O Uraguay/I

Wikisource, a biblioteca livre

CANTO PRIMEIRO

 

FUmão ainda nas deſertas praias
Lagos de ſangue tepidos, e impuros,
Em que ondeão cadaveres deſpidos,
Paſto de corvos. Dura inda nos valles
O rouco ſom da irada artilheria.
Musa, honremos o Heroe, que o povo rude
Subjugou do Uraguay, e no ſeu ſangue
Dos decretos reaes lavou a affronta.

Ai tanto cuſtas, ambição de imperio!
E Vós[1], por quem o Maranhão pendura
Rotas cadeias[2], e grilhões pezados,
Heroe, e Irmão de Heroes[3], ſaudoſa, e triſte
Se ao longe a voſſa America vos lembra,
Protegei os meus verſos. Poſſa entanto
Acoſtumar ao voo as novas azas,
Em que um dia vos leve. Deſta ſorte
Medroſa deixa o ninho a vez primeira
Aguia, que depois foge á humilde terra

E vai ver de mais perto no ar vaſio
O eſpaço azul, onde não chega o raio.
Já dos olhos o véo tinha raſgado
A enganada Madrid[4], e ao Novo Mundo
Da vontade do Rei nuncio ſevero
Aportava Cataneo: e ao grande Andrade[5]
Aviſa que tem prontos os ſocorros,
E que em breve ſahia ao campo armado.
Não podia marchar por hum deſerto

O noſſo General, ſem que chegaſſem

As conducções, que ha muito tempo eſpera.
Já por dilatadiſſimos caminhos
Tinha mandado de remotas partes
Conduzir os petrechos para a guerra.
Mas entre tanto cuidadoſo, e triſte
Muitas couſas a hum tempo revolvia
No inquieto agitado penſamento.
Quando pelos ſeus guardas conduzido
Hum Indio, com inſignias de Correio,
Com cerimonia eſtranha lhe apreſenta
Humilde as cartas, que primeiro toca
Levemente na boca, e na cabeça.
Conhece a fiel mão, e já deſcança
O illuſtre General, que vio, raſgando,
Que na cera encarnada impreſſa vinha

A Aguia Real do generoſo Almeida[6].
Diz-lhe, que eſtá vizinho, e traz comſigo

Promtos para o caminho, e para a guerra
Os fogoſos cavallos, e os robuſtos,
E tardos bois, que hão de ſoffrer o jugo
No pezado exercicio das carretas.
Não tem mais que eſperar, e ſem demora
Reſponde ao Caſtelhano, que partia,
E lhe determinou lugar, e tempo[7]
Para unir os ſoccorros ao ſeu campo.
Juntos em fim, e hum corpo do outro á viſta,
Fez desfilar as Tropas pelo plano,
Por que viſſe o Heſpanhol em campo largo
A nobre gente, e as armas que trazia.
Vão paſſando as eſquadras: ele em tanto
Tudo nota de parte, e tudo obſerva
Encoſtado ao baſtão. Ligeira, e leve

Paſſou primeiro a guarda, que na guerra
He primeira a marchar, e que a ſeu cargo

Tem deſcubrir, e ſegurar o campo.
Depois deſta ſe ſegue a que deſcreve,
E dá ao campo a ordem, e a figura,
E tranſporta e edifica em hum momento
O leve tecto e as movediças caſas,
E a Praça e as ruas da Cidade errante.
Atrás dos forçoſiſſimos cavallos
Quentes ſonoros eixos vão gemendo
Co’ pezo da funeſta artilheria.
Vinha logo de guardas rodeado,
Fontes de crimes, militar theſouro,
Por quem deixa no rego o curvo arado
O Lavrador, que não conhece a gloria;
E vendendo a vil preço o ſangue, e a vida,
Move, e nem ſabe porque move a guerra.
Intrepidos, e immoveis nas fileiras,

Com grandes paſſos, firme a teſta, e os olhos
Vão marchando os mitrados Granadeiros,

Sobre ligeiras rodas conduzindo
Novas eſpecies[8] de fundidos bronzes,
Que amiudão, de promptas mãos ſervidos,
E multiplicão pelo campo a morte.
Que he eſte, Cataneo perguntava,
Das brancas plumas, e de azul, e branco
Veſtido, e de galões coberto, e cheio,
Que traz a rica cruz no largo peito?
Geraldo, que os conhece, lhe reſponde:
He o illuſtre Menezes[9], mais que todos
Forte de braço, e forte de conſelho.
Toda eſſa guerreira Infanteria,
A flor da mocidade, e da nobreza,

Como elle, azul, e branco, e ouro veſtem.
Quem he, continuava o Caſtelhano,

Aquele velho vigoroſo, e forte,
Que de branco, e amarelo, e de ouro ornado
Vem os ſeus artilheiros conduzindo?
Vês o grande Alpoim[10]. Eſte o primeiro
Enſinou entre nós, por que caminho
Se eleva aos Ceos a curva, e grave bomba
Prenhe de fogo; e com que força do alto
Abate os tetos da Cidade, e lança
Do roto ſeio envolta em fumo a morte.
Seguião juntos o paterno exemplo
Dignos do grande pai ambos os filhos.
Juſtos Ceos! E he forçoſo, illuſtre Vaſco[11],

Que te preparem as ſoberbas ondas,
Longe de mim, a morte, e a ſepultura?

