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O Pão de Ouro/Capítulo I

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(Redirecionado de O pão de ouro I)

Antes de encetar a narração dos acontecimentos, que constituem o principal assunto desta história, cumpre-nos rememorar uma lenda, ou antes uma avença mítica dos primitivos e selváticos habitantes da terra americana, a qual, sem dúvida, é desconhecida da maior parte dos leitores.

Esta lenda, provavelmente ampliada e embelecida pela imaginação dos colonos portugueses, é a história da Mãe do Ouro, que passo a contar a meus leitores.

Era nos topes alterosos de uma das mais altas montanhas da América meridional.

Esses topes, por cima dos quais desdobravam-se risonhas planícies de verdor eterno e entrecortadas de córregos cristalinos, eram separados do resto da terra por despenhadeiros vertiginosos, que o pé humano em vão tentaria galgar, e eram somente acessíveis ao corvo e ao condor altivolante. E do meio dessas planícies erguia-se outra montanha coroada de enormes rochedos erguidos à prumo, como um castelo guarnecido de terrões denegridos e derrocados pelo tempo, ou como aéreo e colossal terraço, ornado de estátuas disformas, mutiladas e despedaçadas pelos raios.

Era como um jardim encantado superior à habitação dos homens e vizinho à dos anjos, todo intermeado de grutas profundas e misteriosas, de penedias de figuras caprichosas e fantásticas, formando lapas, areadas, terraços, ruínas, de veigas deliciosas alcatifadas de musgo e flores, de fontes de água viva a borbulhar, de vergéis harmoniosos a conversarem mistérios com as auras do céu.

Aí nessas alturas inacessíveis em uma gruta misteriosa morava uma fada formosíssima, filha do Sol ou de Tupã, e irmã da Aurora. Era chamada a Mãe do Ouro.

Enquanto sua irmã espargia de seu regaço flores etéreas sobre o berço do sol, e pérolas de orvalho, que refrigeram e fertilizam os campos, ela matizava os horizontes de franjas de ouro, e sacudindo pela terra o pó dourado de seus cabelos, fecundava pelas grutas dos montes os veios de imensas jazidas auríferas, e enastrava de rubis e diamantes o leito dos rios.

Ela vivia feliz em seu asilo sagrado, e passava alegremente os dias ocupada em enfeitar de áureos matizes os véus da aurora, e esparzir palhetas de seus inesgotáveis tesouros pelos caminhos do sol; ou percorria as montanhas sacudindo do seio uma chuva de ouro e pedras reluzentes.

Nenhum mortal a conhecia, nem cobiçava os seus tesouros. O ouro, os rubis, as safiras, os diamantes rolavam pelas torrentes de envolta com o cascalho sem fascinar a vista dos mortais, e serviam apenas de brinco entre as mãos das crianças, sem ter aos olhos do homem maior valor, do que as penas da arara ou do tucano, com que costumavam enfeitar o cocar ou o cinto da arazoia.

Mas ah! em uma hora malfadada a virgem depositária dos tesouros de Tupã esqueceu sua origem celeste, e deixou-se levar por uma paixão terrestre. Um dia, que ela passeava pelos vales vizinhos à sua gruta encantada, deu com os olhos em um jovem e formoso cacique, que dormia à beira de uma fonte à sombra de um pé de manacá, que balanceado pela viração entornava sobre ele uma nuvem de flores.

Levado pelo ardor da caça, e por uma audácia e agilidade incrível, o imprudente moço grimpara os alcantis medonhos, chegara aos jardins da fada, e ali adormecera oprimido de fadiga. O suor do cansaço lhe escorria pela fronte, que pousava sobre o braço recurvado; o cocar, arco e flechas jaziam-lhe ao lado sobre a relva; o sangue juvenil e vigoroso lhe transparecia por sob a tez de jambo um pouco bronzeada pelo sol nos fragueiros exercícios da caça e da guerra. Era uma linda e encantadora figura em seu aspecto selvático.

A esta visão, a fada estremeceu e sentiu desusado abalo em seu coração. Julgou que era um manitó celeste, que Tupã lhe enviava para servir de companhia em sua solidão. Deu-lhe na fronte um beijo fervente de amor, despertou-o, e o conduziu para os íntimos recessos de seus palácios cristalinos. Ali mostrou-lhe as deslumbrantes riquezas, que Tupã lhe prodigalizara; as abobadas de cristal sustentadas por colunas de pórfido e ágata, enleadas de arabescos de ouro de mirífico lavor, a safira, a esmeralda, o topázio, a ametista, encrustados no pavimento em maravilhosos mosáicos, os vasos rutilantes de ouro e pedraria cheios das mimosas e fragrantes flores, que o sol faz desabrochar, e a cheirosa rocia de seus aljofares.

