O rei dos caiporas
Os acontecimentos humanos são regidos por um destino cego e caprichoso? Há estrelas propícias e estrelas funestas? Tem fundamento a crença popular de que certas criaturas são felizes porque choraram no ventre materno, e outras desgraçadas porque não choraram nem riram?
Questão é esta que não me atrevo a deslindar. A filosofia diz que os homens dependem de si; o vulgo aponta mil casos em que todos os esforços de um homem vão esbarrar diante de uma força invisível que o não deixa dar um passo adiante. A filosofia é uma boa senhora, e o vulgo é um sujeito prático; seria parcialidade inclinar-me a qualquer deles. Atento-me a ambos.
O que vou contar alude a esta questão de fatalidade e destino. O vulgo inventou uma palavra para indicar a fatalidade de um homem; chama-lhe Caiporismo. Os dicionários ainda não trazem o termo, mas ele corre já pelas salas e ruas e adquiriu direito de cidade.
João das Mercês era o tipo do homem caipora. O destino com todas as suas legiões de auxiliares tinha tomado a pessoa de João das Mercês por alvo de seus tiros. João das Mercês se caísse de costas tinha toda a certeza de quebrar o nariz.
Choveram-lhe desde o berço as contrariedades. Entrou no mundo com o pé esquerdo. É mister ler esta expressão com a sua significação literal e real. A mãe de João das Mercês não resistiu aos trabalhos cirúrgicos e faleceu horas depois de vir à luz o filho.
Foi-se buscar à pressa uma ama. Encontrou-se ao cabo de algumas horas uma preta que alimentou o pequeno durante cinco dias, e morreu de erisipela em um joelho. A segunda ama era uma mulher livre que tinha a mania de jogar na loteria, e que ao fim de um mês tirou a sorte grande: saiu da casa para ir abrir uma loja de costuras. A terceira entrou a amar o irmão mais velho do pequeno, com violência tal, que o pai julgou acertado mandá-la embora. Veio quarta ama que era dorminhoca e deixava o pequeno berrar toda a santa noite; a quinta ama era respondona; a sexta dividia os afetos entre o menino e um permanente; a sétima foi aturada até o fim do tempo da amamentação, a despeito de uma voz de soprano que irritava os nervos do dono da casa, cantando modinhas do Norte todo o santíssimo dia.
Parece que esta variedade de leite e de amas influiu poderosamente em João das Mercês. Logo nos primeiros anos verificou-se nele uma tendência pronunciada para o sono, influxo da quarta ama. Aos cinco anos nada o alegrava mais que ver passar a tropa na rua, gosto que lhe ficou naturalmente do leite que bebeu à namorada do permanente. Aos sete anos cantava sofrivelmente, aos oito teve uma erisipela, aos doze furtou ao pai cinco mil-réis para comprar um quarto de loteria; aos quinze começou a namorar uma prima e aos dezesseis foi posto fora de casa por seus atrevimentos.
Aqui temos nós João das Mercês na rua, com dezesseis anos, sem vintém na algibeira, nem pouso certo. Felizmente a prima que ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das Mercês e haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que este aplicara no filho. João encaminhou-se para lá.
— Meu pai deitou-me fora de casa, disse ele a D. Angélica; venho ver se me dão pouso e mesa, porque não tenho outro recurso.
— Fica João, respondeu a senhora dona Angélica; fizeste bem em te lembrares que ainda tens uma tia; aqui não te há de faltar nada, ao menos enquanto eu e o Gaspar vivermos.
Marianinha apareceu na sala e soube das desgraças do jovem primo. Ao mesmo tempo teve notícia de que ele ia morar lá. Marianinha, que era o tipo da inocência, bateu palmas e apertou a mão do primo, com uma efusão tal que não escapou à perspicácia da senhora dona Angélica.
D. Angélica tinha muitas razões para patrocinar os amores da filha e do sobrinho. Bem sabia ela que João das Mercês não tinha herança nem emprego; mas em compensação Marianinha tinha uma perna mais curta que a outra. Arranjado o rapaz, bem se lhe podia dar a pequena e tudo ficava em casa.