Ninfas do amor, que viſtes, ſe he que viſtes,
O roſto eſmorecido, e os frios braços,
Sobre os olhos ſoltai as verdes tranças.
Triſte objecto de mágoa, e de ſaudade,
Como em meu coração, vive em meus verſos.
Com os teus encarnados Granadeiros
Tambem te vio naquelle dia o campo,
Famoſo Maſcarenhas[12], tu, que agora
Em doce paz, nos menos firmes annos,
Igualmente ſervindo ao Rei e á pátria,
Dictas as Leis ao público ſocego,
Honra de Toga, e gloria do Senado.

Nem tu, Caſtro[13] fortiſſimo, eſcolheſte
O deſcanſo da Patria: o campo, e as armas

Fizerão renovar no inclyto peito
Todo o heroico valor dos teus paſſados.
Os ultimos, que em campo ſe moſtrárão,
Forão fortes dragões de duros peitos,
Promptos para dous generos de guerra,
Que pelejão a pé ſobre as montanhas,
Quando o pede o terreno; e quando o pede,
Erguem nuvens de pó por todo o campo
Co’ tropel dos magnanimos cavallos.
Convida o General depois da moſtra,
Pago da militar guerreira imagem,
Os ſeus, e os Heſpanhoes, e já recebe
No pavilhão purpureo, em largo gyro,
Os capitães a alegre e rica meza.
Deſterrão-ſe os cuidados, derramando
Os vinhos Europeos nas taças de ouro.

Ao ſom da eburnea cythara ſonora
Arrebatado de furor divino

Do ſeu Heroe, Matuſio celebrava
Altas emprezas dignas de memoria.
Honras futuras lhe promette, e canta
Os ſeus brazões, e ſobre o forte eſcudo
Já de então lhe afigura, e lhe deſcreve
As perolas, e o titulo de Grande.
Levantadas as mezas, entretinhão
O congreſſo de Heroes diſcurſos varios.
Alli Cataneo ao General pedia,
Que do principio lhe diſſeſſe as cauſas
Da nova guerra, e do fatal tumulto.
Se aos Padres ſeguem os rebeldes póvos?
Quem os governa em paz, e na peleja?
Que do premeditado occulto Imperio

Vagamente[14] na Europa ſe fallava
Nos ſeus lugares cada qual immovel

Pende da sua boca: attende em roda
Tudo em ſilencio, e dá principio Andrade.
O noſſo ultimo Rei, e o Rei de Heſpanha
Determinárão, por cortar de hum golpe,
Como ſabeis, neſte angulo da terra,
As deſordens de póvos confinantes,
Que mais certos ſinaes[15] nos dividiſſem

Tirando a linha, de onde a eſteril coſta,
E o cerro de Caſtilhos o mar lava

Ao monte mais vizinho, e que as vertentes
Os termos do dominio aſſinalaſſem.
Voſſa fica a Colonia, e ficão noſſos
Sete póvos, que os Barbaros habitão
Naquella Oriental vaſta campina,
Que o fertil Uraguai diſcorre, e banha.
Quem podia eſperar que uns Indios rudes,
Sem diſciplina[16], ſem valor, ſem armas,
Se atraveſſaſſem no caminho aos noſſos,
E que lhes diſputaſſem[17] o terreno!
Em fim não lhes dei ordens para a guerra:
Fruſtrada a expedição, em fim voltarão.
Co voſſo General me determino

A entrar no campo juntos, em chegando
A doce volta da eſtação das flores.

Não ſoffrem tanto os Indios atrevidos:
Juntos hum noſſo forte entanto aſſaltão.
E os padres os incitão, e acompanhão.
Que, á ſua diſcrição, ſó elles podem
Aqui mover, ou ſoſſegar a guerra.
Os Indios que ficárão prizioneiros[18],
Ainda os podeis ver neſte meu campo.

