O missionário/IV

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Macário, aquele dia, em alegre ansiedade, acendia uma a uma as velas de cera amarelada do altar-mor, fazendo ranger sobre os degraus as botinas de bezerro, lustradas de fresco. O peso da comprida sobrecasaca de lustrina, caindo-lhe com solenidade sobre as curvas, impedia-lhe a liberdade dos movimentos e continha o íntimo alvoroço que o possuía, forçando-o a manter a calma e decente gravidade das cerimônias.

Pelas altas janelas envidraçadas do templo penetrava uma luz risonha que avivava os dourados, amortecendo a claridade das tochas dos outros altares, já acesas, e das placas das paredes. Um ar alegre vinha do Largo da Matriz, entrava pela nave da igreja, envolvia os santos, os altares e os belos festões de flores naturais que, naquele dia, ornavam o milagroso altar de Nossa Senhora do Carmo. Das luzes crepitantes dos tocheiros exalava-se um cheiro forte de cera oleosa e ordinária, derretida ao fogo, e do chão subia o odor dos velhos tijolos empoeirados, úmidos da recente lavagem.

Um primeiro repique dera o sinal da missa, e as últimas vibrações do bronze bem fundido ecoavam ainda nas matas da outra banda.

Macário desceu do altar com a grande vara do acendedor na mão, e, depois de dobrar os joelhos por um instante sobre o primeiro degrau, gozou o efeito encantador dos pingos luminosos das velas dispostas em trapézio, subindo até ao oratório do Cristo Crucificado.

Em seguida dirigiu-se para a porta da entrada, saudando com outra genuflexão o altar de Nossa Senhora do Carmo, resplendente de flores e de luzes.

À porta parou um instante, ergueu a cabeça para a torre e gritou:

- Toca segunda vez, José, que já é tempo.

Os sinos repicaram, espalhando no ar alegres notas argentinas. Homens e mulheres aproximavam-se da igreja, vindo dos quatro ângulos da praça, com roupas de festas, a passos apressados, para escolher o melhor lugar.

Macário, de pé, à porta, de cabeça descoberta, mergulhava o olhar nos grupos, esforçando-se por disfarçar a alegre ansiedade que o possuía.

Era um domingo. Aquela gente que se aproximava vinha à missa mas era principalmente atraída pela cerimônia que devia seguir o Santo Sacrifício. Casava-se uma sobrinha do Neves Barriga com o filho dum fazendeiro do Urubus. Naquele dia, em pleno mês mariano, além da missa conventual, celebrava-se um casamento de gente rica.

Mas para o Macário, havia alguma coisa mais, que o trazia alvoroçado e ansioso, havia um segredo, que ele gozava desde a véspera, e que o impedira de dormir a sono solto, conforme era de tradicional costume... Em toda Silves, só ele, Macário de Miranda Vale, sabia o que se ia passar por ocasião do casamento do Cazuza Bernardino com a sobrinha do Neves Barriga, presidente da Câmara Municipal. S. Rev.ma confiara-lhe o segredo, pela muita confiança que nele depositava.

Por isso, desde muito cedo, Macário auxiliado sofrivelmente pelo José do Lago, asseara a igreja, preparara tudo para a missa e para a cerimônia nupcial. A igreja fora bem varrida, haviam-se queimado muitos ninhos de cabas e espanado os altares, as grades, o púlpito e os bancos. Renovaram-se o vinho e a água das galhetas - um vinhito branco e cheiroso que o Filipe do Ver-o-peso mandava do Pará, por obséquio, e que desaparecia da garrafa da sacristia com uma rapidez incrível. Macário desconfiava da concorrência de José do Lago, um troca-tintas que aprendia com o Chico Fidêncio, e nada fazia que prestasse. Abrira a caixinha das hóstias e verificara que estava bem sortida. Já não eram as hóstias moles e amareladas, sabendo a bolor, de que usava o defunto vigário. Viera provisão nova de lâminas finas, duras, alvas, de farinha torrada, parecendo obreias, e o hostiário era reluzente e belo, um rico mimo que o reitor do Seminário grande do Pará fizera a padre Antônio, por intermédio do mesmo Filipe. Depois Macário tirara fora da cômoda os ricos paramentos sagrados de S. Rev.ma, tudo novo e bonito como Silves nunca vira. A capa-magna safra da gaveta para pôr-se em evidência sobre a cômoda, porque tinha de servir aquele dia, na cerimônia do casamento. S. Rev.ma fazia aquela distinção à noiva, por causa do Neves Barriga, que o recebera muito bem quando chegara a Silves, já lá se iam três meses.

Feito o serviço da sacristia, Macário mandara o malandro do José do Lago para a torre, e começara a acender as velas, depois de envergar a sua querida sobrecasaca de lustrina, companheira da capa-magna do senhor vigário nas cerimônias religiosas.

E agora, à porta da igreja, vendo chegar o povo em fato domingueiro, Macário sentia crescer-lhe a ansiedade, desejando ardentemente apreciar o efeito da surpresa preparada por S. Rev.ma, cujo segredo só o Macário possuía e de cujos inevitáveis resultados - Macário estava seguro -, Silves colheria moralmente as maiores vantagens.

Porque a vila, forçoso era confessá-lo, não correspondia aos esforços tentados por padre Antônio de Morais - e por Macário - para a regeneração daquele povo indiferente e apático em matéria religiosa. E com isso, Macário ficava desesperado, posto que, pessoalmente, não tivesse razões de queixa, e nunca na sua pobre vida de sacristão de aldeia tivesse sido mais feliz.

Padre Antônio tratava-o com toda a consideração e estima, tornara-o depositário da sua confiança e ouvia-o sempre sobre os detalhes do serviço da paróquia. Macário sentia-se outro, aprumava melhor o corpo, falava mais alto. Para corresponder à delicadeza de S. Rev. ma, desenvolvera um grande zelo pelos negócios a seu cargo, e até gostava de estimular o ardor do vigário, quando o via mais sossegado, com uma vaga sensação de fadiga. Padre Antônio era moço e inexperiente, afinal de contas, precisava dum amigo sisudo e prático da vida, que o não deixasse esmorecer na árdua tarefa de que se incumbira. Macário, reconhecia-o sem bazófia e sem macavelismo, fora esse amigo necessário.

Era preciso estar a pé muito cedo para a missa de todos os dias, não esquecer a hora do catecismo, não faltar a um enterro, não fazer esperar os padrinhos dum batizado. Era necessário imaginar combinações para melhorar o templo, para adquirir o indispensável ao desempenho das cerimônias religiosas e regularizar o serviço. Padre Antônio era um santo, não havia dúvida alguma, mas se não fosse o Macário...

Diversas pessoas entraram, saudando à passagem:

- Bom-dia, seu Macário.

- Ara Deus lhe dê muito bons-dias, seu Macário.

Macário fez um porta-voz com a mão e gritou para a torre:

- Toca a terceira, José do Lago.

Os sinos recomeçaram a repicar, e o povo aumentou à porta da igreja. Por enquanto era só o povo miúdo: tapuios de camisa branca e de cinta encarnada, caboclas de camisa de rendas, pretas velhas de lenço branco à cabeça e de saias de chita pirarucu. Não havia ainda nenhuma pessoa de consideração. Ao longe, a um canto da rua, via-se um grupo formado pelo professor Aníbal, pelo Mapa-Múndi e pelo Costa e Silva. Mas não pareciam ter vontade de vir à missa.

Macário entrou na igreja, foi postar-se à porta da sacristia para esperar o vigário. Em meio da nave, sobre os tijolos ainda úmidos, mulheres do povo sentavam-se, cochichando.

- Ah! se eu não fosse, pensava o sacrista continuando nas suas cogitações, se não fosse o macavelismo, as coisas estariam piores do que estavam. Padre Antônio de Morais poderia bem arrumar a trouxa, apesar de ser a pérola dos padres, um homem que era uma coisa espantosa! Mas, franqueza, franqueza, não tinha prática da vida. Macário tomara a si substituir a S. Rev.ma nos seus impedimentos, fazendo aquilo que ele devia fazer, escondendo quanto possível as suas pequenas faltas nas relações com os fregueses para que estes não desconfiassem. Recebia as pessoas que procuravam o senhor vigário, dizia que S. Rev.ma teria muito pesar quando soubesse; depois aconselhava a pessoa, dando a entender a verdade, que, sem o seu auxilio de sacristão, nenhuma pretensão era satisfeita. Se uma devota enviava algum presente, uma toalha para o altar da milagrosa Senhora do Carmo, ou o azeite para a lâmpada do Santíssimo, quem ia à casa da devota agradecer por S. Rev.ma o presente e dizer que S. Rev.ma enviava a sua benção para que Nosso Senhor lhe restituísse em cêntuplo o que dera à Igreja? Era Macário que de moto próprio usava do pequeno macavelismo para não deixar esfriar a coisa, porque ia notando que padre Antônio estava ficando muito concentrado, e que tal ou qual afastamento começava a dar-se entre o pastor e as principais ovelhas.

Uma vez dissera Chico Fidêncio numa roda, ao balcão do Costa e Silva, que a confissão era o grande meio de que se serviam os jesuítas para conhecer todos os segredos do lar e poder com eles governar o chefe da família. Esta história de confissão, a que o povo não estava habituado, porque padre José não confessara nunca, levantara uma grande celeuma.

- Não faltava mais nada, exclamara o Costa e Silva um domingo, aguardando a entrada da missa, não faltava mais nada do que admitir que minha mulher vá contar ao senhor vigário o número de beijos que lhe dou por noite. Ora essa é boa! Sou católico, e dos bons, mas nisso de confissão não acredito.

Segundo o capitão Manuel Mendes da Fonseca, as confissões traziam, às vezes, a desunião da família, e o professor Aníbal Brasileiro afirmara haver certo bispo ordenado aos confessores que indagassem das suas confessadas donzelas se já haviam pecado contra a castidade, com quem, quantas vezes, se por amor ou por vadiação. Um horror!

Macário reconhecia; lá isso também era demais, não seria um padre tão santo como o senhor padre Antônio que faria coisa tão indecente e mal cabida. Ainda se as perguntas se fizessem à moça com certo maquiavelismo, encobertamente, vá. Mas crua e nuamente: Minha filha, pecou contra a castidade, diga com quem, quantas vezes pecou, foi por amor, foi por vadiação? Safa, que o tal bispo era de força!