Gaspar aprovou todas as decisões da mulher, com tanta maior benevolência, quanto que, se as não aprovasse, seria a mesma coisa. Durante vinte anos de casamento, não constava que Gaspar tivesse jamais iniciado alguma coisa em casa, nem sequer desaprovado a mulher. D. Angélica teve sempre o comando do exército doméstico, e devo acrescentar com a fidelidade de um romancista sincero que D. Angélica exercia esse comando com uma severidade digna de um general.
A boa velha era caprichosa; o marido era o tipo da obediência. Um dia acordou D. Angélica com a idéia de que o esposo devia usar suíças. Gaspar, que trazia a barba toda, desde que ela achou que era a única moda respeitável, ia ao barbeiro e punha abaixo metade do pêlo. Dois meses depois, Angélica adotava o sistema dos bigodes, por se ter namorado de um retrato de Napoleão III. O marido voltava para casa com uma faixa de soldado francês. Suspeitava-se que o corte das calças inexplicáveis de Gaspar era produção de D. Angélica.
Aqui temos, em duas palavras, a nova família de João das Mercês. Sabendo com que amor o tratavam, o nosso João imaginou que ia levar uma vida regalada. Infelizmente foi ilusão que durou pouco. D. Angélica disse um dia à mesa que era preciso arranjar algum emprego para o sobrinho. Gaspar não se fez esperar. Foi dali a um cavalheiro com que andara na escola e que ocupava então o lugar de ministro da Guerra. Pediu-lhe um emprego. Gaspar foi notável durante toda a sua vida pelo aferro com que sempre acompanhara o ministério atual. Obteve o emprego.
João das Mercês obedeceu à intimação da sua tia e foi ocupar o lugar no Arsenal de Guerra, tendo obtido antes consentimento do pai.
Marianinha amava o primo, com toda a força de seus quinze anos. Era uma rapariga assaz bonita, assaz faceira, dotada de um excelente coração. João das Mercês, que era estouvado e mal educado, não deixava de ter igualmente um coração digno de apreço. Amavam-se estas duas criaturas com o aferro de um primeiro amor. D. Angélica alimentava esta chama que, segundo ela, devia ser legitimada na igreja.
João das Mercês também nutria essas esperanças; e tratava de as comunicar à prima.
— Quando formos casados, dizia ele, havemos de ser felizes.
— Casados?
— Sim.
— Quando há de ser?
— Um dia, quando eu tiver mais idade.
— Ah! se fosse já!...
Gaspar ouviu um dia esta conversa, e não se pôde ter de furor.
— Casar! exclamou ele; pois vocês já falam em casar? Onde é que se viu isto? Que diria tua mãe, quando souber que já a minha filha fala em casamento? E tu, meu pirralho, que idéias andas metendo na cabeça de tua prima? Ora esperem!
Marianinha tremia; João murmurava uma resposta ao tio, quando este chegando-se à porta gritou para dentro:
— Oh! senhora dona Angélica!
— Que temos? gritou de dentro a esposa de Gaspar.
— Queira vir ate cá, respondeu o marido com voz macia.
— Não me faltava mais nada! venha cá você.
Gaspar fez um gesto de ameaça aos pequenos e foi ter com a mulher a que expôs o que acabava de ouvir.
— E que tem você com isso? disse-lhe a mulher. Se os pequenos gostam um do outro, fazem muito bem; e eu até estimo isso, porque já andava com idéias de os unir. Você veio atrapalhar tudo; ora vai, vai tranqüilizar os pequenos.
Gaspar engoliu dificilmente a pílula. Atravessou o corredor como se passasse pelas forcas caudinas; e voltou à sala onde os namorados tremiam pelo desfecho da cena.
— O amor, meus filhos, disse ele, é uma coisa santa, se vocês se amam com seriedade, sou o primeiro a aprovar esse sentimento que nos eleva aos nossos próprios olhos; o que eu combato, e que todos os bons pais devem combater, é o namoro sem fim, o passatempo indigno de jovens bem formados. Quando eu e a respeitável D. Angélica (aqui levantou muito a voz) nos amamos foi...
— Deixe-se de estar contando essas coisas aos pequenos, clamou de dentro a senhora dona Angélica.
— Foi seriamente, continuou Gaspar em voz baixa.
