O que são as moças/I
Diz-se muita coisa feroz a respeito da amizade das mulheres. Ora, este conto tem por objeto a amizade de duas mulheres, tão firme, tão profunda, tão verdadeira, que as famílias respectivas, para melhor caracterizá-la, davam às duas a designação de Orestes e Pílades... de balão. Já se usava balão no tempo deste conto; isto é, as mulheres que haviam sido belas desde Eva até dez anos atrás sem o auxílio da crinolina, imaginaram que sem a crinolina já não podiam agradar.
Se outras razões não houvesse para suprimir a crinolina bastava a simples comparação entre... Mas não, leitoras, deste modo interrompo o romance e deito já em vosso espírito um germe de aversão pelo singelo escritor.
Tenho, pois, aqui a história de duas mulheres amigas e unidas como carne e unha. Razões de simpatia e de convivência longa trouxeram esta amizade, que fazia a felicidade das famílias e a admiração de toda a gente. Uma chamava-se Júlia e a outra Teresa. Esta tinha cabelos louros e era clara; aquela tinha-os castanhos e era morena. Eram estas as diferenças; no mais, igualmente belas e igualmente vestidas. Vestidas, sim, porque quando não estavam juntas, a primeira que acordava mandava perguntar à outra que vestido pretendia trajar naquele dia, e era assim que ambas sempre andavam vestidas do mesmo modo.
Imagine-se depois o resto. Nenhuma delas ia ao teatro, ao baile, ao passeio, sem a outra. À mesa de algum jantar, fosse ou não de cerimônia, o que esta comia, comia aquela, às vezes sem consulta, por simples inspiração.
Esta conformidade, tão ostensiva como era, não alterava o fundo da amizade, como acontece geralmente. Eram verdadeiramente amigas. Quando uma adoecia, a outra não adoecia, como devia ser, mas isto pela simples razão de que a doente não recebia um caldo que não fosse das mãos da outra. Talvez que esta simples circunstância influísse na cura.
Ambas contavam a mesma idade, com diferença de dias. Tinham vinte anos.
Já estou a ouvir uma pergunta da parte das leitoras, pergunta que naturalmente dará mais interesse ao meu conto, pela simples razão de que não responderei a ela.
A pergunta é esta. Aquelas duas almas, tão irmãs, tão conformes, namoravam acaso o mesmo indivíduo? A pergunta é natural e lógica, adivinho mesmo os terrores a que pode dar lugar o desenvolvimento dela; mas nada disso me demove do propósito de deixá-la sem resposta.
O mais que posso dizer é que até o momento em que a nossa história começa o coração de ambas não havia ainda palpitado por amor, coisa rara nos vinte anos, idade em que a maioria das mulheres já conserva vinte maços de cartas, correspondentes a outros tantos namorados inconstantes ou infelizes. Quero ao menos dotar as minhas heroínas destas duas singularidades.
Teresa é filha de um proprietário; Júlia é filha de um empregado público de ordem superior. Tinham as mães vivas e eram filhas únicas: não importa saber mais nada.
Teresa morava em Catumbi. Júlia nos Cajueiros. Calculem daqui a maçada que levava o moleque encarregado de ir dos Cajueiros ao Catumbi ou vice-versa para saber de que maneira se vestiam as duas amigas, que, como disse, até nisto queriam manter a mais perfeita conformidade!
Estamos no mês de junho. Faz algum frio. Júlia, retirada para o seu gabinete de trabalho, ocupa-se em terminar um bordado que destina mandar a Teresa. Tem a porta e janela fechadas por causa do frio. Trabalha com atividade para acabar o bordado naquele mesmo dia. Mas alguém vem interrompê-la: é uma mulatinha de dez anos, cria de casa, que acaba de receber uma carta mandada por Teresa.
Júlia abre a carta e lê o seguinte:
Minha querida Júlia. — talvez esta noite lá vá. Tenho coisas muito importantes a contar-te. Que romance, minha amiga! É para duas horas, senão mais. Prepara-te. Até logo! — Tua do coração, Teresa.
Júlia leu a carta, releu-a, e murmurou:
— Que singularidade!
Depois, escreveu as seguintes linhas em resposta a Teresa:
Vem, minha querida. Se não viesses ia eu! Há muito que não te vejo e quero ouvir-te e falar-te. Com que ouvidos te hei de ouvir, e com que palavras te hei de falar. Nem cinco horas. O melhor é vires dormir cá. — Tua Júlia.
O leitor compreende facilmente que as coisas muito importantes de que falava Teresa não seriam decerto nem a alça de fundos, nem a mudança de ministério, nem mesmo a criação de bancos. Aos vinte anos só há um banco: o coração; só há um ministério: o amor. As firmezas e as infidelidades são a alça e a baixa de fundos.
Daqui concebe o leitor, que é perspicaz, o seguinte: — o negócio importante de Teresa é algum amor.
E dizendo isto o leitor prepara-se para ver despontar no horizonte daquele coração virgem a primeira alva de um sentimento puro e ardente. Não serei eu que lhe impeça o prazer, mas só lho consentirei nos posteriores capítulos; neste não. Dir-lhe-ei somente, para melhor orientá-lo, que a visita prometida por Teresa não teve lugar por causa de visitas inesperadas que foram à casa dela. A moça arrepelou-se, mas não era possível vencer aquele obstáculo. Vingou-se porém; não deu palavra durante a noite e deitou-se mais cedo que de costume.