Mas não era somente a confissão a indispor o povo de Silves contra um padre tão santo como o senhor vigário. A missa diária fatigava a população, acostumada a ouvir missa aos domingos, quando muito, se o permitia a mandriice daquele pândego de padre José. A missa aos domingos era uma distração salutar. Mas agora todos os dias, cansava seu bocadinho. A igreja já ia ficando deserta, sob pretexto de que o santo sacrifício se celebrava em horas de trabalho. O professor Aníbal Brasileiro, que desde o malogro da Aurora crista não ouvia missa, conseguira chamar para o seu lado o Mapa-Múndi; este não podia agüentar por um bom quarto de hora a cerimônia, de joelhos, sobre os tijolos esburacados da igreja. Os dois, inspirados evidentemente pelo tratante do Chico Fidêncio, começaram a contrariar subterraneamente a obra de regeneração encetada por padre Antônio, aconselhando aos homens o cuidar mais do seu trabalho do que de carolices e às mulheres o olhar mais para a sua casa. Eram uns verdadeiros ateus aqueles dois sujeitos, dignos de ir em companhia do Chico Fidêncio para as caldeiras de Pedro Botelho.

Até os meninos já gazeavam a aula de catecismo, aproveitando o relaxamento dos pais receosos da despesa dos sapatos e da roupa de brim. Um cansaço geral invadia a população, acostumada à indiferença religiosa. Tudo pesava, tudo era constrangimento, principalmente para as pessoas gradas, senhoras, havia muitos anos, de fazer tudo quanto lhes convinha. Pois se padre José regera a paróquia durante vinte anos!

Da parte das mulheres operava-se um grande retraimento. D. Eulália, a mais ardente entusiasta do vigário, havia muito que saíra, acompanhando o marido que, decididamente, não sacrificava aos seus cômodos os xerimbabos da mulher. Mas esta, contara a parenta pobre, ia ocasião da partida dissera de mau humor:

- Arre também com tanto xerimbabo!

D. Cirila, pela aversão que o capitão Mendes da Fonseca, o coletor, ganhara à confissão, graças às tramóias do patife do Chico Filêncio, deixara a freguesia do engomado, e metia-se em casa, não vinha à igreja senão muito raramente.

D. Prudência esperara suceder a D. Cirila, mas como a freguesia da roupa fora dada a uma tapuia velha, convencera-se de que era a Luísa Madeirense a engomadeira do vigário, e estava louca de ciúmes, apesar dos protestos do Macário, que jurara pela castidade de S. Rev.ma, porque, realmente, homem assim Macário nunca vira. Era uma coisa espantosa!

D. Dimildes, a irmã do Mapa-Múndi, tivera ordem expressa do irmão para se não confessar. Resistia ainda, coitada da devota, mas teria talvez de ceder à imposição fraterna.

Abria-se um vácuo em torno do moço vigário, e ele, pela inexperiência do mundo, aumentava a gravidade desses sintomas, ressentindo ima hostilidade surda por parte das pessoas gradas, daqueles mesmos figurões que se tinham apresentado a recebê-lo a bordo com tantas mostras de estima e de respeito. Mas Macário, que não era tolo e tinha muito conhecimento dos homens e das coisas, compreendia bem quela má vontade. A vida imaculada de padre Antônio de Morais castigava os desregramentos dos homens influentes. Eles tinham saudades daquele vigário pândego, cujos hábitos folgazões, francos e livres deixavam toda a gente viver à sua vontade, sem constrangimentos nem hipocrisias. O que as pessoas gradas queriam era um vigário como padre José ou como padre João da Mata, o vigário de Maués, que morrera no princípio do ano no sítio de Sapucaia, em ignorado sertão, nos braços duma mameluca linda como o sol.

Chegara a época da colheita das castanhas, e a vila começava a ficar deserta. O vereador João Carlos, apesar da sua intimidade com coletor, partira com a família em busca dos castanhais sombrios. muitas famílias, preocupadas com os arranjos da viagem, esqueciam os deveres religiosos, e pouco a pouco fora padre Antônio ficando reduzido a dizer missa para meia dúzia de tapuias velhas, a confessar algumas negras boçais e a doutrinar alguns meninos pobres, de ínfima classe, sujos e quase nus. Macário andava desesperado, saía fora do sério. Tudo aquilo era obra do Chico Fidêncio, ateu que, se fosse ao tempo da inquisição, já estaria reduzido a cinzas.

O coletor, com o seu modo grave, defendera o povo, assegurando o Sr. Macário que a fé não diminuíra, todos estavam contentes com senhor vigário, a população de Silves era muito religiosa, mas que, enfim, não se podia perder o tempo próprio para a colheita das castanhas naquele ano, estavam dando um dinheirão.

- O Elias, acrescentara, acariciando a barba, escreveu-me a esse respeito. Pediu-me que lhe mandasse toda a castanha que se pudesse obter, porque os preços estão muito bons. Posso pagar até vinte mil-réis. Já vê o Sr. Macário que a população de Silves não deve perder uma ocasião tão boa. Demais, sou exator da fazenda geral e provincial. Como funcionário público, o meu dever é animar o comércio e a indústria, para favorecer o desenvolvimento das rendas do Estado e da província. Isto disse-me outro dia o presidente que é um cavalheiro distinto e muito boa pessoa. Sem castanhas e sem pirarucu, sem óleo e sem cacau, os cofres ficariam exaustos e onde iria parar o Estado? O Estado antes de tudo, Sr. Macário, porque o Estado somos todos nós. Não digo que não se seja religioso, isso não! A religião é uma coisa necessária ao povo. A religião é um freio, não há dúvida, eu o reconheço, mas enfim, concluiu com ironia fina, sorrindo discretamente na espessa barba negra, a religião não produz castanhas, e sem castanhas não há impostos.

Macário tivera vontade de responder-lhe que se a religião não produzia castanhas, era Deus quem fazia os castanhais, e sem castanhais não havia castanhas. Mas o respeito que o hábito lhe dera pelo capitão Fonseca, a pessoa mais importante e de mais consideração na vila, obrigara-o, a calar-se. Mas não que as bichas pegassem. Macário não se convencia! Achava aquilo malfeito, ninguém lhe tirava da cabeça que era obra do Chico Fidêncio pois, na última correspondência para o Democrata, depois de criticar os olhos baixos e o falar suave de padre Antônio de Morais, dissera que os castanheiros estavam carregados aquele ano, e que tolo seria quem ficasse em Silves a papar missas, quando podia fazer uma fortuna com o trabalho de levantar castanhas do chão.

Padre Antônio parecia francamente descontente. A sua voz ecoava no templo vazio, e talvez desanimasse se Macário não estivesse sempre à beira dele, falando, entusiasmando-o, lembrando expedientes.

O casamento da sobrinha do Neves Barriga estava marcado para a segunda dominga de maio, depois da missa. S. Rev.ma tivera uma idéia luminosa que confiara ao sacristão, e este aprovara muito. E esse segredo, essa surpresa que, com o seu consenso e assentimento, se preparava às pessoas gradas, enchia-o de alegre esperança. Tanto ele, como padre Antônio, confiavam muito no efeito desse maquiavelismo, para chamar o povo de Silves à antiga devoção.

A igreja já estava cheia, e o fato era de bom agouro. Havia muito tempo, um mês talvez, que a igreja mesmo aos domingos, ficava a meio vazia. E desta vez não era só a gente miúda. O Neves Barriga com a mulher e a sobrinha acabavam de chegar, o Neves de sobrecasaca e calças pretas, lustrosas, antigas, mas de pano fino, um grande lenço preto a endurecer o pescoço, obrigando-o a trazer ereta a cabeça, pondo a plena luz a cara de carneiro manso, com as ventas atopetadas de Paulo-Cordeiro. D. Eulália, de vestido de nobreza amarela, tinha sobre a testa estreita dois largos bandós postiços que a punham atrapalhada e vesga. A sobrinha, a D. Mariquinhas - Maria das Dores das Neves Pamplona, chamava-se ela, toda enfiada, arrastava nos tijolos do pavimento o seu vestido de noiva, branco, ornado de flores de laranjeira, e mordia, para disfarçar, o lencinho de rendas, curvando a cabeça envergonhada, ao peso da coroa da virgindade. Não tardou a chegar o Cazuza Bernardino, acompanhado do pai, Bernardino Santana, fazendeiro do rio Urubus, todo vestido de preto, como o Neves, mas de roupa menos fina e mais velha.

O noivo era um rapaz esperto, direito, bem apessoado, largo peito coberto pela farda de botões dourados, mão grande e calosa, empunhando os copos da bonita espada prateada. Muito moço, vinte e dois anos, quando muito, e já era tenente da guarda nacional. Há dessas felicidades inexplicáveis! pensava Macário, olhando, como toda a gente, para o brilhante Cazuza Bernardino...

Uns passos ouviram-se de leve na sacristia. Era o vigário silencioso e triste na sua batina negra.

- Está tudo pronto? perguntou S. Rev.ma. E com a resposta afirmativa do Macário, encaminhou-se para o fundo da sacristia e começou a vestir a alva.

Macário estava com vontade de perguntar-lhe se persistia na idéia de surpreender o povo de Silves, aproveitando a reunião das pessoas gradas na igreja, para aquilo que havia imaginado. Mas padre Antônio preparava-se para a missa como se já estivesse celebrando o santo sacrifício. Concentrado, os seus movimentos vagarosos e elegantes tinham a regularidade da disciplina, e a unção da graça que consola. Erguia a miúdo para o teto os olhos semicerrados, e com os lábios trêmulos parecia dizer fervorosa prece. Baixava a cabeça, coroada de cabelos negros, beijava a estola sagrada antes de a cruzar sobre o amplo peito de rapaz robusto, e depois levantando a casula enfiava-a pelo pescoço, continuando a oração com que se procurava tornar digno do mais santo dos mistérios.

Macário não se atrevia a dirigir-lhe a palavra. A atitude de padre Antônio de Morais infundia-lhe respeito. Como era diferente do defunto padre José! Como tudo era diverso! As roupas novas, bordadas a ouro, ou rendadas a ponto de labirinto, tinham um brilho que tornava mais miserável e mais velha a imunda fatiota de padre José. Os modos, os gestos, os usos eram duma elegância grave e digna. As cerimônias vulgares do ofício divino assumiam uma nunca vista majestade. Padre Antônio, na vestimenta comum dos celebrantes, parecia um bispo de pontifical, sereno e radiante na magnificência sagrada de paramentos régios. Só lhe faltava a mitra!

- Vamos, disse S. Rev.ma pegando no cálice coberto com a bolsa da cor dos paramentos, cheia de alvos corporais bem engomados.

Macário vestiu a opa, tomou o missal e entrou na capela-mor, seguido por S. Rev.ma.

A missa começou.

- Introibo ad altare Dei, anunciou padre Antônio com a voz comovida e trêmula com que sempre iniciava o sacrifício, como se a sua indignidade não se atrevesse a comparecer afoitamente perante Deus Onisciente e Todo-Poderoso.

- Ad Deum qui lætificat juventutem meam, disse Macário com voz segura e cheia, exprimindo a doce emoção da sua alma, no desempenho da sua ocupação predileta.

- Judica me, Deus....