Deixados os quarteis, em fim partimos[19]
Por diverſas eſtradas, procurando

Tomar no meio os rebelados póvos.
Por muitas leguas de aſpero caminho,
Por lagos, boſques, valles, e montanhas,
Chegámos onde nos impede o paſſo
Arrebatado, e caudaloſo rio[20].
Por toda a oppoſta margem ſe deſcobre
De Barbaros o numero infinito,
Que ao longe nos inſulta, e nos eſpera.
Preparo curvas balſas, e pelotas[21],

E em huma parte de paſſar aceno,
Em quanto em outra paſſo occulto as Tropas.

Quaſi tocava o fim da empreza, quando
Do voſſo General hum menſageiro
Me affirma, que ſe havia retirado[22].
A diſciplina militar dos Indios
Tinha eſterilizado aquelles campos.
Que eu tambem me retire, me aconſelha,
Até que o tempo moſtre outro caminho.
Irado, não o nego, lhe reſpondo:
Que para traz não ſei mover um paſſo.
Venha quando puder, que eu firme o eſpero.

Porém o Rio e a fórma do terreno[23]
Nos faz não, viſta e nunca uſada guerra.

Sahe furioſo do ſeu ſeio, e toda
Vai alagando com o deſmedido
Pezo das aguas a planicie immenſa.
As tendas[24] levantei, primeiro aos troncos,
Depois aos altos ramos: pouco a pouco
Fomos tomar na região do vento
A habitação aos leves paſſarinhos.
Tece o emaranhadiſſimo arvoredo
Verdes, irregulares, e torcidas

Ruas, e praças de huma, e de outra banda
Cruzadas de canoas[25]. Taes podemos

Co’ a miſtura das luzes, e das ſombras
Ver por meio de hum vidro tranſplantados
Ao ſeio de Adria os nobres edificios,
E os jardins, que produz outro elemento.
E batidas do remo, e navegaveis
As ruas da maritima Veneza.
Duas vezes a Lua prateada
Curvou no Ceo ſereno os alvos cornos,
E inda continuava a groſſa enchente.
Tudo nos falta no país deſerto.
Tardar devia[26] o eſpanhol ſocorro.
E de ſi nos lançava o rio, e o tempo.
Cedí, e retirei-me ás noſſas terras.

Deo fim á narração o invicto Andrade,
E antes de ſe ſoltar o ajuntamento,

Com os regios poderes, que occultára,
Surpreende os ſeus, e os animos alegra,
Enchendo os poſtos todos do ſeu campo.
O corpo de Dragões a Almeida entrega,
E campo das mercês o lugar chama.


Fim do Primeiro Canto.

Notas[editar]

