado normal, e eram resultado de profunda perturbação na circulação arterial.
A velha apenas introduziu o padre, retirou-se com a sua candeia.
Mal deu com os olhos na moça, o padre estacou de repente, fez um gesto de espanto, e olhando inquieto ora para a porta, ora para o leito, dava mostras de querer sair precipitadamente. Seu rosto cobriu-se de medonha palidez, e suas feições se transtornaram de modo horrível.
Seu primeiro impulso foi de fugir depressa e sem dizer palavra; mas hesitou; não podia negar os auxílios de seu sagrado ministério, a quem os implorava em artigo de morte. Foi-lhe mister um esforço sobre-humano para dominar a sua perturbação.
Desde o primeiro momento, Eugênio e Margarida se haviam reconhecido, e por alguns instantes se olharam mudos e atônitos sem ousarem proferir palavra.
Margarida estava deslumbrante de formosura. As madeixas opulentas de seus compridos cabelos, rolando-lhe em torno dos ombros em um denso e escuro nevoeiro, davam o mais esplêndido realce ao busto encantador; os grandes olhos negros, cheios de uma luz sombria e melancólica, fixos sobre o padre, eram como brandões ardentes e sinistros, que lhe queimavam a alma.
O padre esforçou-se em compor a fisionomia, procurando dar-lhe uma expressão calma e severa. Assentou-se gravemente à beira do leito, e cruzando as mãos sobre o peito:
— Não é a Sra. Margarida, que estou vendo, e com quem estou falando? perguntou com voz surda.
— Bendito seja Deus! exclamou a moça com vivacidade, e levantando as mãos ao céu. - Há quanto tempo não ouço esta voz!... É ela mesmo; é Margarida, senhor padre!...
— E quer se confessar?...
— Sim! sim!... que boa sina o trouxe aqui!... graças a Deus... morro consolada... Eugênio!...
Falando assim Margarida delirante de prazer estendia os braços para o padre.
— Senhora! - retorquiu o padre levantando-se em sobressalto, e dando à voz uma inflexão severa - lembre-se que sou um padre, que venho confessá-la... mas... que é isto?... - continuou olhando atentamente para Margarida - vejo-a tão sadia e corada!... por Deus, que não se acha em estado de pedir confissão!... é um laço diabólico, que me estão armando! A senhora não precisa de meu ministério; eu me retiro. Adeus, senhora!
— Senhor padre, eu não sabia que o senhor estava na terra. Foram chamar o vigário... veio o senhor; foi Deus que o mandou. Por piedade, não se vá; não me deixe morrer sem confissão... eu me acho muito mal...
— Muito mal! não parece... o que está sofrendo então?
— Sofro muito, muito!... parece que a cada momento se me rebenta o coração - mas agora... como o senhor veio, sinto-me feliz; já não morro tão sozinha... tão desamparada.
— Desamparada!... pois onde está seu marido?
— Meu marido!... exclamou a moça atônita. - Tenho eu algum marido?...
— Pois a senhora não casou-se!?
— Eu? quem lhe disse isso?...
— Disseram-me; então não é verdade?...
— Não; nunca!... quiseram casar-me, isso sim; mas eu nunca quis... Meu Deus! por que haviam de enganá-lo assim?...
— Ah! meu pai! meu pai! - murmurou consigo o padre - agora compreendo tudo... para que semelhante mentira?... Pobre Margarida! - continuou dirigindo-se à moça - como zombaram cruelmente de ti, e de mim!...
— Isso pouco importa; estou agora bem satisfeita. O que me afligia era pensar que ia morrer sem nunca mais torná-lo a ver.
— Mas, Margarida, eu sou agora um sacerdote...
— Que tem isso? assim mesmo quero-lhe bem... que mal lhe pode fazer o amor de uma moribunda? é padre?... fez muito bem; quem sou eu, pobre desgraçada, para o impedir de seguir uma carreira tão bonita... veja... eu estou bem contente, e dou louvores a Deus...
— Ah! Margarida, não me fales assim.
