O Tronco do Ipê/II/XX

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Pôs-se a lua, deixando o ermo na densa escuridão de uma noite vaporenta.

A labareda, alimentada pelos papéis que Mário lançara no brasido, estirava-se pela porta da cabana fora, como a língua na fauce de uma serpente de fogo, e ia lamber com o vermelho reflexo, lá embaixo, a várzea derramada ao sopé do rochedo.

De cima, ao rápido lampejo, descobria Benedito, à sombra do tronco do ipê o vulto de Mário, com os braços cruzados e a cabeça derrubada ao peito, diante da sepultura do pai. Embora não pudesse compreender com o espírito o que pensava o mancebo, o negro velho tinha uma vaga intuição.

Terrível luta se dava então n'alma de Mário.

Justamente naquela hora da revelação; quando ouvira pela primeira vez a história da catástrofe que lhe arrebatara seu pai; quando as suspeitas que desde a infância haviam torturado seu espírito, de chofre se transformavam em certeza para sopitar os escrúpulos da consciência; quando todo seu pensamento devia concentrar-se na memória querida; pois justamente nessa hora uma voz solicitava seu coração para a compaixão e o esquecimento.

A súplica final da carta do barão tinha vergado a inflexível rijeza desse caráter. Sua alma nobre, que sufocara um tamanho amor para ter o direito de responder com desprezo à proteção generosa do rico benfeitor, sentiu-se fraca ante a humildade do réu que lhe entregava as provas de seu crime, e submetia-se resignado à punição.

Elevando-se ao nível dessa abnegação, o mancebo consumira, lançando-as ao fogo, as provas do crime. Repelia a vingança, e absolvia o crime, não só da pena corporal, como dessa outra pena mais cruel, a infâmia.

Mas entre o perdão e a reabilitação do infeliz havia uma barreira. Abandonar ao remorso o culpado, esquecer o mal que lhe fizera, não custava a um caráter magnânimo como o seu. O difícil, para não dizer impossível, era suspender o infeliz do abismo onde caíra, colocá-lo a seu lado, em contacto com sua alma, no seio de suas afeições.

Ante essa perspectiva, a consciência do mancebo recuava horrorizada, como se a afrontasse a máscara cínica da corrupção. Para as suscetibilidades de seu caráter, o casamento com Alice era uma consagração da cobardia ou do crime de que fora vítima seu pai.

Cada vez pois mais perseverava em sua primeira resolução de abandonar para sempre aquele sítio e romper com a fatalidade que pesava sobre sua existência. A preocupação da luta que ia travar com o mundo para conquistar um nome, apagaria de seu espírito a lembrança de Alice, ou pelo menos a vendaria com a suave melancolia da saudade eterna.

No meio de suas cogitações, percebeu o moço que se aproximava alguém.

Era o barão. Ainda fraco e alquebrado, mas impelido por grande esforço da vontade, insistira, apesar das reclamações de Benedito e da mulher, em levantar-se para falar a Mário. Vestindo as roupas mal enxutas, desceu até à rocha arrimado ao braço do preto, a quem despediu antes de ir ao encontro do mancebo.

Pressentira o negro velho que naquela entrevista solene entre o barão e Mário ia decidir-se da sorte de ambos, e da ventura de Alice. Com o coração confrangido pela previsão de uma nova desgraça, em vez de tornar à cabana onde a Chica ficara rezando, ganhou o rochedo.

Havia ali uma gruta, que pai Inácio, antigo dono da choupana, ensinara a Benedito com os outros segredos de sua bruxaria. Era daí que o feiticeiro falava às almas, e metia medo aos curiosos que se animavam a visitar à noite o tronco do ipê.

Benedito recebera todas essas abusões, e as conservava, embora só as empregasse para o bem, pois era, como dissemos, um feiticeiro de bom agouro. Naquele momento, impressionado com a cena que ia passar, tinha necessidade de “falar à alma de seu senhor” e pedir-lhe que evitasse tantas desgraças.

Entretanto o barão, arrastando o passo, se aproximara do tronco do ipê e achava-se em face de Mário. Quanto não dera este para evitar a penosa entrevista!

— Não seja inflexível, Mário!

