O Tronco do Ipê/II/X
Adélia ficara só, abrigada à sombra do caramanchão de madressilvas, ouvindo borbulhar a fonte.
Recostada no gradil, com a cabeça descansando na mão, tomara uma posição sentimental e lânguida, que realçava a elegância de seu talhe; de vez em quando um suspiro, exalado com a mais pura expressão romântica, estufava a harmoniosa ondulação do seio coberto por fina renda.
Instantes depois ouviu crepitar uns passos nas folhas da alameda; e pressentiu que Lúcio estava perto dela, sem contudo dar o menor sinal de aperceber-se de sua aproximação. Com efeito, o moço parara a dois passos, e hesitava:
— D. Adélia!
— Ah! Senhor Lúcio! exclamou a menina fingindo espanto com uma perfeição admirável. Não sei onde foi Alice.
Dizendo isto, a moça deu alguns passos para afastar-se.
— Desejava dizer-lhe uma cousa! suplicou o mancebo animando-se.
— A mim?
— Não sabe quanto tenho sofrido desde ontem! Estão arranjando seu casamento com o Frederico...
— E o seu com Alice!
— Mas eu sou constante.
— E os outros não?
— Pelo menos não parecem.
— Muito obrigada! É isso o que me queria dizer?
— Não se zangue, D. Adélia. Veja se eu tenho razão ou não. Ainda ontem à noite lhe ofereci o braço na ocasião da ceia, e a senhora preferiu o de Mário.
— O de Mário, não; o de Alice, que estava com ele. Queria que aceitasse antes o de Frederico para obedecer à mamãe?
— Mas na ceia ele sentou-se perto da senhora.
— Por quê? O senhor ficou todo arrufado e não se apressou em tomar o lugar. E sou eu a inconstante!...
— Perdão, D. Adélia! murmurou Lúcio.
A moça voltou o rosto para esconder uma lágrima que desfiava pela face; mas a tempo de permitir que o namorado a visse brilhar.
Lúcio ajoelhou; e balbuciando palavras sôfregas apertava aos lábios a mãozinha covinhada que Adélia esquecera entre as pregas do vestido.
Entretanto Alice, que se aproximara descuidosamente do caramanchão, sem lembrar-se de Adélia, descobriu o grupo dos dois moços e parou corando. Nesse momento Mário passava; a menina chamou-o com um aceno.
Mário chegou justamente na ocasião em que Lúcio cingindo o talhe esbelto de Adélia, pousava-lhe na face um beijo tímido.
Alice e seu companheiro trocaram um sorriso, e enrubesceram ambos. Mário movido por uma intuição admirável do que se passava n'alma daquela menina casta e inocente, segurou o louro anel de cabelos que se enroscava pela espádua de sua companheira, e roçou nos lábios as pontas da fina meada de seda e ouro.
Havia sem dúvida naquele gesto uma expressão de pureza e respeito; porque longe de perturbar Alice, ao contrário derramou em seu ânimo uma serenidade angélica.
Os dois companheiros se afastaram discretamente do caramanchão. Momentos depois a voz de Alice chamou Adélia; e ambas chegaram a casa justamente quando tocava a sineta para a merenda.
O vigário, vendo-as chegar, teve ímpetos de excomungar o seu acólito pelo pecado da gula, pois foram as cascas de noz a causa de fugir-lhe a inspiração e perder-se o consoante. Mas o nosso poeta metera-se em brios, e estava resolvido a não descansar enquanto não desse conta da mão.
Não merendou; jantou parcamente para não embotar a memória; e lá por volta de AveMaria conseguiu afinal arranjar alguma cousa apresentável, que ele decorou em tom declamatório, preparado para fazer o improviso em regra quando as moças entrassem na sala do baile.
Já a claridade das luzes inundava as salas apinhadas de convidados, e o vigário afinava a garganta, quando as duas amigas apareceram deslumbrantes de formosura e mocidade. Mas... Que decepção para o nosso vate! O vestido de Alice era azul celeste; o de Adélia cor de ouro.
Como encaixar o madrigal do cravo e do alecrim?
Nesse momento, nem de propósito, o nome do Sr. Domingos Paisi soava nos quatro cantos da sala. Aqui reclamava-se o compadre para dançar com uma gorducha donzelona; lá para servir de vis-à-vis; além para parceiro do solo; e do outro lado para tirar dúvidas acerca de um fato sucedido na vila.
O vigário meteu-se num canto; e desde esta noite começou a ruminar a ideia de bandear-se para a oposição, a fim de derrocar a influência do barão, protetor do Domingos Pais.
Entretanto ao som da banda de música da fazenda e dos risos folgazões, os pares pulavam na sala entremeando o ril e o miudinho às monótonas quadrilhas francesas. Duas pessoas sobretudo apreciavam essa variedade das danças: era Adélia e Lúcio a quem as mães haviam proibido dançar juntos mais de uma quadrilha.
Às dez horas da noite suspendeu-se a dança, enquanto o barão e a família acompanhados pela conviva iam dar cumprimento a uma usança, estabelecida desde tempos remotos na Fazenda do Boqueirão, e adotada em outras com alguma diferença.
