O rabequista
Em tempos muito remotos os habitantes duma grande cidade levantaram uma igreja magnífica a Santa Cecília, padroeira dos músicos.
As rosas mais vermelhas e os lírios mais cândidos enfeitavam o altar. O vestido da santa era de filigrana de prata e os sapatinhos eram de oiro, feitos pelo melhor ourives que havia na cidade. A capela estava constantemente cheia de peregrinos e devotos. Uma vez foi lá em romaria um pobre rabequista, pálido, magro, escaveirado. Como a jornada tinha sido muito longa, estava cansado, e já no seu alforge não havia pão nem dinheiro no bolso para o comprar.
Assim que entrou na capela, começou a tocar na sua rabeca com tal suavidade, com tanta expressão, que a santa ficou enternecida ao vê-lo tão pobre e ao escutar aquela música deliciosa. Quando terminou, Santa Cecília abaixou-se, descalçou um dos seus ricos sapatos de ouro, e deu-o ao pobre músico, que tonto de alegria, dançando, cantando, chorando, correu à loja dum ourives para lho vender. O ourives, reconhecendo o sapato da santa, prendeu o pobre rabequista e levou-o à presença do juiz. Instauraram-lhe processo, julgaram-no, e foi condenado à morte.
Chegara o dia da execução. Os sinos dobravam lastimosamente, e o cortejo pôs-se em marcha ao som dos cânticos dos frades, que ainda assim não chegavam a dominar os sons da rabeca do condenado, que pedira, como última graça, o deixarem-lhe tocar na sua rabeca até ao último momento. O cortejo chegou defronte da capela da santa, e quando pararam suplicou o triste desgraçado, que o levassem lá dentro para tocar a sua derradeira melodia.
Os padres e os chefes da escolta consentiram, e o rabequista entrou, ajoelhou aos pés da santa, e debulhado em lágrimas começou a tocar. Então o povo, maravilhado e aterrado, viu Santa Cecília curvar-se de novo, descalçar o outro sapato e metê-lo nas mãos do infeliz músico. À vista deste milagre, todos os assistentes, levaram em triunfo o rabequista, coroaram-no de flores, e os magistrados vieram solenemente prestar-lhe as mais honrosas homenagens.