O celebrante abaixou os olhos para o quadro preto, e um murmúrio confuso lhe saiu dos lábios, no recolhimento fervente da oração, enquanto com os braços entreabertos, unindo o polegar e o indicador de ambas as mãos, mostrava o êxtase da alma suspensa entre o céu e a terra.

Macário aproveitou a ocasião para correr uma olhadela pela igreja. As sobrecasacas negrejavam, em linha, por trás dos vestidos aparatosos, de cores vivas. Na primeira fila, os botões do Cazuza Bernardino brilhavam.

Padre Antônio voltou-se para o povo e disse:

-Oremus...

Um leve sussurro correu pela nave, um murmúrio de admiração e respeito. A presença do padre, simpático e venerado, nas ricas roupas bordadas a ouro, atraiu por instantes toda a atenção dos fiéis. Quando o padre voltou as costas ao público para rezar o Confiteor os olhos em liberdade puseram-se de novo a admirar o Cazuza Bernardino e a sua interessante noiva. Macário aproveitou o Confiteor para dar outra olhadela. O coletor, de casaca, engastava a figura redonda e barbada na massa escura formada pela primeira fila de homens.

- De casaca! pensou Macário. É incontestavelmente um homem decente e digno. Sabe como se fazem as coisas. Isto é que é. Um homem sério deve apresentar-se às cerimônias decentemente vestido.

E exclamou, curvando-se reverente, atraído pela sublimidade do mistério:

- Misereatur tui Omnipotens Deus, et dimissis peccatis tuis, perducat te ad vilam æternam.

Padre Antônio esgotou o Kyrie eleison. Terminou a epístola. Macário, mudando o missal para o lado do Evangelho, lançou em cheio a vista sobre o povo de fiéis que assistia à missa.

Lá estava o Valadão, esgrouviado e tísico, com o fitão tricolor a tiracolo, o José Antônio Pereira, muito sério, com o guarda-chuva e o pequeno chapéu de feltro pendurados das mãos engatadas sobre o baixo ventre. O Costa e Silva lá estava, em devoção fervorosa; o Mapa-Múndi, suado e enorme, dando sinais de impaciência; o Regalado, o Chico Ferreira... Silves em peso, inclusive as pessoas gradas, tinha vindo assistir aquela missa especial para gozar melhor o espetáculo dum casamento rico. Macário estava contente. Era aquilo mesmo que ele desejava! Queria que estivessem ali todos aqueles devotos descontentes ou arredios, para ter o gosto de os ver vencidos, confessando o arrependimento, no balbuciar humilde da oração.

- Orate, frates, aconselhou o celebrante, voltando-se de novo para os fiéis. Houve um ruge-ruge de saias engomadas, e um ruído de chapéus-de-sol que batiam no chão. O povo ajoelhava.

Padre Antônio lia o Evangelho. Macário voltou-se de três quartos, e pareceu-lhe que pela fresta da porta lateral, a figura enfezada e biliosa do professor Chico Fidêncio espiava.

- Será possível?! murmurou Macário, fazendo esforços para certificar-se da verdade. Sim, não havia dúvida. De punhos rotos, seboso e mal vestido, com as botinas sem graxa, o cabelo sem óleo, pequeno e desagradável, o Chico Fidêncio ali estava. O arrojo do professor desnorteava o sacristão. O Chico Fidêncio ali, o ateu, o troscista, o incorrigível Chico Fidêncio, era realmente para um homem dar o cavaco! Viessem o capitão Fonseca, o Mapa-Múndi e o Costa Silva, todos os que haviam protestado contra o dever da confissão, isso era o que Macário desejava. Viesse mesmo o professor Aníbal Americano, que jurara não ouvir missa dita por padre Antônio de Morais. Apesar de livres-pensadores, apesar de desviados da senda direta por onde o vigário os queria levar para o céu, Macário tinha certeza de que se converteriam facilmente, e para eles se preparava a grande surpresa daquele dia. Mas com o tratante do Chico Fidêncio a coisa era diferente. Esse sujeito já estava em vida condenado ao inferno, era um pecador impenitente. Com ele eram infrutíferas todas as tentativas de conversão, o patife tudo metia a ridículo. Macário não podia se defender dum certo respeito supersticioso pela inteligência maligna e irreligiosa do professor, que tanto amargurara os últimos dias do defunto padre José. O Fidêncio era o diabo. Se ele se metesse a levar a surpresa para o lado da gaiatice, estava tudo perdido. Apesar da confiança de Macário no talento e nas virtudes de padre Antônio, receava o resultado da luta entre a unção do santo vigário e o sarcasmo do patife que, no dizer de padre José, fora expulso do corpo de permanentes do Pará por maus costumes, pecados contra a natureza... Nesse combate que se iria talvez travar, dali a momentos, ao pé do altar de Nossa Senhora, o padre e o professor representariam os dois princípios opostos, o Bem e o Mal, o Anjo do Senhor e o Inimigo da Alma. Macário estava muito inquieto. A seu pesar não podia tirar os olhos da carinha enfezada de Fidêncio, sarcástica e diabólica, por trás da porta lateral da rua. Por que coincidência fatal, o Chico Fidêncio que nunca vinha à missa, se apresentava ali naquele dia quando a sua presença só podia ser prejudicial à salvação de Silves? O segredo da surpresa fora rigorosamente guardado por Macário, nem à vizinha o dissera. Teria o Fidêncio adivinhado, ou estaria ali só por curiosidade de assistir ao casamento do Cazuza Bernardino? Terrível incerteza que mergulhava o sacristão num mar de conjeturas e de receios.

- Sursum corda, balbuciou padre Antônio num murmúrio de êxtase.

Macário já não sabia o que fazia. O demônio do Chico Fidêncio viera ali de propósito para o tentar, distraindo-o do serviço santo. Felizmente Macário estava muito prático, fazia aquilo todos os dias, e maquinalmente, preocupado da súbita aparição do correspondente do Democrata, mudava o missal, trazia as galhetas, sacudia o turíbulo e fazia genuflexões, como se estivesse todo entregue ao mistério. Mas no fundo da alma pungia-lhe o remorso dum pecado, e quando padre Antônio acabou de ler o Evangelho de S. João, Macário, atarantado, esqueceu o Deo gratias.

- Estava distraído, Macário, disse S. Rev.ma, entrando atrás dele pela sacristia dentro, carregando o cálice coberto com a bolsa dos corporais.

- Saberá V. Rev.ma que foi uma tentação do demônio, respondeu descansando o missal.

Padre Antônio despiu a casula e a alva, vestiu a capa-magna e voltou para a igreja, seguido pelo sacristão.

Os noivos, os padrinhos e os convidados aproximaram-se. O matrimônio começou a celebrar-se. O Cazuza Bernardino, satisfeito e risonho, acariciava os copos da espada prateada e nova, virgem de combates. A D. Mariquinhas das Dores continuava a morder o lencinho de rendas, corada e vergonhosa, com uma lágrima no canto do olho esquerdo.

Quando padre Antônio perguntou se fazia gosto naquele casamento com o senhor tenente José Bernardino de Santana, respondeu com voz ininteligível. Quando lhe tocou a vez o Cazuza Bernardino sorriu e disse com segurança:

- Pois não, padre-mestre, é de todo o meu gosto.

Nenhum dos assistentes da missa se retirara, todos, mesmo os que não haviam sido convidados para assistir ao casamento, detinham-se fazendo roda, seguindo com um sorriso vago os movimentos dos nubentes. O capitão Manuel Mendes da Fonseca, grave e sério, não sorria. O Neves tinha lágrimas, muito comovido. D. Eulália assoava-se repetidas vezes. O Mapa-Múndi, asfixiado pela multidão, suava.

Quando a cerimônia acabou, o Valadão ao ouvido do Costa e Silva:

- Estão conjugados!

Os noivos abraçavam os parentes. D. Mariquinhas desatara em pranto, abraçada ao pescoço de D. Eulália ofegante. Neves Barriga, pernas abertas, cabeça pendida, lenço espalmado na mão, sorvia uma grande pitada de Paulo-Cordeiro, disfarçando emoção profunda.

- Agora, disse ele para o capitão Fonseca, agora é que o Urubus vai ficar de todo insuportável para mim. Por meu gosto mudava-me para a vila. Mas D. Eulália, coitada, tem muito amor aos xerimbabos!

Os rapazes amigos do noivo vieram logo apertar a mão à noiva e dar um abraço àquele felizardo. Cazuza agradecia dizendo:

- Olha lá, não fartes ao baile.

Macário procurou o Chico Fidêncio, e não o viu. Ter-se-ia ido embora. Seria uma felicidade!

Havia um grande reboliço entre o povo. Preparavam-se todos para sair, acompanhando os noivos à casa do Bernardino Santana. Mas padre Antônio, de simples batina negra e barrete de quina, assomou de súbito ao púlpito.

Era a surpresa. Pararam todos. Macário, sorrindo, viu o Neves Barriga, o Costa e Silva, o Valadão e o Mapa-Múndi voltarem-se muito admirados. O professor Aníbal Americano entrava nessa ocasião, de óculos de tartaruga, de sobrecasaca abotoada, muito formalizado. Não quisera faltar ao dever de vir cumprimentar o seu antigo discípulo, na ocasião do seu casamento. O professor estacou em meio da nave, contrariado, concertando os óculos.

- É uma atenção delicada, disse o capitão Fonseca para o Neves Barriga. S. Rev.ma vai fazer uma prática sobre o sacramento do Himeneu. É para agradecer.

O Neves deu a entender com a cabeça que agradecia a atenção de S. Rev.ma.

Mas padre Antônio de Morais, descansando o barrete sobre o parapeito do púlpito, trovejou contra a falta de devoção do povo de Silves, condenando, numa eloqüência cálida e correta, o amor do lucro que o levava a abandonar pelos negócios o caminho da salvação, em tão boa hora começado, e desfiou um longo rosário de argumentos colhidos em Doutores da Igreja. Levantando o gesto, e dando à voz entoações lúgubres, carregando os supercílios e apertando os olhos, os belos olhos pretos, para não ver o quadro horrendo que descrevia aos ouvintes atônitos e surpresos, fez uma pintura viva e colorida das torturas preparadas na outra vida para os que nesta se descuidam de Deus por amor do mundo. S. Rev.ma mostrou nada haver de mais contrário ao ensinamento cristão, às eternas verdades da Lei, do que essa ardente preocupação pelos bens terrenos que levava as suas ovelhas queridas a abandonarem o serviço do Senhor, para irem, na sôfrega ambição de ganhar dinheiro, perverter a alma no ermo dos castanhais, onde todos os anos se reproduziam cenas muito pouco dignas de gente católica, apostólica e romana.

- O bem mais precioso desta vida é a tranqüilidade da consciência. E, depois, pausadamente, perguntou com solene intimativa, com que consciência se deixava deserta a igreja, despovoava-se o culto santo da Mãe Santíssima dos homens pelos prazeres e divertimentos mundanos.