— Por que não, senhor padre? sinto-me tão feliz! lembra-se, quando nós éramos pequeninos?... não me jurou que a primeira pessoa, que havia de confessar, seria eu? veja como Deus nos ouviu...
— Que cruel recordação, senhora! que fatalidade! sim, esse primeiro juramento Deus o guardou escrito no livro do destino, e agora recebe o seu tremendo complemento!
— Era a vontade de Deus, devia cumprir-se...
— Mas em que transe, justo céu!... também eu havia jurado depois que nunca me havia de ordenar... fui perjuro... ordenei-me, perjurei-me de novo... ai... Deus!... tudo isto é o justo castigo de meus repetidos perjúrios.
— Perjúrio não, senhor padre, aquilo foi um juramento louco, que Deus não aceitou. Esta mão foi feita para o altar e não para mim, pobre desvalida; está muito bem empregada no serviço de Deus... deixa-me beijá-la.
Falando assim a moça tomava a destra de Eugênio, e a beijava inundando-a de lágrimas.
— Não chores assim, Margarida! disse com acento comovido e tornando a assentar-se à beira do leito. Dizes que estás feliz e satisfeita, e me despedaças o coração com tuas lágrimas!
— Deixa-me chorar, Eugênio! - disse a moça abandonando-se insensivelmente à doce familiaridade de tempos mais felizes. - Deixa-me chorar, não fazes idéia de quanto estas lágrimas me fazem bem. Desde que te foste embora, nunca pude chorar assim... isto me alivia tanto...!
Eugênio também deixando-se arrebatar pelo perfume das suaves recordações, que se lhe evaporavam do coração, esqueceu um momento que era padre, chegou-se mais para junto de Margarida, retirou a mão que ela apertava com ternura entre as suas, colocou-a sobre o ombro dela, e encarando-a com doçura:
— Margarida, não chores!... disse, e encostando instintivamente seu rosto ao dela, os lábios de ambos roçaram de leve.
O padre estremeceu e recuou assustado, como se houvesse tocado em uma áspide venenosa. Por alguns instantes ficaram ambos silenciosos.
— Ah! meu Deus! prosseguiu o padre, - eu vinha confessá-la, e sou eu o penitente, que de joelhos a seus pés devo suplicar-lhe perdão...
— Perdão de quê, Eugênio?...
— Ainda me perguntas, Margarida? pois não te faltei à palavra jurada?... não sou a causa de tua perdição? não matei-te?
— Não, não és tu, que me matas... eu é que era uma ímpia, uma libertina, querendo roubar-te ao altar, querendo valer mais que Deus. Mas sossega... creio que não morro ainda... depois que te vi, sinto-me tão melhor...,
Margarida falava assim tanto para não consternar o padre, como porque realmente a alegria de vê-lo a fazia esquecer os seus sofrimentos.
— Acha-se melhor?... - retorquiu o padre - ainda bem!... não precisa mais dos socorros do meu ministério, nem sou eu o padre mais próprio para ouvi-la de confissão. Adeus, senhora!... não devo voltar mais a sua casa...
— Ah! por piedade!... não deixes de voltar, volta, meu padre, volta, se não queres que eu morra impenitente e desesperada... que perigo há em ouvir de confissão uma pobre moribunda?
— Mas achas-te melhor, Margarida; poderás esperar o vigário.
— Não quero me confessar com nenhum outro... já agora hei de cumprir o juramento, que fiz quando menina... se o não cumprir, creio que a minha alma não se salvará... acho-me muito mal... esta melhora é passageira, a cada momento posso expirar. Mas eu me esforçarei em reter o alento da vida, se me prometes voltar amanhã...
O padre ficou por um momento pensativo.
— Pois bem, Margarida, voltarei - disse, afinal, e com um movimento rápido e brusco, alongando a mão que tinha pousado sobre o ombro da moça, a estreitou no coração.
— Até amanhã - murmurou com voz breve o padre, e tomando o chapéu retirou-se precipitadamente, hirto e convulso, como se acabasse de ter uma pavorosa visão.
— Até amanhã! - suspirou Margarida, como um eco mavioso, que a voz de Eugênio acabava de acordar no seio de uma gruta misteriosa.