Na noite do Natal os pretos da roça tinham licença para fazer também seu folguedo, e os senhores estavam no costume de por esta ocasião honrar os escravos, assistindo à abertura da festa que principiava pelo infalível batuque.
No meio de archotes e precedido pela banda de música, seguiu o rancho para a senzala, onde repercutia o som do jongo e os adufos do pandeiro. O barão ia adiante com a baronesa, e conversava com a filha, que às vezes enfiava-lhe o braço direito, dando o esquerdo a Mário.
Aproveitando-se da confusão, o conselheiro se deixara ficar atrás com D. Alina que lhe disse algumas palavras entrecortadas de reticências, e banalidades trazidas pelo receio de que a escutassem.
— Já reparou na Alice?... É preciso que o barão ponha cobro a isso; ele faz todas as vontades à filha; e quando menos pensar, está a menina casada com o Mário.
— Acredita nisso, D. Alina?
— Pelo jeito que vão tomando as cousas...
— Não tenha receio.
— Em todo o caso a gente não se deve descuidar.
— O senhor é meu advogado...
— Sem dúvida!
— Que prazer não teria eu se no mesmo dia se fizessem aqui dois casamentos, o de meu Lúcio com a Alice, e o de sua Adélia com o Frederico! Mas se por infelicidade um desmanchar-se...
— Entendo, D. Alina! disse o conselheiro com um sorriso.
Tinham chegado ao quadrado cuja frente iluminada esclarecia o terreiro. A um lado por baixo de um toldo vermelho estavam arrumadas as cadeiras trazidas da Casa Grande para dar assento ao barão e seus convidados.
O geral dos escravos trajava suas roupas de festa; havia porém uma porção deles adornados com trajos de fantasia, uns à moda oriental e outros conforme os antigos usos europeus; mas tudo isso de uma maneira extravagante, misturando roupas de classes e até de povos diferentes. Assim não era raro ver-se um cavaleiro português de turbante, e um mouro com chapéu de três bicos.
Depois da algazarra formidável com que foi saudada a chegada do senhor, começou o samba, mas sem o entusiasmo e frenesi que distingue essa dança africana, e lhe dá uma semelhança do mal de São Guido; tal é a velocidade do remexido, e redobre das contrações e trejeitos, que executam os pretos ao som do jongo.
A presença dos brancos impunha certo recato, do qual se pretendiam desforrar apenas se retirasse o senhor, e se desarrolhasse o garrafão escondido debaixo do balcão de ramos.
O conselheiro, que não perdia ocasião de angariar as simpatias dos fazendeiros de quem dependia a sua reeleição, fez um discurso a respeito do tráfico.
— Eu queria, disse ele concluindo, que os filantropos ingleses assistissem a este espetáculo, para terem o desmentido formal de suas declamações, e verem que o proletário de Londres não tem os cômodos e gozos do nosso escravo.
— É exato, disse Mário. A miséria das classes pobres na Europa é tal, que em comparação com elas o escravo do Brasil deve considerar-se abastado. Mas isso não justifica o tráfico, o repulsivo mercado da carne humana.
— Utopias sentimentais!...
— Perdão; eu compreendo que nos primeiros tempos da colonização o tráfico fosse uma necessidade indeclinável. A sociedade humana não é uma república de Platão, mas um ente movido pelos instintos e paixões dos homens de que se compõe. Eram precisos braços para explorar a riqueza da colônia; o europeu não resistia; o índio não sujeitara-se; compraram o negro; mais tarde o tráfico tornou-se um luxo, e produziu um mal incalculável porque radicou no país a instituição da escravatura.
O conselheiro ouviu desdenhosamente ao mancebo; e longe de mostrar-se benévolo pelo jovem talento, ralava-se, vendo outrem disputar-lhe a atenção, que até então lhe pertencia exclusivamente. Pensando no que lhe dissera D. Alina há poucos instantes, o nosso publicista considerou grave a situação.
“É muito capaz de apresentar-se candidato na próxima eleição!” murmurou consigo o Sr. Lopes.
Entretanto o barão retirava-se com os convidados no meio dos aplausos e saudações dos escravos que formando alas os acompanhavam até à Casa Grande. Na passagem, as pretas mais idosas que tinham visto nascer Alice, e por isso usavam com a menina de certa familiaridade, dirigiam-lhe estas palavras:
— Agora sim, nhanhã está contente!
— É mesmo; nhô Mário já chegou!
— Festa grande não tarda!
— Batuque de três dias!
— Benza-os Deus!... Feitinhos um para o outro!
— É um anjo com um serafim!
Alice enrubescendo sorriu-se para Mário; mas vendo a expressão de contrariedade que ressumbrava em sua fisionomia, reprimiu os gracejos indiscretos levando o dedo à boca:
— Nem mais palavra, senão fico zangada!
O barão que atendera ao incidente voltou-se a meia voz para dizer à filha:
— Por que, Alice? porque eles desejam que sejas feliz?
Duas pessoas empalideceram ouvindo estas palavras: Mário e D. Alina. Quanto a Alice, comovida e trêmula, estreitou-se ao flanco do pai e lhe murmurou baixinho:
— Que é isto agora, papai?