E percorreu os olhos pela nave, por sobre as cabeças apinhadas em redor da tribuna, nas proximidades do altar-mor. Aquela gente viera, alegre e curiosa, para presenciar um espetáculo agradável, e não sabia como responder à inesperada pergunta, começava a deixar-se impressionar pela suave sombra da igreja, pelo cheiro de incenso, pelo silêncio, pela nobre figura daquele mancebo, vestido de negro, cuja fronte alva e espaçosa brilhava de inteligência e cuja voz simpática atraía os corações.

- Loucos! bradou de repente o padre, sacudindo as mãos, no desespero de convencer os matutos resistentes. Loucos, não sabeis que a morte não se faz anunciar nunca! E que dum momento para outro, nas festas dos castanhais, quando ao balcão contardes os lucros da colheita, e vos entregardes descansados aos ganhos do negócio ou aos prazeres insípidos do mundo, ela vos pode levar para a infinita dor com a alma cheia de pecados, embalde arrependida!

Aquela evocação da idéia da morte, quando todos se preparavam para os divertimentos duma festa, e trajando os melhores vestidos, as senhoras desafiavam os olhares dos homens, ávidos dos gozos da vida, causou uma espécie de arrepio geral, como se um inseto repugnante os perturbasse a todos no repouso cômodo do corpo, roçando-lhes a epiderme. O plano formado por S. Rev.ma surtia bom efeito. Macário estava satisfeito.

Entretanto alguns espíritos fortes, o Mapa-Múndi e o Costa e Silva protestaram com um gesto e com o olhar contra aquele recurso empregado pelo vigário. O professor Aníbal, que se achava perto do Macário, disse ao ouvido de José Pereira, que no interesse de sua opinião, padre Antônio não duvidara entristecer os seus paroquianos. Era malfeito, principalmente numa ocasião daquelas.

Sem notar o protesto, sem ouvir a censura, com sincera compaixão na voz e no rosto, erguendo os belos olhos ao teto escurecido do templo, baixando-os depois para percorrer a nave com um olhar amoroso de pai que compreende a desgraça dos filhos rebeldes, o padre continuou:

- Ah! meus irmãos, não sabeis que, morrendo em pecado, perdemos a Deus, e que o perdemos para sempre 'e' sem remédio? E quereis, filhos e irmãos amados, arruinar por bens que não são mais do que males, por uma fortuna que é pó, cinza e nada, a salvação eterna da vossa alma imortal?

- Sabeis o que é o inferno, bradou com energia crescente, agarrando-se com ambas as mãos ao púlpito, para mostrar que estava seguro da verdade. Sabeis o que é o inferno? É uma multidão infinita e complicada de todos os tormentos, que se sofrem sem ter esperança de melhorar, por toda a eternidade, para todo o sempre, sem que para diminuir essas atrozes torturas possais invocar a vossa idade, o vosso sexo, a vossa fraqueza, a vossa devoção, nem sequer a vossa qualidade de cristãos, ó cegos colaboradores de Satanás!

O povo ficou transido de susto, ao ouvir falar de repente na escura e misteriosa região em que não penetra a esperança. Padre Antônio falara na entoação firme de íntima convicção. Uma vaga sensação de mal-estar, um terror indefinido parecia ir-se apoderando das mulheres e dos tapuios. Posto não fosse tapuio, o Costa e Silva tinha os lábios trêmulos, sentia-se nervoso, aborrecido por ter ido à missa. O Mapa-Múndi resmungava, fazendo menção de retirar-se, mas a irmã, a D. Dinildes, deixava-se ficar, dominada pela voz severa que lhe falava de coisas tão terríveis.

Padre Antônio percebia o efeito das suas palavras. Devia estar pessoalmente magoado com o procedimento da gente de Silves, devia estar despeitado por não lhe terem correspondido aos trabalhos e dedicação pela salvação da vila. Ou por isso, ou porque um sincero desejo de fixar a fé vacilante dos paroquianos o animasse naquele momento, apaixonando um homem de ordinário tão calmo e comedido, começou a apurar de tal modo 'a influência do pecado sobre a vida futura, a exagerar por tal forma o negro quadro da condenação eterna, pintando ao vivo com muito talento, uma por uma, as diversas cenas do inferno, que, de súbito, o povo pôs-se a bater no peito, num desespero surdo em que os soluços das mulheres, prostradas sob o peso da ameaça, se misturavam com a respiração forte, ofegante, dolorosa dos tapuios caídos de joelhos, sobre os tijolos da igreja, num abatimento profundo, como se o véu que encobria a consciência de todos eles se tivesse rasgado à voz poderosa do padre, para lhes deixar conhecer o estado de pecado mortal em que jaziam. O Mapa-Múndi e o Costa e Silva tinham a garganta seca e os olhos úmidos. O capitão Fonseca batia, às ocultas, nos peitos, realmente arrependido de ter proibido à mulher o remédio da confissão. De D. Mariquinhas das Dores apenas aparecia a cabecinha envolta numa gaze branca, cercada de botões de laranjeira, agitada por um tremor convulso de rolinha assustada. O Cazuza Bernardino tinha estereotipado nos lábios um sorriso à-toa. O tenente Valadão, de faixa a tiracolo, encostado a um pilar, reprimia

a tosse. O Neves, muito vermelho, chorava como uma criança, assoando-se ruidosamente.

O padre, então, falou ao coração compassivo daqueles roceiros, como já falara à imaginação daqueles filhos do Amazonas. Parecendo gozar a satisfação completa do triunfo, adoçou a voz, terno e compassivo, e disse daquele divino Jesus, pendurado da cruz do sacrifício, entre dois criminosos, com o belo corpo chagado e dolorido, com a fronte cismadora inclinada ao peso dum incomparável martírio, com os braços abertos como para exprimir o imenso amor que dedicara à humanidade, morrendo como um bandido duma morte afrontosa, injuriado, cuspido, açoitado como um negro, amesquinhado na sua pessoa e na sua obra, tudo para remir da mácula do pecado original aqueles tapuios imbecis, aquelas mulheres apáticas e moles, aqueles homens soberbos, indolentes e viciados - que apesar de haverem nas águas do batismo bebido a puríssima doutrina do Salvador do Mundo, viviam como verdadeiros pagãos, como judeus que eram pelo pecado, a crucificar novamente o Crucificado, a pregá-lo outra vez na cruz dos seus desatinos, a chagar-lhe o corpo com a sua ingratidão e vileza, a injuriá-lo, a cuspi-lo, a amesquinhá-lo na sua Igreja e nos seus sacerdotes.

E olhou de relance para o Costa e Silva que se sentia desfalecer. O Mapa-Múndi, reconhecendo-se culpado, abaixara os olhos, confuso, torturado pelo olhar da irmã, cheio de censuras.

- Sim, meus irmãos, continuou padre Antônio, compungido e riste, com lágrimas na voz, com doloroso sentimento na face. Sois os verdadeiros judeus deste tempo. Entre o nosso doce Salvador, o nosso bom e querido Jesus, que se sacrificou por nós, que se empenhou por nós ante o austero tribunal do seu augusto Pai, que morreu por nos naquela cruz, e o nosso eterno inimigo, vós preferis o inimigo, vós crucificais a Cristo e festejais o demônio.

- Sim, o demônio! repetiu fulminando com o olhar o Mapa-Múndi e o Costa e Silva.

Depois amaciando a voz, e mostrando a estátua do Senhor dos Passos, avelhantada e triste:

- Aquela pálida imagem chora ainda hoje lágrimas de sangue pelos vossos desvarios, e quando Nosso Senhor chora e geme sob o peso de tantas cruzes, vós, filhos e irmãos ingratos, só cuidais em festas e negócios, como se nada houvesse depois desta vida terrena!

Um soluço comprimido abalou o auditório, como se uma corrente simpática tivesse reunido todas as pessoas presentes na expansão do mesmo sentimento.

O Costa e Silva parecia aniquilado. De mão ao peito, olhos baixos, era uma estátua da contrição e do arrependimento. O Mapa-Múndi, suava, torturado.

Olhando para eles, vendo-os vencidos, padre Antônio de Morais deixou escapar um sorriso de triunfo, e entrou numa peroração brilhante, cheia de eloqüência, repassada do mais poderoso sentimento religioso. O povo, subjugado, tremia e admirava. Nunca a tribuna sagrada, em Silves, fora levantada àquela altura. Nunca naquele pobre e obscuro recinto do velho templo arruinado ecoara uma voz tão sonora, tão vibrante e entusiástica, tão rica em rasgos de verdadeira eloquência. Umas vezes singelo e chão, baixando ao nível da compreensão dos tapuios ignorantes e das mulheres do povo, outras, alteando-se até o estilo puramente literário, encantando e dominando o auditório somente pela música da voz e pela sonoridade retumbante de grandes frases que pareciam encher a modesta sala da igreja paroquial, padre Antônio tinha a doçura do pai que fala a filhos estremecidos, o carinho da mãe que embala o pequenino doente, a calma do amigo que aconselha, a severidade do juiz que castiga, a raiva da vítima que se vinga. O seu rosto refletia, como num mármore polido, os sentimentos que se sucediam no largo peito, arfante sob a sobrepeliz de rendas brancas. Os olhos brilhavam-lhe com o fulgor da cólera, depois aveludavam-se, ameigavam-se para acentuar as palavras doces que saíam dos lábios, depois, ainda, fixos, grandes, encarando entes ou cenas invisíveis, tinham a profundeza escura dos abismos... A boca severa, convulsa, dizia maldições, ameaças e castigos, mas logo desatava-se em murmúrio brando, semelhante ao ciciar da brisa das campinas, em que se ouvem o ruído leve das folhas levadas pelo vento e um vago som de beijos. A sua alta estatura impunha-se à multidão. Da elevada posição em que se achava parecia ter baixado do céu para castigar os maus e abraçar os bons. Dizia de novo o martírio, a angústia de Maria Santíssima, a ingratidão dos homens, o terrível nada do mundo. Tinha orações que açoitavam, que faziam o auditório vergar-se como árvores batidas pelo tufão do sul, ditos que punham uma angústia inexprimível no coração dos homens, um doloroso desalento no peito fraco das mulheres, gestos de compaixão e de dor fazendo correr lágrimas de arrependimento. Havia uma hora que o sermão durava. O povo desabituado, vencido pela emoção, abatido pelo calor que se desprendia dos corpos com emanações de suor e de perfumes de trevo, de patchuli e de manjerona, parecia uma cera mole que o padre amoldava a seu talante. Parca era a luz que penetrava pelas vidraças estreitas e embaçadas. Do alto do telhado, às pausas do orador, os morcegos chiavam, e as vespas e cabas, deixando os ninhos e cortando subitamente a nave em diagonal, zumbiam descontínua e lugubremente. Os raios do sol, coando pelos vãos das telhas e pelas altas janelas, davam tons macilentos às grandes imagens velhas, imóveis sobre os altares, com uma aparência de desolada miséria. As almas penadas dos retábulos e dos grandes quadros parietais, desmaiavam na fogueira, inspirando horror e lástima. Do teto, suspensa por compridas e finas correntes de ferro, uma grande lâmpada de azeite, fracamente iluminada, pendia em frente ao altar-mor, projetando uma sombra esguia sobre o pavimento da igreja, e quando o vento que entrava pela porta lateral da sacristia, a balançava de leve, a sombra varria o povo ajoelhado, impressionando as velhas beatas assustadas. O calor aumentava, o suor banhava as frontes, era enorme a opressão dos peitos. O pregador pôs-se a falar na eternidade, nessa terrível concepção que abala os corações mais fortes e confunde os espíritos mais lúcidos. E quando pronunciava em voz grave e lenta as palavras - Para sempre! Para sempre! parecia que a sua voz acompanhava o pêndulo invisível do tempo no eterno e monótono balanço. Depois, por uma transição rápida terminando o discurso, disse que a misericórdia divina era infinita e convidou o povo a dizer com ele a oração dominical na esperança de abrandar a cólera celeste.

