O rei cidadão

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O Imperador reina, governa,
e administra, tal é o nosso direi-
to publico, consagrado na consti-
tuição.
(Visconde de Itaborahy.—Discursos).



E’ o direito cousa alpendourada,
Que põe-nos a cabeça atordoada.
O principio, a dootrina, a conclusão
Nas ideias produzem turbação.
Acertar eu pretendo a todo instante;
Mas sinto o meu bestunto vacillante;
Si na these aprofundo, e bato á fronte
Todo o Rei me parece um mastodonte !

Pelo que já vou crendo no rifão
—Que o Rei da mixta fórma é velhacão.

No tempo antigo o Rei obrava só;
De chanfalho na mão cortava o nó;
E os ministros calados como escudos,
Eram todos do Rei, creados-mudos.
Hôje em dia, porém, mudou-se a scena;
Quebrou-se o ferreo guante, voga a penna;
A penna e a palavra; a lingua lucta,
Soberana domina a força bruta.
O Rei não obra só; pois, na linguagem,
Obra mais do que o Rei a vassalagem.
—Reina o Rei, não governa—é o problema;
—Mas, si reina, governa: eis o dillema!
—Não só reina, governa e administra—
E’ suprema doctrina monarchista.

De outro ponto o ministro não quer meias,
Quer o Rei regulado, um Rei de peias;
E antólha-se—Penelope do dia,
Capaz de refazer a monarchia:
Um Rei feroz não quer, nem Rei tyranno,
Mas um Rei cidadão—republicano !

Clamam outros,—que o Rei de gorro phrygio
O converso não é de São Remigio;
Que monarcha è das turbas—popular,
Monarcha é de entremez, Rei de bazar;
Um monarcha de pilio, sem corôa,
Um Rei sem massa-pão, um Bei atôa!
E, por fim distinguindo ou misturando,
Todos vão no Thesouro manobrando.

Na practica tambem reina a balburdia,
A mania do mando, a mais estúrdia.
O povo presta o voto nos comicios,
Ou aluga o mandato aos seus Phenicios

Governa ao Parlamento o Ministerio;
Governa á opinião o Presbyterio;
Na provincia governa o Presidente,
O Escriba, o Meirinho, toda a gente;
Governa o mundo velho, o mundo novo,
Um ha que não governa, é o bom povo !...

Mas si este não governa a culpa é sua;
Quem faz ricos palacios, e na rua,
Sem roupa, sem chapéo, de bola ao sol,
Faz papel de lanterna de pharol,
Deve a morte pedir ao Deos clemente,
E ao demonio que o leve de repente.

N’outros tempos o Hei de espada á cinta
A golpes de frambão fazia a finta,
E as leis dictava a tiros de trabuco ;
Mas agora um Paranhos, um Nabuco
São as peças do Rei, do Rei prudente,
Que por taes vias, manda legalmente
A guerra, a peste, a fome, os privilegios,
Romanas decretaes—os sacrilegios,
Os seus golpes de Estado—estellionatos,
E, para o mal curar, os baronatos...

Tudo isto é doctrina democratica,
Que da gente nos vem aristocratica;
E' sciencia moderna do Constante,
Homem recto, sizudo, não tractante,
Consummado jurista de chibança,
Jurista de cabeça, e larga pança:
E’ o direito, pois, cousa de arromba,
Que aos pensadores faz murchar a tromba.

Chamam parvos—que o povo é soberano.
Que não supporta em si nenhum tyranno,
Que todos os poderes lhe pertencem,
Que os Reis, e que os Ministros lhe obedecem

Que as urnas são de luz fóco invencivel,
Que essa luz offuscar não é possivel,
Que é luz da liberdade, radiante,
Que verbera nas faces do Atlante,
A luz que faz premer as tyrannias,
A luz que ha de abrazar as monarchias ...
Isso foi na Beócia, n’outra liça,
Onde os cães se amarravam com linguiça.
Hoje em dia si o Rei não manda nada,
E’ porque lhe convem tal mascarada;
Faz de tôlo, e mais tôlo é quem o crê,
Que o dôlo na cilada não prevê:
—“Quem se fia em cachorro que não late
"Na contenda se encontra sem rebate.,,—

Isto posto, concluo, sem detença,
N'este cazo lavrando esta sentença:
—O perfeito monarcha é absoluto,
Obrando sempre ás claras, como bruto;
Porque a fera da hyrcania conhecida
Transforma a gente incauta em precavida;
E, segura, só fere impunemente,
Emboscada nas margens, a serpente.

(Publicada no n. 6 do Polichinello, de 21 de Maio de 1876)