O Uraguai/II

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Depois de haver marchado muitos dias
Enfim junto a um ribeiro, que atravessa
Sereno e manso um curvo e fresco vale,
Acharam, os que o campo descobriram,
Um cavalo anelante, e o peito e as ancas
Coberto de suor e branca escuma.
Temos perto o inimigo: aos seus dizia
O esperto General: Sei que costumam
Trazer os índios um volúvel laço,
Com o qual tomam no espaçoso campo
Os cavalos que encontram; e rendidos
Aqui e ali com o continuado
Galopear, a quem primeiro os segue
Deixam os seus, que entanto se restauram.
Nem se enganou; porque ao terceiro dia
Formados os achou sobre uma larga
Ventajosa colina, que de um lado
É coberta de um bosque e do outro lado
Corre escarpada e sobranceira a um rio.
Notava o General o sítio forte,
Quando Meneses, que vizinho estava,
Lhe diz: Nestes desertos encontramos
Mais do que se esperava, e me parece
Que só por força de armas poderemos
Inteiramente sujeitar os povos.
Torna-lhe o General: Tentem-se os meios
De brandura e de amor; se isto não basta,
Farei a meu pesar o último esforço.
Mandou, dizendo assim, que os índios todos
Que tinha prisioneiros no seu campo
Fossem vestidos das formosas cores,
Que a inculta gente simples tanto adora.
Abraçou-os a todos, como filhos,
E deu a todos liberdade. Alegres
Vão buscar os parentes e os amigos,
E a uns e a outros contam a grandeza
Do excelso coração e peito nobre
Do General famoso, invicto Andrade.
Já para o nosso campo vêm descendo,
Por mandado dos seus, dous dos mais nobres.
Sem arcos, sem aljavas; mas as testas
De várias e altas penas coroadas,
E cercadas de penas as cinturas,
E os pés, e os braços e o pescoço. Entrara
Sem mostras nem sinal de cortesia
Sepé no pavilhão. Porém Cacambo
Fez, ao seu modo, cortesia estranha,
E começou: Ó General famoso,
Tu tens à vista quanta gente bebe
Do soberbo Uraguai a esquerda margem.
Bem que os nossos avôs fossem despojo
Da perfídia de Europa, e daqui mesmo
Co’s não vingados ossos dos parentes
Se vejam branquejar ao longe os vales,
Eu, desarmado e só, buscar-te venho.
Tanto espero de ti. E enquanto as armas
Dão lugar à razão, senhor, vejamos
Se se pode salvar a vida e o sangue
De tantos desgraçados. Muito tempo
Pode ainda tardar-nos o recurso
Com o largo oceano de permeio,
Em que os suspiros dos vexados povos
Perdem o alento. O dilatar-se a entrega
Está nas nossas mãos, até que um dia
Informados os reis nos restituam
A doce antiga paz. Se o rei de Espanha
Ao teu rei quer dar terras com mão larga
Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes
E outras, que tem por estes vastos climas;
Porém não pode dar-lhes os nossos povos.
E inda no caso que pudesse dá-los,
Eu não sei se o teu rei sabe o que troca
Porém tenho receio que o não saiba.
Eu já vi a Colônia portuguesa
Na tenra idade dos primeiros anos,
Quando o meu velho pai cos nossos arcos
Às sitiadoras tropas castelhanas
Deu socorro, e mediu convosco as armas.
E quererão deixar os portugueses
A praça, que avassala e que domina
O gigante das águas, e com ela
Toda a navegação do largo rio,
Que parece que pôs a natureza
Para servir-vos de limite e raia?
Será; mas não o creio. E depois disto
As campinas que vês e a nossa terra
Sem o nosso suor e os nossos braços,
De que serve ao teu rei? Aqui não temos
Nem altas minas, nem caudalosos
Aqui não temos. Os padres faziam crer aos índios que os
portugueses eram gente sem lei, que adoravam o ouro.