— É o destino, sr. barão; não sou eu.

— Ao contrário. O destino ordena, e a prova é estarmos ambos aqui, neste momento.

— Tem razão; já devia estar longe.

— O senhor não pode partir, disse o barão colocando-se em face do moço.

— E quem mo veda? replicou Mário com altivez.

— Leu minha carta; nela suplicava-lhe, como uma graça, a felicidade de Alice. O que então implorei, o senhor deu-me agora o direito de exigi-lo.

— Eu?...

— Salvando-me a vida!

— Ah! livrar seu semelhante do perigo que o ameaça, é um dever banal, sr. barão; e para cumpri-lo basta a coragem comum, essa coragem que todos têm. Mas para vencer certos escrúpulos, certas repugnâncias, é preciso um heroísmo de que não sou capaz, confesso.

A voz do moço se repassara de pungente ironia ao pronunciar as últimas palavras.

— Pois bem! replicou o fazendeiro com um riso acerbo. O senhor pode-se divertir em salvar os outros; mas cada um dispõe de si como lhe apraz, e não tem que dar contas senão a Deus.

— Se eu conhecesse a sua intenção, a teria respeitado, respondeu Mário com uma frieza glacial.

— Ainda está em tempo de o fazer. Só reclamo uma cousa, que espero de sua lealdade; é o sigilo sobre um segredo que não lhe pertence, o segredo de minha morte. Que Alice ignore sempre...

— Juro.

— Adeus, senhor.

Afastou-se o barão. Nesse momento, Mário revoltou-se contra a fria impassibilidade com que ele consentia naquele suicídio de um pai, resolvido a imolar-se pela felicidade da filha.

— É um sacrifício inútil, disse ele.

— Acredito que não. O senhor ama Alice, e não teria hesitado um instante se eu não existisse. Quando esquecer-me, e será breve, não terá mais para resistir a esse amor nobre e puro, o apoio da aversão que lhe inspiro. Mas seja embora inútil, é necessário; cumpro o meu destino; Deus se compadecerá de mim, pois deste mundo nada mais posso esperar!

E o barão de novo arredou-se.

— Não! Não consinto! exclamou o mancebo adiantando-se.

— Só o marido de Alice tem o direito de impedir-me.

Mário curvou a cabeça, dominado pela implacável tenacidade desse coração de pai, contra o qual se chocava a inflexibilidade de seu caráter.

— Siga o impulso de sua alma; não se condene à desgraça pela culpa de outro, Mário, não sacrifique esterilmente seu futuro! Seu pai... se estivesse aqui neste momento, lhe ordenaria... eu acredito... que seja feliz e faça a felicidade daquela que o ama!

Não terminou o barão. Uma voz surda e cavernosa, que reboou no seio da terra, cortou-lhe a palavra, e derramou em sua alma, como na de Mário, um espanto repassado do respeito que infundem os mistérios de além-túmulo.

— Perdoa!... Perdoa!... repetia o eco subterrâneo.

Em princípio dominado pela impressão profunda, e possuído da crença do sobrenatural que tantas vezes invade até a razão mais robusta, Mário chegou um instante a acreditar que ouvira uma voz sepulcral, a voz de seu pai. Mas seu espírito revoltou-se imediatamente contra essa fraqueza; e desabafou em um sorriso de desprezo.

— Esta comédia tem durado demais, e indigna-me que façam representar nela a memória venerada de meu pai, e no lugar mesmo em que repousam suas cinzas.

— A prevenção o torna injusto, Mário. Para fazer-me tão duras exprobrações, não valia a pena de prolongar por alguns instantes uma vida condenada.

Neste momento súbito clarão feriu as vistas dos dois; voltando-se viram a alguma distância um grupo de gente, que se aproximava alumiado por archotes. Não foi possível logo, pela confusão dos vultos e pelo trêmulo da luz fumarenta, distinguir as pessoas; mas em pouco desenhou-se na esfera luminosa o talhe esbelto de Alice, que vinha ligeira e precípite, com a perturbação pintada no rosto e no gesto.