  1. E Vós. O Ulluſtriſſimo, e Excellentiſſimo Senhor Francisco Xavier de Mendonça Furtado foi Governador, e Capitão Geral das Capitanias do Grão Pará, e Maranhão; e fez ao norte do Brazil o que o Conde de Bobadela fez da parte do Sul: encontrou nos Jeſuitas a meſma reſiſtencia, e venceo-a da meſma ſorte.
  2. Rotas cadeias. Os Indios lhe devem inteiramente a ſua liberdade. Os Jeſuitas nunca declamárão contra o cativeiro deſtes miſeraveis racionaes, ſenão porque pretendião ſer só elles os ſeus Senhores. Ultimamente forão, nos noſſos dias, nobilitados, e admittidos aos cargos da Republica. Eſte procedimento honra a humanidade.
  3. Irmão de Heroes. Em huma ſó Família achou o Rei tres Irmãos dignos de repartirem entre ſi todo o pezo do Governo. Com quanto maior gloria noſſa podem os eſtranhos dizer da Corte de Lisboa, o que já ſe diſſe de Roma, ao vella nas mãos dos tres famoſos Horácios, Corneille, Horace:
        Et son illustre ardeur d´oser plus que les autres
        D’une seule maison brave toutes les notres.
        Ce choix pouvoit combler trois familles de gloire.
  4. A enganada Madrid. Os Jeſuítas por si, e pelos ſeus fautores tinhão feito na Corte de Madrid o ultimo esforço para impedir a execução do Tratado de Limites.
  5. Andrade: O Iluſtriſſimo, e Excelentiſſimo Senhor Gomes Freire de Andrade.
  6. Almeida. O Coronel Joſé Ignacio de Almeida.
  7. Lugar, e tempo. O dia 16 de Janeiro de 1756 em Santo Antonio o Velho.
  8. Novas eſpecies. As Companhias de Granadeiros levárão a eſta expedição peças de amiudar, que forão as primeiras, que paſsárão ao Brazil.
  9. Menezes. O Coronel Francisco Antônio Cardoso de Menezes, hoje Governador da Colonia.
  10. Alpoim. O Brigadeiro.
  11. Vasco Fernandes Pinto Alpoim, filho do Brigadeiro, e particular amigo do Author, morreo Tenente-Coronel na flor dos ſeus anos em uma embarcação, que ſe perdeo, vindo da Colonia para o Rio de Janeiro.
  12. Maſcarenhas. Fernando Maſcarenhas, Capitão de Granadeiros, depois Sargento mór, actualmente ſerve no Senado.
  13. Castro. O Tenente Coronel Francisco de Castro Morais de ilustriſſima Familia, que teve o governo do Rio de Janeiro no tempo da invasão do famoſo Du Guay Trouin.
  14. Vagamente. Os Jeſuitas tem tido a animoſidade de negar por toda Europa o que se acabou de paſſar na America nos noſſos dias á viſta de dous Exercitos. O Author o experimentou em Roma, onde muitas peſſoas o buscavam ſó para saberem com fundamento as noticias do Uraguay teſtemunhando um eſtranho contentamento de encontrarem um Americano, que os podia informar miudamente de tudo o sucedido. A admiração, que cauſava a eſtranheza de factos entre nós tão conhecidos, fez nascer as primeiras idéas deste Poema.
  15. Mais certos ſinaes. O Tratado de Limites das Conquistas celebrou-se a 16 [13] de Janeiro de 1750 entre os Senhores Reis D. João o V de Portugal, e D. Fernando o VI de Hespanha. Eſte Tratado feria os Jeſuitas na alma, porque por ele se entregavão aos Portuguezes as terras, que a Companhia depois de muito tempo poſſuia como ſuas da parte Oriental do Rio Uraguay.
  16. Sem diſciplina. Como naquelle tempo ſe imaginava.
  17. Lhes diſputaſſem. Os Officiais Militares, que forão fazer a demarcação, chegarão ao posto de Santa Tecla, e nele acharão fortificados os Indios, que lhes impedirão os paſſos.
  18. Prizioneiros. Foram ſincoenta eſtes prizioneiros; alguns dos princípaes vieram remettidos ao Rio de Janeiro, onde o Author os vio, e fallou com elles. Confeſſavão ingenuamente, que os Padres tinhão vindo em sua companhia até o Rio Pardo, e ſe tinhão deixado ficar da outra banda. Mostravão-ſe ſurpreendidos da doçura, que encontravam no trato dos Portuguezes. Dizião que os Padres não ceſſavam de lhes intimar nas suas prégações, que os Portugueses tinhão o diabo no corpo, e que erão todos feiticeiros. Que em matando algum, para que não tornaſſe a viver, era neceſſário pôr-lhe a cabeça hum palmo longe do corpo; o que elles religioſamente observavão.
  19. Partimos. Saiu o General Portuguez do Rio Grande de S. Pedro a 28 de Julho de 1754.
  20. Caudaloſo rio. Jacuí. Chegárão a elle aos 7 de Setembro.
  21. Balſas, e pelotas. Eſpecie de barcos, em que os noſſos paſsão naquelle paiz os maiores, e mais profundos rios. Fazem-ſe de couros de boi. Levão no fundo as cargas, e em ſima os homens com os cavallos nadando á mão. Os Indios, que são robuſtiſſimos, e grandes nadadores, tirão toda eſta maquina por huma corda, cuja ponta tomão nos dentes. Quem vai dentro leva na mão a outra ponta, largando-a mais, ou menos, conforme julga ſer neceſſario.
  22. Se havia retirado. Retirarão-ſe as Tropas Caſtelhanas, enfraquecida a Cavalleria. Tinhão-se mettido muito pela margem do rio, que eſtava rapada dos gados Jeſuiticos. Finalmente não tinham vontade de entrar em Miſsões; nem até então eſtavam inteiramente perſuadidos da intenção do Rei. A maior razão de duvidar naſcia das cartas, que vinhão da Corte de Madrid por uma occulta cabala; os Jeſuitas tudo revolvião, e maquinavão mais que nunca.
  23. Fórma do terreno. Todos aquelles boſques, e vargeas por muitas, e muitas léguas são alagadiços, e sujeitos a eſtas enchentes. Há Nações inteiras de Indios, que fazem as ſuas choupanas, e vivem ſobre as árvores. São deſtriſſimos em ſubir, e deſcer ſem cordas, nem genero algum de escada. As árvores são altiſſimas, e tem a maior parte do anno as raizes na água.
  24. As tendas. Talvez não ſe achará na Hiſtoria suceſſo ſemelhante. Foi neceſſaria toda a conſtancia do Conde de Bobadela para ter dous mezes hum Exercito abarracado ſobre as arvores.
  25. Canoas. Pequenas embarcações dos Indios feitas de um ſó tronco: nellas vinhão occultamente fazer commercio com os Portuguezes, e Heſpanhoes.
  26. Tardar devia. Post bellum auxilium.