Rios de areias de ouro. Essa riqueza
Que cobre os templos dos benditos padres,
Fruto da sua indústria e do comércio
Da folha e peles, é riqueza sua.
Com o arbítrio dos corpos e das almas
O céu lha deu em sorte. A nós somente
Nos toca arar e cultivar a terra,
Sem outra paga mais que o repartido
Por mãos escassas mísero sustento.
Podres choupanas, e algodões tecidos,
E o arco, e as setas, e as vistosas penas
São as nossas fantásticas riquezas.
Muito suor, e pouco ou nenhum fasto.
Volta, senhor, não passes adiante.
Que mais queres de nós? Não nos obrigues
A resistir-te em campo aberto. Pode
Custar-te muito sangue o dar um passo.
Não queiras ver se cortam nossas frechas.
Vê que o nome dos reis não nos assusta.
O teu está muito longe; e nós os índios
Não temos outro rei mais do que os padres.
Acabou de falar; e assim responde
O ilustre General: Ó alma grande,
Digna de combater por melhor causa,
Vê que te enganam: risca da memória
Vãs, funestas imagens, que alimentam
Envelhecidos mal fundados ódios.
Por mim te fala o rei: ouve-me, atende,
E verás uma vez nua a verdade.
Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres
Era viver errantes e dispersos,
Sem companheiros, sem amigos, sempre
Com as armas na mão em dura guerra,
Ter por justiça a força, e pelos bosques
Viver do acaso, eu julgo que inda fora
Melhor a escravidão que a liberdade.
Mas nem a escravidão, nem a miséria
Quer o benigno rei que o fruto seja
Da sua proteção. Esse absoluto
Império ilimitado, que exercitam
Em vós os padres, como vós, vassalos,
É império tirânico, que usurpam.
Nem são senhores, nem vós sois escravos.
O rei é vosso pai: quer-vos felices.
Sois livres, como eu sou; e sereis livres,
Não sendo aqui, em outra qualquer parte.
Mas deveis entregar-nos estas terras.
Ao bem público cede o bem privado.
O sossego de Europa assim o pede.
Assim o manda o rei. Vós sois rebeldes,
Se não obedeceis; mas os rebeldes,
Eu sei que não sois vós, são os bons padres,
Que vos dizem a todos que sois livres,
E se servem de vós como de escravos.
Armados de orações vos põem no campo
Contra o fero trovão da artilheria,
Que os muros arrebata; e se contentam
De ver de longe a guerra: sacrificam,
Avarentos do seu, o vosso sangue.
Eu quero à vossa vista despojá-los
Do tirano domínio destes climas,
De que a vossa inocência os fez senhores.
Dizem-vos que não tendes rei? Cacique,
E o juramento de fidelidade?
Porque está longe, julgas que não pode
Castigar-vos a vós, e castigá-los?
Generoso inimigo, é tudo engano.
Os reis estão na Europa; mas adverte
Que estes braços, que vês, são os seus braços.
Dentro de pouco tempo um meu aceno
Vai cobrir este monte e essas campinas
De semivivos palpitantes corpos
De míseros mortais, que inda não sabem
Por que causa o seu sangue vai agora
Lavar a terra e recolher-se em lagos.
Não me chames cruel: enquanto é tempo
Pensa e resolve, e, pela mão tomando
Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade
Intenta reduzi-lo por brandura.
E o índio, um pouco pensativo, o braço
E a mão retira; e, suspirando, disse:
Gentes de Europa, nunca vos trouxera
O mar e o vento a nós. Ah! não debalde
Estendeu entre nós a natureza
Todo esse plano espaço imenso de águas.
Prosseguia talvez; mas o interrompe
Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo
Fez mais do que devia; e todos sabem
Que estas terras, que pisas, o céu livres
Deu aos nossos avôs; nós também livres
As recebemos dos antepassados.
Livres as hão de herdar os nossos filhos.
Desconhecemos, detestamos jugo
Que não seja o do céu, por mão dos padres.
