O Teatro de Gonçalves de Magalhães

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O NOME do Sr. Dr. Magalhães, autor de Antônio José, está ligado à história do teatro brasileiro; aos seus esforços deve-se a reforma da cena tocante à arte de declamação, e as suas tragédias foram realmente o primeiro passo firme da arte nacional. Foi na intenção de encaminhar o gosto público, que o Sr. Dr. Magalhães tentou aquela dupla reforma, e se mais tarde voltou à antiga situação, nem por isso se devem esquecer os intuitos do poeta e os resultados da sua benéfica influência.

Entretanto, o Sr. Dr. Magalhães só escreveu duas tragédias, traduziu outras, e algum tempo depois, encaminhado para funções diversas, deixou o teatro, onde lhe não faltaram aplausos. Teria ele reconhecido que não havia no seu talento as aptidões próprias para a arte dramática? Se tal foi o motivo que o levou a descalçar o coturno de Melpôneme, crítica sincera e amiga não pode deixar de aplaudi-lo e estimá-lo. Poeta de elevado talento, mas puramente lírico, essencial-mente elegíaco, buscando casar o fervor poético à contemplação filosófica, o autor de Olgiato não é um talento dramático na acepção restrita da expressão.

Quando a sua musa avista de longe a cidade eterna, ou pisa o gelo dos Alpes, ou atravessa o campo de Waterloo, vê-se que tudo isso é domínio dela, e a linguagem em que exprime os seus sentimentos é uma linguagem própria. O tom da elegia é natural e profundo nas poucas páginas dos Mistérios, livro afinado pela lamentação de Jó e pela melancolia de Young. Mas a poesia dramática não tem esses caracteres, nem essa linguagem; e o gênio poético do Sr. Dr. Magalhães, levado, por natureza e por estudo, à meditação expressão dos sentimentos pessoais, não pode afrontar tranqüilamente as luzes da rampa.

Isto posto, simplifica-se a tarefa de quem examina as suas obras. O que se deve procurar então nas tragédias do Sr. Dr. Magalhães não é o resultado de uma vocação, mas simplesmente o resultado de um esforço intelectual, empregado no trabalho de uma forma que não é a sua. Mesmo assim, não é possível esquecer que o Sr. Dr. Magalhães é o fundador do teatro brasileiro, e nisto parece-nos que se pode resumir o seu maior elogio.

Quando o Sr. Dr. Magalhães escreveu as suas duas tragédias, estava ainda em muita excitação a querela das escolas; o ruído da luta no continente europeu vinha ecoar no continente americano; alistavam-se aqui românticos e clássicos; e todavia o autor de Antônio José não se filiou nem na igreja de Racine, nem na igreja de Vítor Hugo

O poeta faz essa confissão nos prefácios que acompanham as suas duas peças, acrescentando que, não vendo verdade absoluta em nenhum dos sistemas, fazia as devidas concessões a ambos. Mas, apesar dessa confissão, vê-se que o poeta queria principalmente protestar contra o caminho que levava a poesia dramática, graças as exagerações da escola romântica, procurando infundir no espírito público melhor sentimento de arte. Poderia consegui-lo, se acaso exercesse uma ação mais eficaz mediante um trabalho mais ativo, e uma produção mais fecunda; o seu exemplo despertaria outros, e os talentos nacionais fariam uma cruzada civilizadora. Infelizmente não aconteceu assim. Apareceram, é verdade, depois das obras do poeta, outras obras dignas de atenção e cheias de talento; mas desses esforços isolados e intermitentes nenhuma eficácia podia resultar.

O assunto de Antônio José é tirado da história brasileira. Todos conhecem hoje o infeliz poeta que morreu numa das hecatombes inquisitoriais, por cuja renovação ainda suspiram as almas beatas. Pouco se conhece da vida de Antônio José, e ainda menos se conhecia, antes da tragédia do Sr. Dr. Magalhães. Mas do silêncio da história, diz o autor, aproveita-se com vantagem a poesia. O autor criou, pois, um enredo: pediu duas personagens à história, Antônio José e o Conde de Ericeira, e tirou três de sua imaginação, Mariana, Frei Gil e Lúcia. Com estes elementos escreveu a sua peça. Mesmo atendendo ao propósito do autor em não ser nem completamente clássico, nem completamente romântico, não se pode reconhecer no Antônio José o caráter de uma tragédia. Seria impróprio exigir a exclusão do elemento familiar na forma trágica ou a eterna repetição dos heróis romanos. Essa não é a nossa intenção; mas buscando realizar a tragédia burguesa, O Sr. Dr. Magalhães, segundo nos parece, não deu bastante atenção ao elemento puramente trágico, que devia dominar a ação, e que realmente não existe senão no 5º ato.

A ação, geralmente familiar, às vezes cômica, não diremos nas situações, mas no estilo, raras vezes desperta a comoção ou interessa a alma. O 5º ato a esse respeito não sofre censura; tem apenas duas cenas, mas cheias de interesse, e verdadeiramente dramáticas; o monólogo de Antônio José inspira grande piedade; as interrogações do judeu, condenado por uma instituição clerical a um bárbaro suplício. são cheias de filosofia e de pungente verdade; a-cena entre Antônio José e Frei Gil é bem desenvolvida e bem terminada. A última fala do Poeta é alta, é sentida. é eloqüente.

