O programa/VI
A segunda queda amorosa do Romualdo fê-lo desviar os olhos do capítulo feminino. As mulheres sabem que elas são como o melhor vinho de Chipre, e que os protestos de namorados não diferem dos que fazem os bêbados. Acresce que o Romualdo era levado também, e principalmente, da ambição, e que a ambição permanecia nele, como alicerce de casa derrubada. Acresce mais que o Fernandes, que pusera no Romualdo um mundo de esperanças, forcejava por levantá-lo e animá-lo a outra aventura.
— Que tem? dizia-lhe. Pois uma mulher que se casa deve agora fazer com que um homem não se case mais? Isso até nem se diz; você não deve contar a ninguém que teve semelhante idéia...
— Conto... Se conto!
— Ora essa!
— Conto, confesso, digo, proclamo, replicava o Romualdo, tirando as mãos das algibeiras das calças, e agitando-as no ar. Depois tornou a guardar as mãos, e continuou a passear de um lado para outro.
O Fernandes acendeu um cigarro, tirou duas fumaças e prosseguiu no discurso anterior. Mostrou-lhe que, afinal de contas, a culpa era do acaso; ele viu-a tarde; já ela estava de namoro com o capitão-de-fragata. Se aparece mais cedo, a vitória era dele. Não havia duvidar, que seria dele a vitória. E agora, falando franco, agora é que ele devia casar com outra, para mostrar que não lhe faltam noivas.
— Não, acrescentou o Fernandes; esse gostinho de ficar solteiro é que eu não lhe dava. Você não conhece as mulheres, Romualdo.
— Seja o que for.
Não insistiu o Fernandes; contando, de certo, que a ambição do amigo, as circunstâncias e o acaso trabalhariam melhor do que todos os seus raciocínios.
— Está bom, não falemos mais nisso, concluiu ele.
Tinha um cálculo o Romualdo: trocar os artigos do programa. Em vez de ir do casamento para o Parlamento, e de marido a ministro de Estado, resolveu proceder inversamente: primeiro seria deputado e ministro, depois casaria rico. Entre nós, dizia ele consigo, a política não exige riqueza; não é preciso muitos cabedais para ocupar um lugar na Câmara ou no Senado, ou no ministério. E, ao contrário, um ministro candidato à mão de uma viúva é provável que vença qualquer outro candidato, embora forte, embora capitão-de-fragata. Não acrescentou que no caso de um capitão-de-fragata, a vitória era matematicamente certa se ele fosse ministro da Marinha, porque uma tal reflexão exigiria espírito jovial e repousado, e o Romualdo estava deveras abatido.
Decorreram alguns meses. Em vão o Fernandes chamava a atenção do Romualdo para cem rostos de mulheres, falava-lhe de herdeiras ricas, fazendeiras viúvas; nada parecia impressionar o jovem advogado, que só cuidava agora de política. Entregara-se com alma ao jornal, freqüentava as influências parlamentares, os chefes das deputações. As esperanças políticas começaram a viçar na alma dele, com uma exuberância descomunal, e passavam à alma do Fernandes, que afinal entrara no raciocínio do amigo, e concordava em que ele casasse depois de ministro. O Romualdo vivia deslumbrado; os chefes davam-lhe sorrisos prenhes de votos, de lugares, de pastas; batiam-lhe no ombro; apertavam-lhe a mão com certo mistério.
— Antes de dois anos, tudo isto muda, dizia ele confidencialmente ao Fernandes.
— Já está mudado, acudiu o outro.
— Não achas?
— Muito mudado.
Com efeito, os políticos que freqüentavam o escritório e a casa do Romualdo diziam a este que as eleições estavam perto e que o Romualdo devia vir para a Câmara. Era uma ingratidão do partido, se não viesse. Alguns repetiam-lhe frases benévolas dos chefes; outros aceitavam jantares, por conta dos que ele tinha de dar depois de eleito. Vieram as eleições; e o Romualdo apresentou-se candidato pela corte. Aqui nasceu, aqui era conhecido, aqui devia ter a vitória ou a derrota. Os amigos afirmavam-lhe que seria a vitória, custasse o que custasse.