Mas em vez de o acompanhar na oração, vendo-o de braços estendidos e cabeça baixa a murmurar - Padre-nosso que estais no céu - com submissão humílima, e como se a humildade e o aviltamento daquele padre, havia pouco tão severo e grandioso, provasse mais a magnitude da cólera celeste de que todo o seu discurso, o auditório, no auge do terror e do arrependimento, pôs-se a bradar angustiado:

- Misericórdia, misericórdia!

E na ânsia de se vilipendiar em público, castigando a carne pecadora e provando o arrependimento que lhe ganhara o coração, toda a gente se pôs a bater na cara com ambas as mãos, produzindo um ruído seco e prolongado como uma salva de palmas, na platéia dum teatro.

Padre Antônio desceu do púlpito, e pôs-se a andar às pressas para casa, suado, rubro, cansado, mas feliz, convencido de que possuía a alma daquela gente para todo o sempre. Para que o encontro com alguém não o forçasse a despir a fria e severa atitude com que descera do púlpito, correu a encerrar-se no seu quarto, donde não saiu todo o dia, recusando-se a receber as pessoas principais da terra que o vinham felicitar pelo esplêndido sermão que proferira.

Macário saiu da igreja radiante de entusiasmo e de amor-próprio. Sim, senhores, aquele macavelismo tinha sido bem achado, a surpresa do povo fora completa, o triunfo seria certo. E a cara do Mendes da Fonseca, e o desapontamento do Mapa-Múndi e do Costa e Silva, e a zanga do professor Aníbal Brasileiro, que se fora embora, em meio do sermão, aborrecido por ter faltado ao juramento que fizera! À porta da Matriz, satisfeito, sentindo no peito o orgulho do pai que ouve os aplausos ao filho vitorioso, Macário andou de grupo em grupo, e depois saiu pelas ruas, de loja em loja, sondando, provocando e dirigindo a opinião:

- Que tal esteve o sermão, hein? Já se ouviu em Silves uma coisa assim? Padre Antônio é ou não um pregador digno da catedral do Pará?

E respondia, ele próprio, que a vila devia orgulhar-se de ter um vigário que, além de ser um padre modelo, casto e sério até ali, dispunha dum talento oratório capaz de meter inveja a todos os padres do Amazonas. Ele aconselhara a S. Rev.ma a aproveitar aquele dia para o sermão, que ninguém esperava, mas cujo tema o Macário conhecia desde a véspera, pois fora combinado entre os dois, às oito horas da noite, na sala de jantar.

E corria as ruas, falando às janelas, onde as senhoras passavam aquele domingo perfumado e alegre:

- Gostou do sermão, D. Cirila? Que tal, D. Dinildes? Que me diz a isto, D. Prudência?

Aos homens perguntava o que mais lhe agradara em toda a oração, se o princípio, o meio ou o fim. Indagava: Gostou daquela chamada de judeus, seu capitão Fonseca? E quando ele falou da eternidade, hein, seu Costa e Silva? E quando ele, no princípio, falou nas ovelhas do Senhor que abandonam o serviço de Deus para irem para os castanhais apanhar castanhas e fazer porcarias?!

O sermão agradara geralmente, e agora, cá fora, na calma da recordação, os homens elogiavam-no. Alguns faziam observações ligeiras.

À noite era o baile em casa do Bernardino Santana para festejar o casamento do filho. Ao sair da igreja o Cazuza Bernardino dissera ao sacristão, amavelmente:

- Olhe lá, seu Macário sacristão, não farte. Vá espiar um mocadinho o baile.

E o sacristão fora, de rodaque de alpaca, porque a sobrecasaca de lustrina reservava-a para as grandes solenidades do dia. Padre Antônio ficara encerrado no quarto, lendo ou meditando.

A casa do Bernardino Santana estava toda iluminada com lampiões de querosene, e cheia de gente. Estava ali toda a sociedade seleta da vila, não faltava uma só pessoa grada. Vinham uns pelo Neves Barriga, presidente da Câmara, homem bom, que vivia fartamente no sítio de Urubus, sem inimigos. Outros vinham pelo Bernardino que tinha lá a sua importância. Os rapazes acudiam ao convite do Cazuza, que, apesar de tenente, era um bom rapaz, muito pândego. A sala, pequena, clara e florida, estava cheia de senhoras, e pelo corredor, pelas alcovas, transformadas em gabinetes e pequenos salões, pela sala de jantar, e até pelo copiar da cozinha, os convidados espa1havam-se, fumando, bebendo, conversando, passeando, uns sérios e sisudos, sentindo o peso da sobrecasaca sobre os ombros acostumados à liberdade do rodaque branco, outros, alegres, joviais, querendo desforçar-se naquela noite de festa dos longos dias sensaborões da vida sertaneja. As senhoras novas, sentadas nas cadeiras e canapés alinhados na sala, vestidas de claro, coradas de emoção, tinham os olhos em alvo. Pelos cantos as velhas negrejavam, cochichando. Um calor forte, impregnado do cheiro acre de petróleo, de suor, do perfume de patchuli e manjerona, vinha da sala e assaltava a garganta dos recém-vindos. Um pó sutil levantava-se do pavimento recentemente varrido. A sala, nua, espaçosa, posto que pequena, tinha um ar alegre de festa, com as paredes brancas, as telhas vermelhas a descoberto, o chão de ladrilho, e os vestidos claros, enfeitados e engomados das senhoras.

Quando Macário entrou, a orquestra, composta do Chico Ferreira, tocador de flauta, e do Manduca sapateiro, rabequista, tocava a Varsoviana. Os rapazes, às portas, empurravam-se rindo, excitando-se mutuamente a romper a dança, nenhum queria ser o primeiro a tirar par, procurando disfarçar o pejo com galhofas e risadas! Estavam ali os mais pintados, os mais atirados, os mais bonitos rapazes de Silves. Eram o Totônio Bernardino, irmão do noivo, recém-chegado do Pará, onde cursara as aulas do Liceu Paraense, viera às férias da Semana Santa, e deixara-se ficar vadiando; o Pedrinho Sousa, também estudante, companheiro do Totônio nos estudos e na cábula; o Manduquinha Barata, pequenino, bonitinho, bem vestidinho, fugira do Seminário de Manaus, por não poder meter o dente no Hora-horæ, e o pai, depois de lhe dar uma tremenda sova à beira do cacaual, quando o viu chegar de surpresa, pondo-o em papas e de cama por quinze dias, deixava-o andar vagando em Silves, namorando as moças e fumando cigarros, por não saber o que fazer dele; o juiz municipal, Anselmo Pereira de Campos Natividade, bacharel de Pernambuco, trigueiro e récem-formado, muito míope e muito pedante; o Felício boticário, irmão de D. Prudência, magro e esguio, parecendo filho do Valadão; e o Quinquim da Manuela, bom menino, sobrinho do Neves Barriga, pobre mas muito estimado. Macário não vinha ali para dançar, nem fora convidado para isso. Não freqüentava bailes, e viera à festa do Bernardino por condescender, e ao mesmo tempo porque andava com muita vontade de perguntar a toda a gente, com quem não falara ainda, a sua opinião sobre o sermão da manhã.

- Venha espiar o baile, dissera-lhe o Cazuza Bernardino, e ele, condescendente, espiava.

Vendo as nicas que os amigos faziam, o Cazuza Bernardino atravessou a sala, com passo firme, afrontando com denodo os olhares das senhoras e foi convidar a noiva para dar começo ao baile. Na fila das cadeiras houve um riso nervoso que disparou duma ponta a outra quando os noivos vieram para o meio da sala, de braço dado, prontos a começar. O Totônio animou-se e foi tirar uma irmã da noiva. O Felício boticário atirou-se a D. Dinildes e o Manduquinha Barata, por troça, foi convidar a D. Eulália que se fez de manto de seda.

O Barata foi bater à porta de D. Cirila, que lhe respondeu, desdenhosa, no seu vestido verde, precioso e largo:

- Axi! seu Manduquinha, eu não danço com menino.

O riso estalou na sala. O Barata, já meio vexado, foi oferecer a mão à filha do Valadão, uma rapariga meio loura, muito pálida, de nariz afilado e grandes dentes em ponta, vestida de musselina branca com pingos vermelhos, e laços cor de castanha:

- Já estou comprometida com o filho do Chico Sousa, respondeu a filha do Valadão, com maus modos.

Foi uma gargalhada. Afinal o Manduquinha achou quem o quisesse, uma menina de onze anos, sardenta e endefluxada, e a Varsoviana começou compassada, em cadência, com requebros convencionais de elegância provinciana. A noiva, com o véu atirado para trás, o rosto descoberto, as ventas dilatadas, o ventre para diante, sacudia as saias amplas e engomadas, batendo fortemente no chão com os pés calçados em botinas grandes de cetim branco, de carregação, ao som da música monótona e pontuada da Varsoviana. O Cazuza Bernardino, direito como um fuso, apertava-a contra a bela farda nova, aspirando-lhe enlevado o macaçar dos cabelos negros, coroados pela grinalda de flores de pelica branca, e desmanchando-se já, na desordem des primeiros passos da dança, do penteado de bandós custosamente arranjado para aquele dia solene, único na vida da donzela do Urubus. Agarravam-se um ao outro, como temendo uma separação, e volteavam pela sala, mudos, corados, sentindo nas costas os olhares agudos das senhoras, e nos ouvidos as graçolas dos homens e o murmúrio confuso dos cochichos das velhas, sentadas ao canto da sala, maldizendo, vestidas de preto. O Totônio e a irmã da noiva, a Milu, iniciavam um namoro na Varsoviana. Haviam principiado rindo, metendo à bulha os noivos, e dançando com desembaraço e graça, sobressaindo aos outros pares na elegância dos passos e dos requebros, mas agora, sentindo uma emoção evidente, estavam sérios, com os olhos cruzados num estrabismo de enlevo, parecendo não pisar o chão, quase abraçados, ele soprava-lhe os cabelos castanhos com a respiração forte, ela, com o vestido de popelina azul-celeste caindo em pregas sobre os amplos quadris de mulher feita, deitava a cabeça sobre o fraque do cavalheiro, abandonando-se. O Felício botava a alma pela boca, carregando a irmã do Mapa-Múndi; não acertavam os passos, pareciam dois pistões duma peça mecânica em movimento alternado. O Manduquinha, esse, sim, divertia-se. Agarrara a menina pela cintura, e eram pulos, pinotes, saltos incríveis, patadas formidáveis querendo arrancar tijolos, uma dança desenfreada e patusca que punha tudo em rebuliço.