Ora, estes méritos que reconhecemos no 5º ato, não existem em tamanha soma no resto da tragédia. A própria versificação e o próprio estilo são diferentes entre os primeiros atos e o último. Há sem dúvida duas situações dramáticas, uma no 3º outra no 4º, mas não são de natureza a compensar a frieza e ausência de paixão do resto da peça.

Aproveitando-se do silêncio da história, o Sr. Dr. Magalhães imaginou uma fábula interessante, que, se fosse mais aprofundada, poderia dar magníficos efeitos. O amor de um frade por Mariana, a luta resultante dessa situação, a denúncia, a prisão e o suplício — eis um quadro vasto e fecundo. É verdade que o autor lutava, pelo que toca a Frei Gil. com a figura do imortal Tartufo; mas, sem pretender entrar em um confronto impossível, a execução do pensamento dramático, o poeta podia assumir maior interesse, e, em alguns pontos, maior gravidade. Não estranhará esta última expressão quem tiver presente à memória o expediente usado pelo poeta para que Frei Gil venha a saber do refúgio de Antônio José, e bem assim as reflexões de Lúcia, descendente em linha reta de Martine e Toinette.

Não é nossa intenção entrar em análise minuciosa; apenas exprimimos as nossas dúvidas e impressões. Será fácil cotejar este rápido juízo com a obra do poeta. Olgiato confirma as nossas impressões gerais acerca da tragédia do Sr. Dr. Magalhães; têm ambas os mesmos defeitos e as mesmas belezas; Olgiato é sem dúvida mais dramático: há cenas patéticas, situações interessantes e vivas; mas estas qualidades, que sobressaem sobretudo por comparação, não destroem a nossa apreciação acerca do talento poético do Sr. Magalhães. Quando o autor põe na boca dos seus personagens conceitos filosóficos e reflexões morais, entra no seu gênero, e produz efeitos excelentes; mas desde que estabelece a luta dramática e faz a pintura dos caracteres, sente-se que lhe falta a imaginação própria e especial da cena.

O assunto de Olgiato foi bem escolhido, por suas condições dramáticas; nesse ponto a história oferecia elementos próprios ao poeta. Excluiu ele da tragédia o tirano Galeazzo, e explica o seu procedimento no prefácio que acompanha a obra: a razão de excluí-lo procede de ser Galeazzo um dos frios monstros da humanidade, diz o autor, e, além disso, por não ser necessário à ação da peça.

Destas duas razões, a segunda é legítima; mas a primeira não nos parece aceitável. O autor tinha o direito de transportar para a cena o Galeazzo da história, sem ofensa dos olhos do espectador, uma vez que conservasse a verdade íntima do caráter. A poesia não tem o dever de copiar integralmente a história sem cair no papel secundário e passivo do cronista.

Prevendo esta objeção, o Sr. Dr. Magalhães diz que não podia alterar a realidade histórica, porque fazia uma tragédia, — e não um drama. Não compreendemos esta distinção, e se ela exprime o que nos quer parecer, estamos em pleno desacordo com O PoetaPor que motivo haverá duas leis especiais para fazer servir a história à forma dramática e à forma trágica? A tragédia, a comédia e o drama são três formas distintas, de índole diversa; mas quando o poeta, seja trágico, dramático ou cômico, vai estudar no passado os modelos históricos, uma única lei deve guiá-lo a mesma lei que o deve guiar no estudo da natureza e essa lei impõe-lhe o dever de alterar, segundo os preceitos da boa arte, a realidade da natureza e da história. Quando, há tempos apreciamos nesta folha a ultima produção do Sr. Mendes Leal, tivemos ocasião de desenvolver este pensamento, aliás corrente e conhecido; aplaudimos na obra do poeta português a aplicação perfeita deste dever indispensável, sem o qual, como escreve o escritor citado pelo Sr. Dr. Magalhães, Vítor Cousin, desce-se da classe dos artistas.

Mas isto nos levaria longe, o espaço de que dispomos hoje é em extremo acanhado. As duas tragédias do Sr. Dr. Magalhães merecem, apesar das imperfeições que nos parece haver nelas, uma apreciação mais detida e aprofundada. Em todo o caso, o nosso pensamento aí fica expresso e claro, embora em resumo. Reconhecendo os serviços do poeta em relação à arte dramática, o bom exemplo que deu, a consciência com que procurou haver-se no desempenho de uma missão toda voluntária, nem por isso lhe ocultaremos que, aos nossos olhos, as suas tendências não são dramáticas; isto posto, crescem de vulto as belezas das suas peças, do mesmo modo que lhe diminuem a imperfeições.

Abandonando o coturno de Melpômene o poeta consultou o interesse da sua glória. Que ele nos cante de novo os desesperos, as aspirações, os sentimentos da alma, na forma essencialmente sua, com a língua que lhe é própria. O escritor, ainda novel e inexperiente, que assina estas linhas balbuciou a poesia, repetindo as páginas dos Suspiros e Saudades e as estrofes melancólicas dos Mistérios; para ele, o Sr. Dr. Magalhães não vale menos, sem Antônio José e Olgiato.