A campanha, na verdade, foi rude. O Romualdo teve de vencer primeiramente os competidores, as intrigas, as desconfianças, etc. Não dispondo de dinheiro, cuidou de o pedir emprestado, para certas despesas preliminares, embora poucas; e, vencida essa segunda parte da luta, entrou na terceira, que foi a dos cabos eleitorais e arranjos de votos. O Fernandes deu então a medida do que vale um amigo sincero e dedicado, um agente convencido e resoluto; fazia tudo, artigos, cópias, leitura de provas, recados, pedidos, ia de um lado para outro, suava, bufava, comia mal, dormia mal, chegou ao extremo de brigar em plena rua com um agente do candidato adverso, que lhe fez uma contusão na face.
Veio o dia da eleição. Nos três dias anteriores, a luta assumira proporções hercúleas. Mil notícias nasciam e morriam dentro de uma hora. Eram capangas vendidos, cabos paroquiais suspeitos de traição, cédulas roubadas, ou extraviadas: era o diabo. A noite da véspera foi terrível de ansiedade. Nem o Romualdo nem o Fernandes puderam conciliar o sono antes das três horas da manhã; e, ainda assim, o Romualdo acordou três ou quatro vezes, no meio das peripécias de um sonho delicioso. Ele via-se eleito, orando na Câmara, propondo uma moção de desconfiança, triunfando, chamado pelo novo presidente do Conselho a ocupar a pasta da Marinha. Ministro, fez uma brilhante figura; muitos o louvavam, outros muitos o mordiam, complemento necessário à vida pública. Subitamente, aparece-lhe uma viúva bela e rica, pretendida por um capitão-de-fragata; ele manda o capitão-de-fragata para as Antilhas, dentro de vinte e quatro horas, e casa com a viúva. Nisto acordou; eram sete horas.
— Vamos à luta, disse ele ao Fernandes.
Saíram para a luta eleitoral. No meio do caminho, o Romualdo teve uma reminiscência de Bonaparte, e disse ao amigo: “Fernandes, é o sol de Austerlitz!” Pobre Romualdo, era o sol de Waterloo.
— Ladroeira! bradou o Fernandes. Houve ladroeira de votos! Eu vi o miolo de algumas cédulas.
— Mas por que não reclamaste na ocasião? disse Romualdo.
— Supus que era da nossa gente, confessou o Fernandes mudando de tom.
Com miolo ou sem miolo, a verdade é que o pão eleitoral passou à boca do adversário, que deixou o Romualdo em jejum. O desastre abateu-o muito; começava a ficar cansado da luta. Era um simples advogado sem causas. De todo o programa da adolescência, nenhum artigo se podia dizer cumprido, ou em caminho de o ser. Tudo lhe fugia, ou por culpa dele, ou por culpa das circunstâncias.
A tristeza do Romualdo foi complicada pelo desânimo do Fernandes, que começava a descrer da estrela de César, e a arrepender-se de ter trocado de emprego. Ele dizia muitas vezes ao amigo, que a moleza era má qualidade, e que o foro começava a aborrecê-lo; duas afirmações, à primeira vista, incoerentes, mas que se ajustavam neste pensamento implícito: — Você nunca há de ser coisa nenhuma, e eu não estou para aturá-lo.
Com efeito, daí a alguns meses, o Fernandes meteu-se em não sei que empresa, e retirou-se para Curitiba. O Romualdo ficou só. Tentou alguns casamentos que, por um ou outro motivo, falharam; e tornou à imprensa política, em que criou, com poucos meses, dívidas e inimigos. Deixou a imprensa, e foi para a roça. Disseram-lhe que aí podia fazer alguma coisa. De fato, alguma coisa o procurou, e ele não foi mal visto; mas, meteu-se na política local, e perdeu-se. Gastou cinco anos inutilmente; pior do que inutilmente, com prejuízo. Mudou de localidade; e tendo a experiência da primeira, pôde viver algum tempo, e com certa mediania. Entretanto, casou; a senhora não era opulenta, como ele inserira no programa, mas era fecunda; ao cabo de cinco anos, tinha o Romualdo seis filhos. Seis filhos não se educam nem se sustentam com seis vinténs. As necessidades do Romualdo cresceram; os recursos, naturalmente, diminuíram. Os anos avizinhavam-se.
“Onde os meus sonhos? onde o meu programa?” dizia ele consigo, às vezes.