Desde a partida do pai, sentiu-se a menina inquieta, sem motivo. Muitas vezes o barão recolhia-se à noite; por aqueles sítios não havia exemplo de um assalto nos caminhos. Donde vinha pois esse vago receio, e as ideias tristes que a assaltavam?

Ouvindo já tarde rumor de animais e de escravos no pátio, ela foi à janela cuidando ser o pai que chegava. Era o Martinho que referia o ocorrido.

Quando o cavalo do barão disparara pela várzea afora, o pajem, pensando que era o senhor, não esperou mais, e acossado pelo medo das almas do outro mundo meteu as esporas na mula, e seguiu para a Casa Grande. Ao chegar, os pretos da cavalariça que tinham segurado o cavalo, perguntaram-lhe pelo senhor.

Grande foi o espanto de Martinho, que pensara acompanhar o barão, e grande o alvoroço que produziu a notícia do triste acontecimento. O animal estava molhado até os arreios, pelo que a lembrança do boqueirão acudiu logo a todos.

Angustiada pelo presságio de um desastre, que seus pressentimentos lhe haviam anunciado, tirou a menina de seu desespero uma energia de que ela própria nunca se julgaria capaz. Sem hesitar partiu acompanhada pelos pretos para certificar-se por si mesma da desgraça que a feria.

Ambos, o barão e Mário, tiveram um primeiro impulso de correr ao encontro de Alice, e contudo ficaram imóveis; um pelo desespero de não ter morrido, o outro pelo desespero de não ter partido.

— Meu pai!... exclamou Alice precipitando-se nos braços do barão.

Na primeira efusão a menina só lembrou-se que tinha junto ao coração aquele que julgava perdido para sempre; e abraçou-o sofregamente como receosa de que lho arrebatassem.

Foi depois, que ela sentiu molhadas as roupas do barão. Então o seu olhar desconfiado interrogou a fisionomia do pai e a de Mário.

— Não foi nada, disse o barão. Tiveste um susto à toa, vamos! Tua mãe deve estar inquieta.

Ditas estas palavras com esforço incrível, o fazendeiro não podendo suportar o límpido olhar de Alice que perscrutava-lhe os seios d’alma, afastou-se a pretexto de fazer partir um escravo à carreira e tranquilizar a baronesa.

Aproveitando esse momento Alice aproximou-se rapidamente do moço:

— Mário, por que meu pai quis morrer?

Mário estremeceu.

— Que ideia!

— Pretendem esconder de mim!...

— Cale-se, Alice!

— Então é verdade?... Bem o coração me adivinhava.

O barão voltara.

— Eu lhe suplico! murmurou o mancebo abafando a voz.

— Há aqui um mistério!... exclamou Alice que não via o pai aproximar-se. A fatalidade que nos separou...

Todo o horror da situação de Alice debuxou-se na imaginação de Mário. Pelo que ele sofrera, aquilatou do suplício atroz de uma filha suspeitando da honra do pai.

O que nesse transe solene se passou em sua alma, o que viveu no rápido momento, só o pode avaliar quem já viu seu destino suspenso de um gesto, ou de uma palavra.

Travando as mãos de Alice com um movimento arrebatado, Mário falou-lhe com tal veemência que a voz se lhe cortava; o barão o escutava imóvel de surpresa.

— Tem razão, Alice. Há aqui um mistério... um segredo cruel... que eu lhe queria ocultar... que devia morrer entre mim e seu pai... Mas já que exige... Ele lhe pertence... Sofra eu embora com esta confissão.

— O que fez o senhor, meu Deus? exclamou a menina, em cujo espírito passou uma ideia medonha.

Mário concentrou-se um instante:

— Depois que nos separamos, e que eu lhe disse um adeus eterno, foi quando compreendi todo o meu infortúnio! Orgulho de pobre me fizera rejeitar a felicidade, que tinha a desgraça de ser rica!... E achei-me em um deserto. A vida era para mim um destroço; o futuro um precipício! Que me restava? Lançar-me nele. Foi o que fiz.

— Ah!

— Passava seu pai a cavalo... Atirou-se à água, lutou... e salvou-me!