- É um diabinho, dissera D. Eulália, lisonjeada da preferência que rejeitara.

A palavra circulava. Era um diabinho o demônio do Manduquinha Barata!

O Chico Ferreira soprava a flauta. O Manduca sapateiro raspava com fúria a rabeca, fazendo macaquices.

A maior parte dos convidados havia chegado às portas da sala, para ver a dança. Os compassos monótonos da Varsoviana apressavam-se. O querosene dos lampiões tresandava.

Quando cessou a música por deliberação unânime da orquestra, os pares separaram-se ofegantes. As damas correram a tomar as cadeiras, tonteando, rubras, excitadas. Os cavalheiros suados, abanando-se com o lencinho, dirigiram-se às portas, com o fim de se furtarem à evidência, misturando-se com os espectadores em grupos. O Manduquinha Barata veio para o lado de Macário que a curiosidade fizera adiantar-se até à porta da sala, e, descuidosamente, se deixara ver de todos, distraído na contemplação da linha de senhoras novas, sentadas nos canapés e cadeiras. O Manduquinha, um fedelho, quis brincar com o sacristão, e gritou, do meio da sala, para chamar a atenção:

- Olá, este rato de sacristia por cá! Então, seu Macário, que faz aí que não vem tirar a sua dama? Tinha graça, saias com saias!

Os olhares apontaram para o Macário, numa corrente elétrica o riso disparou pelas bocas.

Macário quis responder com um desaforo àquele desacato, mas não valia a pena! o Manduquinha era um criançola a quem puxaria as orelhas na primeira ocasião.

Grave e digno, o sacristão afastou-se sem dizer palavra, e meteu-se pelo corredor. Um homem de sobrecasaca de brim branco, e chapéu de manilha na cabeça, passava sobraçando botijas de cerveja Bass. Era o dono da casa, o Bernardino Santana. Macário parou e cumprimentou.

- Oh, quem é você?

- Sou o Macário de Miranda Vale, sacristão da Matriz.

- Ah, meu filho me disse que havia convidado a você para espiar o baile. Que diz, hein? Está de arromba! Eu quis que tudo ficasse decente, por causa das más línguas. Tem muita cerveja, licor, vinho do Porto, chá e café. Pela madrugada há de haver chocolate. Não faça cerimônia. Eu não sou soberbo...

Macário começou um cumprimento. Não faltava ninguém, estava ali toda a gente de Silves!

- Quais, não me diga isso, retorquiu o Bernardino, são bondades que não mereço. De mais a mais falta muita gente. O diacho da pândega dos castanhais chama muito povo. Se não fossem os castanhais a casa não chegava!

- Com licença... acrescentou, seguindo o seu caminho. A orquestra dava o sinal duma contradança. Macário continuou pelo corredor até à sala de jantar, transformada em sala de palestra e de jogo. A uma mesa pequena o capitão Fonseca e o Neves Barriga jogavam o pacau, a grão de milho. A uma outra mesa, maior, jogavam o três-sete o Valadão, o Costa e Silva, o Mapa-Múndi e o Regalado, a grão de milho também. Estavam na sala, além desses, o José Antônio Pereira, o professor Aníbal e outras pessoas gradas. A um canto, solitário e sarcástico, o Chico Fidêncio rola as unhas, chupando de vez em quando o cigarro.

A sala de jantar estava cheia de fumo, havia copos de cerveja, a meio vazios, sobre as mesas. Da cozinha vinha um cheiro forte de café e de peixe frito.

- Um de rei! bradava triunfante o Neves, na ocasião em que Macário chegava. Tome lá para o seu tabaco, compadre.

Sereno e grave, o coletor respondeu:

- São coisas da sorte, felicidades de cada um. A vaza é nossa, compadre.

- Leve lá, que essa não me faz falta, acudiu generosamente o Neves. E metendo a mão no bolso traseiro da sobrecasaca tirou a caixa de couro e abriu-a, magnânimo:

- Vá lá uma pitada de amigo, compadre.

- Estou encaiporado hoje, exclamou o Mapa-Múndi, esfregando o lenço no rosto, no pescoço, nas mãos, para enxugar o suor em bica. Começou por aquela estopada do sermão, e acaba por esta infelicidade ao jogo. Macacos me comam, se eu não largo isto já.

- Tenha paciência, Guimarães, a roda anda e desanda. Não há meia hora que estamos jogando, e já você está desesperado. Tenha paciência, homem.

E o Costa e Silva baralhava as cartas, judicioso e satisfeito.

- Isto de sorte é assim mesmo, opinou o Valadão, tossindo. É como as mulheres, muda.

O Regalado aplaudiu. O Valadão tinha boas saídas! O diabo era aquela tosse, mas também porque o Valadão não deixava as xaropadas e não se tratava pela homeopatia? A homeopatia era o único sistema verdadeiro, isso estava mais que provado.

O coletor voltou-se para a mesa do três-sete, e aprovou a opinião do Regalado; ele em pessoa, era a melhor prova da excelência do sistema. Curara-se dum ar de vento pela homeopatia, depois de desenganado, mas entendia que além das doses se devia usar o Óleo de mamona.

- E o leite de maçarunduba para o peito, acrescentou o Neves intervindo. É muito bom para abertura do peito.

Para o peito, não há como o peitoral de cereja de Ayer, disse o Costa e Silva. Tenho lá na loja uma porção de caixas, é bom e barato.

- Nada de misturas! exclamou o Regalado, largando as cartas. A homeopatia só, sem mais nada! Ou bem que samos, ou bem que não samos... Quem quiser beber as xaropadas do Felício, lá se avenha, mas por mim, fiquem certos, morria de fome ou ia plantar batatas.

- O Felício é um moço honrado, protestou o Neves, sem tirar os olhos das cartas que baralhava. Conheci o pai dele, era um bom homem, e foi muito meu amigo.

E narrou, interrompendo-se a miúdo para prestar atenção ao jogo.

- Quando a filha casou com o Joaquim Feliciano, eu disse logo:

mau casamento. E acertei, infelizmente... Quando houve a história do padre José, o velho ficou tão apaixonado que nunca mais veio à vila. E também não quis mais saber da filha, mas o Felício, não, é um moço honrado.

E acrescentou:

- Cinco, seu compadre, marco cinco!

- Não digo que não, redarguiu o Regalado, voltando às cartas, mas não há de ser o filho de meu pai que há de beber as xaropadas.

- Nem eu, declarou o Mapa-Múndi, nem xaropes nem homeopatia. Médicos e boticários podem ir para as profundas, não me fazem falta. É como padres. Não, que o sermão de hoje sempre me pregou uma maçada!

- Tinha pouco latim, observou o coletor, olhando de esguelha para o Chico Fidêncio, e mendigando um aplauso.

- Tem V S.a muita razão, acudiu pressuroso o José Antônio Pereira, por entre os dentes podres. Notei também certa falta de ligação nas idéias e algumas alusões diretas a pessoas presentes.

Voltou-se também para o Chico Fidêncio provocando-o a manifestar-se.

O professor endireitou-se, cessou de roer as unhas, tirou o cigarro

e disse que, oculto na sacristia, ouvira toda a oração de padre Antônio de Morais, que gostara muito; o padre era inteligente, mas exagerava a mímica e metia medo ao povo ignorante para melhor conseguir os seus uns ocultos.

- Quais serão esses fins do senhor vigário?' perguntou o Neves, largando as cartas, num pasmo.

- Ora, o jesuitismo! respondeu o Chico Fidêncio voltando à primeira posição e riscando um fósforo para acender o cigarro.

Macário, indignado, retrocedeu pelo corredor, e achando a porta da alcova, entrou-a. O Chico Ferreira e o 'Manduca sapateiro tocavam a quadrilha do Orfeu de Offenbach. Na alcova estava a mesa com as bebidas. Era o botequim.

O Dr. Natividade bebia cerveja Bass com o professor Aníbal que viera refrescar-se. O bacharel não dançava mais. Sofrera uma desfeita, estava estomagado. Assestando a luneta para os óculos do Aníbal Brasileiro, o Natividade queixava-se amargamente da sobrinha do Neves Barriga, da Milu, que lhe havia prometido 'aquela quadrilha e, entretanto, a dera ao pelintra do Totônio Bernadino.

- Não é que eu faça empenho em dançar com estas matutinhas, explicava. Graças a Deus, lá no Recife, fartei-me de dançar com os melhores pares. Freqüentava a casa das primeiras famílias, graças a Deus. Dancei com baronesas e condessas, e graças a Deus, nunca ninguém me fez uma desfeita. Foi preciso vir a esta aldeia, para acontecer uma coisa assim. Mas é preciso que me conheçam. Eu só digo que tenho gênio!

E o Aníbal, conciliador:

- Talvez fosse esquecimento, falta de lembrança.

- Não admito, redarguiu o Dr. Natividade, crescendo para ele, como para lhe tomar satisfações, não admito esquecimentos comigo. Graças a Deus, tive educação, e sei o que são deveres de boa sociedade.

Nisto o Bernardino Santana aproximou-se, amável, sobraçando duas botijas de água de Seltz.

- Então, senhor doutor, não dança?

- Não senhor, não danço, respondeu o juiz municipal, abotoando o fraque.

- Então por quê? Ainda tão moço, já quer ser do rol dos velhos?

- Não é por isso, é porque sofri uma desfeita, e eu, graças a Deus, não preciso sofrer desfeitas.

E o Dr. Natividade assestou a luneta para o chapéu do Bernardino, e cruzou as mãos atrás das costas.

- Desfeita, exclamou o Bernardino Santana, atrapalhado com as botijas, fizeram-lhe uma desfeita? De quem foi essa patifaria, senhor doutor?

- Olhe, pergunte ao Sr. Aníbal, se quer saber, respondeu o juiz, fechando-se na dignidade do silêncio. E voltando as costas ao Bernardino, foi para a sala de jantar.