As saudades vinham, principalmente, nas ocasiões de grandes crises políticas no país, ou quando chegavam as notícias parlamentares da corte. Era então que ele remontava até à adolescência, aos planos de Bonaparte rapaz, feitos por ele e não realizados nunca. Sim, criar na mente um império, e governar um escritório modesto de poucas causas... Mas isso mesmo foi amortecendo com os anos. Os anos, com o seu grande peso no espírito do Romualdo, cercearam-lhe a compreensão das ambições enormes; e o espetáculo das lutas locais acanhou-lhe o horizonte. Já não lutava, deixara a política: era simples advogado. Só o que fazia era votar com o governo, abstraindo do pessoal político dominante, e abraçando somente a idéia superior do poder. Não poupou alguns desgostos, é verdade, porque nem toda a vila chegava a entender a distinção; mas, enfim, não se deixou levar de paixões, e isso bastava a afugentar uma porção de males.
No meio de tudo, os filhos eram a melhor das compensações. Ele amava-os a todos igualmente com uma queda particular ao mais velho, menino esperto, e à última, menina graciosíssima. A mãe criara-os a todos e estava disposta a criar o que havia de vir, e contava cinco meses de gestação.
— Seja o que for, dizia o Romualdo à mulher; Deus nos há de ajudar.
Dois pequenos morreram-lhe de sarampão; o último nasceu morto. Ficou reduzido a quatro filhos. Já então ia em quarenta e cinco anos, estava todo grisalho, fisionomia cansada; felizmente, gozava saúde, e ia trabalhando. Tinha dívidas, é verdade, mas pagava-as, restringindo certa ordem de necessidades. Aos cinqüenta anos estava alquebrado; educava os filhos; ele mesmo ensinara-lhes as primeiras letras.
Vinha às vezes à corte e demorava-se pouco. Nos primeiros tempos, mirava-a com pesar, com saudades, com uma certa esperança de melhora. O programa reluzia-lhe aos olhos. Não podia passar pela frente da casa onde tivera escritório, sem apertar-se-lhe o coração e sentir uns ímpetos de mocidade. A Rua do Ouvidor, as lojas elegantes, tudo lhe dava ares do outro tempo, e emprestavam-lhe alguma energia, que ele levava para a roça. E então nos primeiros tempos, trabalhava com uma lamparina de esperança no coração. Mas o azeite era pouco, e a lamparina apagava-se depressa. Isso mesmo cessou com o tempo. Já vinha à corte, fazia o que tinha de fazer, e voltava, frio, indiferente, resignado.
Um dia, tinha ele cinqüenta e três anos, os cabelos brancos, o rosto encarquilhado, vindo à corte com a mulher, encontrou na rua um homem que lhe pareceu o Fernandes. Estava avelhantado, é certo; mas a cara não podia ser de outro. O que menos se parecia com ele era o resto da pessoa, a sobrecasaca esmerada, o botim de verniz, a camisa dura com um botão de diamante ao peito.
— Querem ver? é o Romualdo! disse ele.
— Como estás, Fernandes?
— Bem; e tu, que andas fazendo?
— Moro fora; advogado da roça. Tu és naturalmente banqueiro...
Fernandes sorriu lisonjeado. Levou-o a jantar, e explicou-lhe que se metera em empresa lucrativa, e fora abençoado pela sorte. Estava bem. Morava fora, no Paraná. Veio à corte ver se podia arranjar uma comenda. Tinha um hábito; mas tanta gente lhe dava o título de comendador, que não havia remédio senão fazer do dito certo.
— Ora o Romualdo!
— Ora o Fernandes!
— Estamos velhos, meu caro.
— Culpa dos anos, respondeu tristemente o Romualdo.
Dias depois o Romualdo voltou à roça, oferecendo a casa ao velho amigo. Este ofereceu-lhe também os seus préstimos em Curitiba. De caminho, o Romualdo recordava, comparava e refletia.
— No entanto, ele não fez programa, dizia amargamente. E depois:
— Foi talvez o programa que me fez mal; se não pretendesse tanto...
Mas achou os filhos à porta da casa; viu-os correr a abraçá-lo e à mãe, sentiu os olhos úmidos, e contentou-se com o que lhe coubera. E, então, comparando ainda uma vez os sonhos e a realidade, lembrou-lhe Schiller, que lera vinte e cinco anos antes, e repetiu com ele: “Também eu nasci na Arcádia...” A mulher, não entendendo a frase, perguntou-lhe se queria alguma coisa. Ele respondeu-lhe: — A tua alegria e uma xícara de café.