As frechas partirão nossas contendas
Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo,
Se nele um resto houver de humanidade,
Julgará entre nós; se defendemos
Tu a injustiça, e nós o Deus e a Pátria.
Enfim quereis a guerra, e tereis guerra.
Lhe torna o General: Podeis partir-vos,
Que tendes livres o passo. Assim dizendo,
Manda dar a Cacambo rica espada
De tortas guarnições de prata e ouro,
A que inda mais valor dera o trabalho.
Um bordado chapéu e larga cinta
Verde, e capa de verde e fino pano,
Com bandas amarelas e encarnadas.
E mandou que a Sepé se desse um arco
De pontas de marfim; e ornada e cheia
De novas setas a famosa aljava:
A mesma aljava que deixara um dia,
Quando envolto em seu sangue, e vivo apenas,
Sem arco e sem cavalo, foi trazido
Prisioneiro de guerra ao nosso campo.
Lembrou-se o índio da passada injúria
E sobraçando a conhecida aljava
Lhe disse: Ó General, eu te agradeço
As setas que me dás e te prometo
Mandar-tas bem depressa uma por uma
Entre nuvens de pós no ardor da guerra.
Tu as conhecerás pelas feridas,
Ou porque rompem com mais força os ares.
Despediram-se os índios, e as esquadras
Se vão dispondo em ordem de peleja,
Como mandava o General. Os lados
Cobrem as tropas de cavaleria,
E estão no centro firmes os infantes.
Qual fera boca de libréu raivoso,
De lisos e alvos dentes guarnecida,
Os índios ameaça a nossa frente
De agudas baionetas rodeada.
Fez a trombeta o som da guerra. Ouviram
Aqueles montes pela vez primeira
O som da caixa portuguesa; e viram
Pela primeira vez aqueles ares
Desenroladas as reais bandeiras.
Saem das grutas pelo chão cavadas,
Em que até li de indústria se escondiam.
Nuvens de índios, e a vista duvidava
Se o terreno os bárbaros nasciam.
Qual já no tempo antigo o errante Cadmo
Dizem que vira da fecunda terra
Brotar a cruelíssima seara.
Erguem todos um bárbaro alarido,
E sobre os nossos cada qual encurva
Mil vezes, e mil vezes sota o arco,
Um chuveiro de setas despedindo.
Gentil mancebo presumido e néscio,
A quem a popular lisonja engana,
Vaidoso pelo campo discorria,
Fazendo ostentação dos seus penachos.
Impertinente e de família escura,
Mas que tinha o favor dos santos padres,
Contam, não sei se é certo, que o tivera
A estéril mãe por orações de Balda.
Chamaram-no Baldetta por memória.
Tinha um cavalo de manchada pele
Mais vistoso que forte: a natureza
Um ameno jardim por todo o corpo
Lhe debuxou, e era Jardim chamado.
O padre na saudosa despedida
Deu-lho em sinal de amor; e nele agora
Girando ao largo com incertos tiros
Muitos feria, e a todos inquietava.
Mas se então se cobriu de eterna infâmia,
A glória tua foi, nobre Gerardo.
Tornava o índio jactancioso, quando
Lhe sai Gerardo ao meio da carreira:
Disparou-lhe a pistola, e fez-lhe a um tempo
Co reflexo do sol luzir a espada.
Só de vê-lo se assusta o índio, e fica
Qual quem ouve o trovão e espera o raio.
Treme, e o cavalo aos seus volta, e pendente
A um lado e a outro de cair acena.
Deixando aqui e ali por todo o campo
Entornadas as setas; pelas costas,
Flutuavam as penas; e fugindo
Soltas da mão as rédeas ondeavam.
Insta Gerardo, e quase o ferro o alcança,
Quando Tatu-Guaçu, o mais valente
De quantos índios viu a nossa idade,
Armado o peito da escamosa pele
De um jacaré disforme, que matara,
Se atravessa diante. Intenta o nosso
Com a outra pistola abrir caminho,
E em vão o intenta: a verde-negra pele,
Que ao índio o largo peito orna e defende,
Formou a natureza impenetrável.