Macário foi verificar se de fato a Milu dançava aquela quadrilha com o Totônio Bernardino, mas teve o cuidado de se não expor aos olhos do Manduquinha Barata. Dançava, com requebros, muito corada, recostando a cabeça no peito do cavalheiro. O Manduquinha desta vez pilhara a filha do Valadão, e tinha um trabalho insano em a fazer dançar à sua moda, aos pulos e saltos. Muito digna, a moça resistia, entesando o corpo. O Cazuza Bernardino arrastava a D. Dinildes. O Pedrinho Sousa era par de D. Cirila. O Felício boticário carregava a menina de onze anos. Quinquim da Manuela, coitado, coubera em sorte à mulher do Costa e Silva, e, para completar o quadro, dois velhos, o tenente Pessoa e Bartolomeu de Aguiar haviam sido requisitados e dançavam com filhas do Costa e Silva.

Na ocasião em que Macário chegava, D. Eulália dizia à velha D. Basilisa, sentada ao pé dela, perto da porta:

- Agora é arrumar a trouxa. Depois de amanhã vamos embora. Seu Neves diz que é por causa dos meus xerimbabos... mas é porque ele quer mesmo!

- Havera de ser, replicou a velha. Os homens bem se importam com os xerimbabos das mulheres!

A mulher do Costa e Silva entrou na conversa.

- Nós também vamos depois de amanhã, mas é para os castanhais.

- Oh, os castanhais são outra coisa, disse D. Eulália, aquilo é um regalo em comparação com o sítio. Ao menos, lá vai muita gente.

- Eu acho que este ano ninguém fica, tornou a mulher do Costa e Silva, satisfeita da inveja que inspirava. Há de haver muita festa!

- Gran-chaine! gritou o Pedrinho Sousa.

D. Basilisa aproveitou a ausência da mulher do Costa e Silva, para consolar a amiga que não ia aos castanhais.

- Esses castanhais, disse, são a perdição de muita gente. Ainda hoje o senhor padre Antônio falou tanto deles! Queira Deus não aconteça alguma coisa aos que vão para lá.

E quando a mulher do Costa e Silva voltava, a velha abaixou a voz, sacudindo a cabeça:

- Queira Deus, queira Deus!

Macário era da opinião daquela velha. Pela manhã, padre Antônio de Morais havia provado que os castanhais eram uma perdição. Pobre da mulher do Costa e Silva, não sabia o que lhe aconteceria, se fosse aos castanhais!

A quadrilha terminava, os pares separavam-se, o Manduquinha Barata parecia procurar alguém para objeto de troça. Macário retirou-se e voltou para a alcova. O Manduquinha ali o veio encontrar, trazendo a filha do Valadão pelo braço, procurando um licor para oferecer-lhe. Macário fugiu para o corredor. O Valadão agarrara o Bernardino Santana, e, tossindo, tomava-lhe uma satisfação. Por que diabo havia convidado para o baile aquele patife do Chico Fidêncio? Numa casa séria não devia entrar um homem como aquele, que, além de tudo, vivia amasiado. Ele, Valadão, não podia perdoar ao Chico Fidêncio os desaforos que lhe dissera pelo Democrata, e ainda ultimamente aquela pouca-vergonha no desembarque ó senhor vigário. Era um homem que não respeitava coisa alguma, e descompunha a religião e até ao senhor bispo. Homens daquele teor não se convidavam para bailes.

O Bernardino, com uma bandeja cheia de copos na mão, desculpava-se:

- Foi o rapazinho que o convidou. Dá-se com ele lá da loja do Costa e Silva, e quer que ele dê a noticia no Democrata.

- É um patife, tornou o Valadão o tossindo, colérico. Fui obrigado a deixar de jogar por causa dele. Estava bem por trás de mim, rindo-se cada vez que os outros me atribuíam uma pexotada!

E cerrando os punhos, num furor:

- Olhe, seu Bernardino, eu sou incapaz de matar um carapanã, mas aquele patife... recrutava-o, se me deixassem.... E aquilo convida-se para bailes!

- Mas, Valadão...

- Não tem mas nem mês, nem peça de entremez! berrou o homem, de olhos vermelhos e boca espumante.

E gritava para ser ouvido de toda a gente:

- Um sujeito que vive amasiado com uma mulata! Quem tem filhas não mete em casa um tipo assim!

- Mas eu não tenho filhas, balbuciava o Bernardino Santana, desorientado, sem saber o que fizesse da bandeja, e implorando desculpas às pessoas que chegavam, curiosas.

Súbito, o Valadão adiantouse para a filha, numa indignação solene:

- Minha filha, vamos embora. Isto aqui não é casa!

Dum grupo surgiu a cabeça trigueira do juiz municipal, cuja luneta faiscava. Ouviu-se a sua voz seca, irritante:

- A mim fizeram-me uma desfeita, mas graças a Deus, tive educação, não estou acostumado a receber desfeitas!

Que seria, por que estava tão zangado o tenente Valadão? A filha chorava, o Quinquim da Manuela, pobrezinho! estava muito comovido. As senhoras, achando que aquele escândalo punha remate à festa, procuravam os chales, assustadas. Havia, pelos cantos, buscas ansiosas de chapéus e guarda-chuvas. Da cozinha as mulatas, as negras e os moleques afluíam, curiosos. Toda a gente estava interessada no incidente. só o Totônio e a Milu não davam fé do que se estava passando, e, a um ângulo da sala, cochichavam quase abraçados, como na polca. O dono da casa procurava acalmar o irascível amigo. Outros homens intervinham. O Valadão, duro, insistente, tossindo a arrebentar, pedia que lhe abrissem passagem, porque queria sair daquela casa.

O Cazuza Bernardino teve uma inspiração. Foi pedir aos músicos que dessem um sinal de quadrilha. A orquestra obedeceu. O Cazuza veio para o meio da sala, e, batendo palmas, gritou:

- Quadrilha, meus senhores!

O círculo que fechava o Valadão, abriu-se. Os rapazes correram para a sala. O Valadão e a filha saíram sem se despedirem. Bernardino ficou algum tempo calado, olhando para o capitão Fonseca, o Costa e Silva e para o Neves Barriga, estudando a impressão causada pelo incidente. Depois, num gesto de desenfado, explicou com franqueza:

- Ora, aquilo é o diabo da cerveja!

- É uma desgraça, lamentou o Mendes da Fonseca. Basta o primeiro copo.

- O Valadão é boa pessoa, formulou o Costa e Silva, mas não pode beber.

- E mata-se, prognosticou o Regalado.

- Lá se avenha, filosofou o Bernardino, sacudindo os ombros.

E foi dar providencias sobre o chá, fazendo voltar para a cozinha a criadagem que se apinhara à porta da sala de jantar.

A orquestra tocava a quadrilha da Bela Helena. O calor ia aumentando. Um odor forte de querosene queimado misturava-se no ar às emanações do suor, dos restos de cerveja, dos cigarros de tabaco negro, acesos, desfazendo-se numa fumaça acre, ou apagados, juncando o chão de pontas enegrecidas pelo sarro, nadando em lagos de saliva e catarro. O perfume vago de patchuli e manjerona, que vinha da sala de visitas, chocando-se ao vivo com o cheiro das bebidas deixadas nos copos ou atiradas ao chão, enjoava.

Depois do incidente do Valadão reinava um tumulto, a festa parecia mais animada. Os jogadores haviam abandonado as cartas, as velhas tinham deixado os cantos, formavam-se grupos de pé nos vãos das portas, ao meio dos aposentos, conversando mais animados, com mais liberdade. As caras tinham um brilho expansivo de suor e de licores. As próprias senhoras haviam perdido muito do acanhamento do princípio, trocavam-se caçoadas, pregavam-se peças para fazer rir, o baile perdia as cerimônias duma solenidade para se transformar em festa íntima, em que todos se conheciam, ninguém precisava guardar reservas e conveniências incômodas. Brincava-se, ria-se, diziam-se tolices. Era encantador! Mas a noite ia adiantada. Onze horas vira Macário no relógio de parede da sala de jantar. Onze horas, e ele que se deitava sempre às oito, e em ocasiões graves às nove e meia! Sentia a cabeça pesada, os olhos ardentes, a garganta seca, tanto fumara aquela noite! O fumo era o seu consolo, e sempre que estava separado do padre fumava os seus compridos e excelentes cigarros de tauari que ele mesmo arranjava. Estava com vontade de se ir embora. Não dançava, não jogava, não encontrava parceiro para a prosa, sentia-se constrangido e secretamente humilhado. Mas já agora esperaria pelo chá. Enquanto não vinha foi rondar o botequim na esperança de que lhe oferecessem um cálice de licor, que ele não se atrevia a pedir. Junto à mesa das bebidas o professor Aníbal Americano conversava com o Mapa-Múndi:

- É o que lhe digo, Guimarães, depois daquele desaforo da Aurora cristã, jurei não mais ouvir missa dita por padre Antônio. Ele hoje pilhou-me na igreja, mas foi de surpresa, e por causa do casamento do Cazuza Bernardino.

E, cuspindo longe, concertando os óculos de tartaruga, acrescentou:

- E tive de gramar quase todo o sermão.

- Eu gramei-o inteiro, queixou-se o Mapa-Múndi, pegando num copo cheio de cerveja, mas também garanto-lhe que tão cedo não me pilha. Isto aqui está muito quente. Vou com o Costa para os castanhais...

- Para os castanhais?

- P-a-pá, Santa Justa. Partimos depois de amanhã.

- Pois olhem, eu estou com vontade de os acompanhar. Que diz da idéia?

- E os meninos?

- Férias com eles, dou parte de doente. O delegado literário é o Dr. Natividade, somos íntimos.

Também estes iam para os castanhais, pensou Macário, apreensivo. E o Mapa-Múndi levaria a irmã? Então de que servira o belo sermão de padre Antônio?

Nisto o Pedrinho Sousa veio da sala do baile, e bateu no ombro do Mapa-Múndi:

- Aquilo já está escandaloso, Guimarães.

- Que é que está escandaloso?

- O Totônio com a Milu. Não se largam. Ferve o azeite, que é uma desgraça. A sala até já escorrega. Apre, assim também é demais, não acham?

Ouvia-se tocar uma valsa. Macário olhou para a sala. No espaço enquadrado no vão da porta o Totônio Bernardino e a Milu passavam, abraçados, rodopiando. Ele sério, ofegante, cheirava-lhe os cabelos. Ela, derretida, olhos fechados, recostava a bonita cabeça no peito do rapaz, e deixava-se levar por ele. Sobre os seus fortes quadris de mulher feita, o vestido de popelina azul ondulava em pregas cambiantes.

- Já está ficando indecente, murmurou D. Dinildes passando pelo braço do Felício para a sala de jantar.

Macário teve vontade de perguntar-lhe se ela não achava indecente ir para os castanhais, mas o terrível Manduquinha Barata aproximou-se, trazendo uma filha do Costa e Silva para tomar licor. O sacristão retirou-se discretamente para a sala de jantar.