O barão fez um gesto de repulsa que o olhar de Mário atalhou. Não o percebera Alice porque de novo se lançara nos braços do pai, cheia da efusão de seu reconhecimento, e falando-lhe com uma doce exprobração que aliás se dirigia ao moço:

— Quis morrer por mim, e não quer viver para mim!

Mário sorriu:

— Cuidado, Alice! Este segredo, eu só o confiei a minha mulher!...

A estas palavras escondeu a menina as faces inundadas de pejo no seio do barão, que apertava silenciosamente a mão de Mário com os olhos no céu.


Um mês depois casaram-se Mário e Alice na capela de Nossa Senhora do Boqueirão, e dentro em poucos dias partiram para a Corte.

Mandara o barão com antecedência e a pedido da filha, alugar uma linda chácara para os lados do Jardim Botânico. Ali passaram os dois noivos sua primavera conjugal, que não foi somente lua de mel, mas astros perenes de sorrisos e flores.

Com o tato do coração Alice compreendera que Mário nunca poderia ser completamente feliz no lugar onde passara os primeiros anos. Envolvesse-o ela embora em uma atmosfera de amor, seu marido, no seio mesmo da ventura, havia de sentir a repercussão das reminiscências que dormiam ali ao redor, em cada sítio, em cada objeto.

Como a lava de bronze que o estatuário vaza no molde, é nossa alma na infância. Esculpe-se à feição da natureza que a cerca; e quando chega a mocidade, e funde-se a estátua, não é mais possível dar-lhe vária forma.

Em seu desvelo, porém, Alice contava criar para Mário outra infância melhor que lhe substituísse a dos anos, uma infância do amor, a encher-lhe a alma, e tanto, que não coubesse ali mais recordação de tempos ingratos.

O Barão da Espera dotou em cinquenta contos de réis a Adélia, sua afilhada, para que ela se casasse com Lúcio. Foi um pedido de Alice, a quem Mário inspirara essa ideia, como compensação da herança de que o velho Comendador Figueira privara o filho de D. Alina.

Ainda existe esta senhora e ainda conserva as duas paixões de sua vida, que foram sempre, as fitas e as intrigas. Deve em todos os armarinhos; e quando não tem que fazer, enreda o filho com a nora.

O nosso conselheiro provou afinal das uvas imperiais que por muitos anos estiveram verdes. Conseguiu uma pasta, que durante dois meses fora enjeitada por diversos, enquanto ele namorava com paixão a ingrata! O casamento da filha não podia vir mais a propósito, para dar-lhe um genro que servisse de oficial de gabinete em falta de um filho.

No ministério do Lopes foi enfim demitido o subdelegado que já se tinha em conta de vitalício. Parece que o homem se atrevera a prender o capanga de um potentado, o qual exigiu essa demissão por desabafo; e como ele falava em nome de setenta votos, e o Lopes ainda não era senador, foi logo obedecido.

Mirando-se nesse espelho, tratou o vigário de mudar de partido. O bom do padre, que tanto ganhava em banha, como perdia na tinta do latim, tinha lá de si para si, que deve cada um adquirir experiência das cousas, e pois já tendo, e longa, a de conservador, quis também a de liberal, quites de tornar atrás.

Como o barão se mudasse de vez para a Corte a fim de estar junto da filha, ficou o insigne compadre, o Sr. Domingos Pais, avulso por algum tempo. Mas descobriu que ainda tinha um filho por crismar, embora já lhe apontasse a barba; e por meio dele se uniu espiritualmente ao Matos.

Os dois se consolavam mutuamente: o Matos, do logro que sofrera perdendo um genro conselheiro que devia fazê-lo visconde; o Domingos Pais, do descrédito do seu honroso título, rebaixado de compadre de um barão a compadre de um simples comendador.

Do Frederico sabemos que veio a casar-se com uma prima roceira; e foi a Paris para despicar-se de Adélia.

Da indiferença do barão pela Fazenda do Boqueirão, proveio a sua decadência e ruína. Benedito e a mulher, forros desde o dia do casamento de Mário, viviam ainda na cabana, quando a Chica em um acesso de delírio, causado pela febre do reumatismo, atirou-se no boqueirão.

Foi a última vítima que o negro velho sepultou junto ao tronco doipê.