Fascinado por aqueles esplendores sobrenaturais e engolfado nos gozos do amor, o moço indiano esqueceu-se de todo de sua terra e de seus irmãos, e viveu longos anos junto à fada da montanha. Esta entregue às delícias de seu novo viver esqueceu-se também completamente dos misteres, de que fora encarregada pelo pai das luzes. A Aurora, quando arrojava seu carro fulgurante pelos campos do oriente, já não os achava, como dantes, enastrados de rubis e de ouro; em vez da transparente poeira dourada, que lhe iriava os caminhos, tinha de guiá-lo à custo por entre cegas neblinas e temerosos nevoeiros, e as rosas, que espargia pelos céus, fanavam-se e despedaçavam ao sopro iroso dos tufões entre nuvens tempestuosas ao estampido dos trovões. O sol via seus raios empalidecerem e embaçar-se a sua luz rutilante.

Então Tupã indignado falou à filha descuidosa com a voz do trovão. Os raios de céu caíram em chuva sobre a montanha, que encerrava os palácios e os tesouros, que sua infeliz filha guardava para o amante em vez de com eles embelecer as obras da criação, como lhe incumbia.

Derretidas pelos raios ardentes, todas essas riquezas se embeberam pelas entranhas da terra, espargiram-se pelos veios graníticos das montanhas, pelos álveos profundos dos rios caudalosos, mesclaram-se às areias dos regatos e à argila dos morros áridos, esconderam-se em abismos insondáveis, e pelos lôbregos socavões de inacessíveis serranias. Os esplêndidos paços subterrâneos da fada calcinados pelo fogo do céu converteram-se em medonhas e escuras furnas, seus jardins em um montão de negros e disformes rochedos.

O mísero cacique arrojado nas baixas regiões donde saíra, vagou longo tempo pela terra, lastimando e procurando em vão a amante perdida para sempre e seus magníficos tesouros. Como um louco vivia a escarvar o seio das montanhas em procura dos encantados palácios do ouro, e nesta insana lida ia-se definhando e enervando de dia a dia, até que Tupã compadecido de seu longo penar, o transfigurou em uma formosa árvore, que balanceia no céu a copa engrinaldada de flores de ouro. E o truculento Ipê, que como um cacique todos os anos se enfeita de um diadema de flores amarelas, diadema efêmero e irrisório, que no outro dia o vento lhe arranca da fronte e roja pelo chão.

A fada descaída das graças de Tupã foi condenada a vagar incessantemente pelas cumeadas das álgidas serranias, e em vez de derramar como outrora pela face da criação seus deslumbrantes tesouros, foi forçada a escondê-los com avara solicitude aos olhos cobiçosos dos mortais.

Irradia pelo recosto das montanhas alterosas, pálido e macilento fantasma, sem gruta, sem palácios, sem jardins, a ninfa vagueia de país em país, de montanha em montanha, procurando todos os meios de sonegar à cobiça dos homens o luzente metal e as preciosidades que Tupã confiava à sua guarda. Mas em vão! por toda a parte a persegue a avidez insociável dos mortais; por toda a parte quebra e viola os secretos e profundos cofres, em que procura aferrolhar esses tesouros, que os homens antepunham aos frutos da terra, e às bênçãos do céu, e a que rendiam cultos maiores do que ao próprio Tupã; porque tudo com eles se comprava, — os prazeres, a abundância, o amor; — tudo a eles se sacrificava, — a virtude, e a lealdade, a honra, e o pudor.

Em vão os esconde nos píncaros vulcânicos das mais altas serras, ou os enterra em abismos vizinhos ao Averno; em vão os envolve em camadas e camadas do mais rijo granito, ou os sepulta no leito dos rios profundíssimos. Em vão! a sede insaciável dos humanos, armada de indústria e audácia, lacera o flanco das montanhas, perfura o âmago da terra, desloca o álveo dos rios, despedaça e pulveriza o duro granito, e por toda a parte procura apoderar-se dos tesouros da desditosa fada.

E cada golpe de alavanca, ou de almocafre, que retine pelos algares da montanha, ecoa doloroso em seu coração, e lhe arranca gemidos profundos, e pesarosos lamentos.

Assim nesse viver inquieto e atribulado ela expia sua fatal fraqueza, esperando a época, em que segundo as promessas de Tupã lhe será restituída a posse pacifica de seus maravilhosos palácios e de seus inesgotáveis tesouros.

— Espera, disse-lhe Tupã, a época em que os homens ocupados somente em lavrar a terra para dela tirar os frutos necessários à vida não ponham mais olhos cobiçosos em teus tesouros, e em que a virtude, a paz e a inocência voltem a habitar entre os mortais. Enquanto não chegam esses tempos, expiarás, ó filha rebelde e ingrata, os enormes crimes, que por tua leviandade os filhos do homem devorados pela sede do ouro, que imprudentemente ateaste em seu coração, vão perpetrar sobre a terra, ensopando-a de lágrimas e sangue.