Justamente, principiavam a servir o chá. Os criados traziam da cozinha as bandejas com as xícaras de chá e com os doces, os sequilhos, os pães-de-ló e as fatias-de-parida, douradas e recendendo a canela e a ovos fritos. Bernardino não se gabara. Era um baile de arromba!

Primeiro passaram as bandejas de chá, em alvas xícaras de porcelana lisa. Vieram depois os bons-bocados e os pastéis de nata em grandes pratos de louça azul, e os sequilhos espalhados no fundo da bandeja, sobre um leito de papel cor-de-rosa, recortado em tufos elegantes. Um pão-de-ló de duas libras, corado e fofo, refestelava-se comodamente numa grande salva de prata, riqueza de família, preciosa e rara, e vinha carregado por uma mulatinha de estimação, de alva camisinha rendada e cabelos cheirosos. Seguia-se o pão quente, em pratos, modesto e sólido, cheirando a manteiga derretida, que era uma consolação; e fechava o cortejo o Bernardino Santana, descoberto, com a grande calva reluzente banhada de suor, a sobrecasaca branca caindo em pregas direitas, e nas mãos, apoiada no abdome, para que fascinasse todos os olhares e provocasse todos os apetites, a rica bandeja nova, imitando charão, e contendo seis grandes pratos de fatias-de-parida, apetitosas e louras.

O Neves já estava na posse feliz duma chávena de chá, duma naca de pão-de-ló e de duas fatias douradas, e pondo toda a provisão num prato, sobre a mesa em que jogara o pacau, sorvia uma grande pitada de Paulo-Cordeiro, e dizia para o Mendes da Fonseca:

- Aqui é que eu queria viver. Isto aqui sempre é outra coisa. Há recursos, passa-se bem, goza-se. Ora fosse o Bernardino arranjar estes requintes de civilização lá no sitio do Urubus!

Fonseca, mordendo num bom-bocado, concordava em que estava tudo bem-feito. Fora a D. Cirila quem se encarregara dos doces, a pedido do Bernardino, gastara-se muito açúcar, mas ao menos o Bernardino não se envergonhava.

Bernardino passou dizendo:

- Quem, perde é o tolo do Valadão, forte besta!

As danças interromperam-se por causa do chá. As senhoras retomavam os seus lugares na sala, em linha, nas cadeiras. Os rapazes, amáveis, carregavam xícaras e tomavam as bandejas aos criados para servirem às senhoras. Os músicos, felizes do descanso, bebiam cerveja.

Macário serviu-se de dois bons-bocados, dois pastéis, uma fatia e alguns sequilhos. Não gostava de chá, guardava-se para o chocolate e cogitava no maquiavelismo com que apanharia ao Bernardino mais uma fatia-de-parida, essa coisa fina que lhe proporcionava delicias incomparáveis.

Passou uma criada, o sacristão perguntou-lhe, a meia voz, pelo chocolate.

- Tem, é depois, respondeu, sem parar, a rapariga.

Depois! teria de esperar, e já onze e meia! Paciência, já agora não ia sem tomar o chocolate que lhe prometera o Bernardino, à entrada.

Ouviu-se a voz do Cazuza Bernardino que gritava na sala:

- Quadrilha, meus senhores.

Mas o Mapa-Múndi e a irmã despediam-se, seguidos do Felício boticário que lhes rogava que ficassem, para lhe não fazer perder a quadrilha.

- Não pode ser, dizia o Mapa-Múndi, apertando a mão a toda a gente; seguimos depois de amanhã para os castanhais. É preciso descansar e preparar os arranjos.

Então, na sala de jantar, generalizou-se a conversação sobre os castanhais. Toda a gente queria ir aquele ano às praias. Chico Fidêncio, chupando o cigarro apagado, dissera que tolo seria quem não fosse à colheita das castanhas.

- Eu por mim não ia, disse o coletor, mas a pobre da D. Cirila quer por força passar o S. João nas praias, e eu desejo fazer-lhe a vontade. Depois, francamente, a coletoria mata-me. Estou cansado, preciso de algum fôlego, e bem contra a minha vontade, é provável que lá vá ter. Já mandei pedir licença.

- E quem fica na coletoria, senhor capitão? perguntou o Costa e Silva.

- O meu escrivão. É um moço de muito bons costumes em quem deposito a maior confiança. Espero que Silves não sofrerá muito com a minha falta.

E sorriu amável para o José Antônio Pereira, que, todo curvado, fechava os olhos, agradecia, comovido:

- Oh, senhor capitão, oh! senhor capitão. V. S.a confunde-me...

- É justiça, moço, atalhou o Neves.

Todos apoiaram. Era justiça e não favor, porque o José Antônio Pereira era um moço de muito bons costumes.

- Então você não vai aos castanhais, este ano, disse-lhe o Mapa-Múndi, pois olhe, tenho pena.

- Eu sim, vou, afirmou o Bernardino passando com a bandeja das suspiradas fatias. O rapazinho quer passar a lua-de-mel nas praias, e convidou-me. Há de ser muito divertido, acrescentou afastando-se.

E Macário, seguindo com os olhos a bandeja, pensava no sermão pregado aquela manhã pelo santo padre Antônio de Morais. A inconstância daquela gente esquecera, mal salda da igreja, os momentos de terror incutido pelas eloqüentes palavras do padre vigário, e, à luz dum claro dia de maio, em pleno ar, em face das águas límpidas do lago e das eternas verduras das suas margens, ouvindo o ruído alegre do canto dos passarinhos que volitavam pelos cimos das laranjeiras, perdido o receio das trevas do inferno, tivera saudades da natureza virgem dos castanhais, e sonhara com as festas costumeiras à sombra das árvores, nas lindas praias de areia.

E ali, naquele baile, estimulando-se uns aos outros, antegostando prazeres em comum, incitados pela astúcia diabólica do Chico Fidêncio, confirmavam os projetos, arrastavam os indecisos, preparando-se para a perdição da alma, de que tanto lhes falara a inspirada palavra de padre Antônio de Morais!

Felizmente no meio daqueles tresloucados um homem de juízo apareceu.

Neves Barriga, com o estômago repleto de pastéis e bons-bocados, embora suspirando, não escondeu a resolução criteriosa em que estava:

- Pois eu não vou. Não posso ir. Volto para o Urubus quanto antes. A D. Eulália, coitada, não pode estar tanto tempo separada dos seus queridos xerimbabos.

E o bom homem afastou-se sacudindo resignado a sua cabeça de carneiro manso, e espalmando na mão o grande lenço de ramagens. Mas o tratante do Chico Fidêncio, receando o prestígio da palavra do presidente da Câmara, fitou-o pelas costas com um olhar sarcástico e disse esta frase enigmática:

- Patrício de Loiola!

Macário ia tomar a palavra para secundar a opinião autorizada do Neves, quando por trás dele uma voz murmurou:

- Espere um pouco. Vou arranjar-lhe a primeira xícara de chocolate.

Era o Totônio Bernardino que trouxera da sala a Milu, derretida e rubra.

Ia arranjar-lhe uma xícara de chocolate... mas então já era possível tomar o chocolate e safar-se daquele baile que já o estava aborrecendo muito, principalmente depois da conversa sobre os castanhais. Macário seguiu o Totônio Bernardino que se dirigia para a cozinha. Na sala o Chico Ferreira e o Manduca sapateiro, já muito cansados, fraquejavam, tocando uma polca abaianada. As luzes de querosene começavam a morrer por falta de óleo. Só se esperava pelo chocolate para terminar o baile. O Cazuza Bernardino já gritara por três vezes, inutilmente:

- Polca, meus senhores!

Ao penetrar no corredor da cozinha Macário esbarrou com o Dr. Natividade, que correu para ele, armando-se da luneta:

- Vai pedir chocolate, não é? Pois não arranja!... Nesta casa tudo é assim. A mim fizeram-me uma desfeita, ouviu? Um desaforo! Graças a Deus, não me importa! Não estou acostumado a receber desfeitas, graças a Deus!

Macário quis seguir adiante, desculpando-se. O juiz municipal pegou-lhe no botão do rodaque:

- Já sabe o que foi? Ah, não sabe ainda? Foi a tal Milu, uma roceira, que me pregou uma taboca por causa do Totônio Bernardino, um criançola! Graças a Deus, eu não estou na altura de receber tabocas. No Recife, em Pernambuco, dancei com as melhores famílias, baronesas e condessas...

O Neves aproximou-se. O Dr. Natividade voltou-se para ele como de mais consideração:

- Graças a Deus, não estou acostumado a receber desfeitas.

Macário safou-se para o interior da casa. Totônio voltara já da cozinha, com uma xícara na mão, cheirando a chocolate fresco. Mas, de surpresa, em caminho, surgiu-lhe pela frente o pai, com a bandeja de fatias-de-parida. Vendo o filho com a xícara, o Bernardino Santana largou, afinal, a bandeja, colocando-a sobre o parapeito duma janela, e avançou para o namorado Totônio:

- Que diabo levas tu aí, rapazinho?

O moço acobardou-se. Era uma xícara de chocolate para a D. Milu, que lha havia pedido, por se estar sentindo muito fraca. Não tomara chá, a coitadinha!

O pai, furioso, tomou-lhe o chocolate, e deu-lhe uma descompostura. Estava bonita aquela pouca-vergonha! Só a Milu é que merecia tudo. Não se dançava senão com a Milu, arranjava-se chocolate para a Milu fora de tempo, e contra a sua ordem expressa! Pois ficasse sabendo que a Milu não beberia o chocolate.

- Mas, papai, eu prometi, balbuciou o Totônio envergonhado.

Macário, comendo discretamente as fatias-de-parida, de que se esquecera o Bernardino, achava o castigo duro.

- Não há de beber, insistia o Bernardino, muito zangado. É para lhe dar uma lição, senhor badameco, para o ensinar a não ser metido a sebo.

E raspou-se para a cozinha com o chocolate.

Macário, com a boca atulhada de fatias, consolou o Totônio.

- Aquilo passa, peça-lhe com jeito.

Mas o pai voltou da cozinha ainda muito zangado. Já dera ordem expressa para não entregarem nenhuma xícara de chocolate senão a ele próprio. Sempre queria ver quem beberia o chocolate sem sua licença!

Reparando nas fatias que deixara e no Macário ali perto, acudiu:

- O senhor já comeu uma lá na varanda, quer servir-se de outra?

O sacristão, delicadamente, com dois dedos, tirou uma fatia e mordeu-a.

- Estão deliciosas, disse.

- Pudera não, replicou o Bernardino carregando a bandeja, foi um poder de ovos e leite como nunca vi!

O Totônio, envergonhado, meteu-se num quarto, chorando. Macário voltou para a sala de jantar.

Era muito tarde, mas já agora não iria sem tomar chocolate.