Co’a espada o fere no ombro e na cabeça
E as penas corta, de que o campo espalha.
Separa os dous fortíssimos guerreiros
A multidão dos nossos, que atropela
Os índios fugitivos: tão depressa
Cobrem o campo os mortos e os feridos,
E por nós a vitória se declara.
Precipitadamente as armas deixam,
Nem resistem mais tempo às espingardas.
Vale-lhe a costumada ligeireza,
Debaixo lhe desaparece a terra
E voam, que o temor aos pés põe asas,
Clamando ao céu e encomendando a vida
Às orações dos padres. Desta sorte
Talvez, em outro clima, quando soltam
A branca neve eterna os velhos Alpes,
Arrebata a corrente impetuosa
Co’as choupanas o gado. Aflito e triste
Se salva o lavrador nos altos ramos,
E vê levar-lhe a cheia os bois e o arado.
Poucos índios no campo mais famosos,
Servindo de reparo aos fugitivos,
Sustentam todo o peso da batalha,
Apesar da fortuna.De uma parte
Tatu-Guaçu mais forte na desgraça
Já banhado em seu sangue pretendia
Por seu braço ele só pôr ermo à guerra
Caitutu de outra parte altivo forte
Opunha o peito à fúria do inimigo
E servia de muro à sua gente
Fez proezas Sepé naquele dia
Conhecido de todos, no perigo
Mostrava descoberto o peito e o rosto
Forçando os seus co exemplo e côas palavras.
Já tinha despejado a aljava toda,
E destro em atirar, e irado e forte
Quantas setas na mão voar fazia
Tantas na nossa gente ensangüentava
Setas de novo agora recebia,
Para dar outra vez princípio
Quando o ilustre espanhol que governava
Montevidio, alegre, airoso e pronto
As rédeas volta ao rápido cavalo
E por cima de mortos e feridos,
Que lutavam co a morte, o índio afronta.
Sepé, que o viu, tinha tomado a lança
E atrás deitando a um tempo o corpo e o braço
A despediu. Por entre o braço e o corpo
Ao ligeiro espanhol o ferro passa:
Rompe, sem fazer dano, a terra dura
E treme fora muito tempo a hástea.
Mas de um golpe a Sepé na testa e peito
Fere o governador, e as rédeas corta
Ao cavalo feroz. Foge o cavalo,
E leva involuntário e ardendo em ira
Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse
Que regada de sangue aos pés cedia
A terra, ou que pusesse as mãos em falso,
Rodou sobre si mesmo, e na caída
Lançou longe a Sepé. Rende-te, ou morre,
Grita o governador; e o tape altivo,
Sem responder, encurva o arco, e a seta
Despede, e nela lhe prepara a morte.
Enganou-se esta vez. A seta um pouco
Declina, e açouta o rosto a leve pluma.
Não quis deixar o vencimento incerto
Por mais tempo o espanhol, e arrebatado
Com a pistola lhe fez tiro aos peitos.
Era pequeno o espaço, e fez o tiro
No corpo desarmado estrago horrendo.
Viam-se dentro pelas rotas costas
Palpitar as entranhas. Quis três vezes
Levantar-se do chão: caiu três vezes,
E os olhos já nadando em fria morte
Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.
Morto o grande Sepé, já não resistem
As tímidas esquadras. Não conhece
Leis o temor. Debalde está diante,
E anima os seus o rápido Cacambo.
Tinha-se retirado da peleja
Caitutu mal ferido; e do seu corpo
Deixa Tatu-Guaçu por onde passa
Rios de sangue. Os outros mais valentes
Ou eram mortos, ou feridos. Pende
O ferro vencedor sobre os vencidos.
Ao número, ao valor cede Cacambo:
Salva os índios que pode, e se retira.