O que mais dói na vida
O QUE MAIS DÓE NA VIDA.
I cannot but remember such things were,
And were most dear to me.
Shakespeare.
O que mais dóe na vida não é ver-se
Mal pago um beneficio,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
Que as devera beijar!
Não! o que mais dóe não é do mundo
A sangrenta calumnia,
Nem ver como s’infama a acção mais nobre,
Os motivos mais justos,
Nem como se deslustra o melhor feito,
A mais alta façanha!
Não! o que mais dóe não é sentir-se
As mãos d’um ente amado
Nos espasmos da morte resfriadas,
E os olhos que se turvão,
E os membros que entorpecem pouco e pouco,
E um rosto que descora!
Não! não é ouvir d’aquelles labios,
Doces, tristes, compassivas,
Sobre o funereo leito soluçadas
As palavras amigas,
Que tanto custa ouvir, que lembrão tanto,
Que não s’esquecem nunca!
Não! não são as queixas amargadas
No triumphar da morte,
Que, se se apaga a luz da vida escaça,
Mais viva a luz rutila;
Luz da fé que não morre, luz que espanca
As trevas do sepulchro.
O que dóe, mas de dor que não tem cura,
O que afflige, o que mata,
Mas de afflicção cruel, de morte dura,
É morrermos em vida
No peito da mulher que idolatramos,
No coração do amigo!
Amizade e amor — laço de flores,
Que prende um breve instante
O ligeiro batel á curva margem
Da terra hospitaleira;
Com tanto amor se enastra, e tão depressa,
E tão facil se rompe!
Á mais ligeira ondulação dos mares
Ao mais ligeiro sopro
Da viração — destranção-se as grinaldas,
O baixel se afasta.
Veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!
Talvez permitte Deos que tão depressa
Estes laços se rompão,
Por que nos peze o mundo, e os seus enganos
Mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!