Tudo favorecia os amores de João das Mercês; mas ele não contava com o destino.
André das Mercês, pai do nosso João, arrependeu-se um dia de ter posto o filho fora de casa, e foi ter com a irmã para obter a volta de João das Mercês. D. Angélica opôs-se vivamente à saída do sobrinho. Disse francamente ao irmão que o seu projeto era insensato; que, já que tinha praticado um erro, devia agüentar com todas as conseqüências dele.
André era tão esturrado como a irmã; respondeu-lhe rispidamente; ela insistiu; insistiu; e depois de uma longa discussão em que ambos mostraram toda a solidez da respectiva língua, saiu André disposto a proceder violentamente.
Em caminho refletiu que não era conveniente dar um escândalo, e que podia alcançar tudo por bons modos.
— Talvez ela hoje estivesse de mau humor, pensou ele.
Encontrou o cunhado e expôs-lhe a questão.
— Meu amigo, disse-lhe Gaspar, eu aprovo o procedimento de minha mulher, sem deixar de aprovar as suas louváveis intenções...
— Louváveis, tem razão, acudiu André; o que eu quero é receber meu filho em casa. Assiste-me o direito...
— Não contesto.
— A mana está teimosa; mas se você intervier, pode ser que eu consiga alguma coisa...
— Acha então que eu...
— Sem dúvida, venha comigo.
— Vamos. Minha mulher atende muito ao que eu digo. Com duas palavras minhas estou que arranjarei tudo. O caso é que o senhor não estrague tudo com as suas insistências... Deixe-me falar só.
— Estou por tudo; eu não desejo brigar com ela.
— Está visto. O que se quer é fazer-lhe ouvir a razão. Sabe o que são senhoras; caprichosas, intolerantes; mas deixe-me, eu farei tudo... Espere-me aqui um bocadinho, que eu vou ali à esquina comprar rapé, que tenho a caixa vazia.
— Eu vou também.
— Não; deixe-me ir só; o homem não gosta de vender rapé à vista de gente. São três minutos.
Gaspar voltou à esquina e meteu-se em um corredor. André, depois de passear perto de um quarto de hora, foi à esquina e perguntou no armarinho pelo cunhado.
— Aqui só veio um preto comprar uma vela de cera, respondeu o caixeiro.
André ficou furioso, mas compreendeu tudo. Sabia que a irmã dominava o marido, mas não calculava que chegasse a tanto.
Resolveu, portanto, fazer as coisas por si.
No dia seguinte apareceu em casa de Angélica (não ouso dizer em casa de Gaspar) e de novo insistiu na entrega do pequeno; a missão não teve nenhum efeito. André resolveu ir esperar à porta do Arsenal de Guerra que o pequeno saísse e deitar-lhe a mão em cima.
João das Mercês não escapou ao laço.
Nesse mesmo dia foi morar para casa do pai com ordem de não sair nem para o emprego nem para casa da tia.
Imaginem o furor de D. Angélica e a dor de Marianinha. Gaspar fez cem projetos de vingança, sem que a mulher lhe aceitasse nenhum.
Separado da jovem namorada, João das Mercês ficou entregue ao mais profundo desespero. Correram os meses sem que se avistassem os dois. Ao cabo de um ano, André arranjou para o filho um emprego, e foi a primeira vez que o mísero pôde pisar a rua. Seu primeiro cuidado foi ir à casa da tia.
Achou-se na sala toda a família e mais um rapaz de casaca e luvas brancas. Marianinha empalideceu um pouco, mas logo lhe passou essa manifestação de remorso. Remorso digo, porque o sujeito de luvas brancas e casaca, como o leitor há de ter percebido, vinha pedir a moça em casamento.
D. Angélica acabava um discurso acerca dos deveres do casamento e do amor das mães aos filhos, discurso que Gaspar ouvia com aprovação de cabeça, e o noivo com abrimentos de boca.
João das Mercês não resistiu à dor. Saiu furioso acusando os céus e a terra das suas desgraças. Complicaram-se estas com a morte do pai. João das Mercês ficou no mundo sozinho. Era preciso trabalhar; o rapaz entrou a trabalhar como um mouro.
Houve entretanto não sei que pretendente ao lugar dele; parece que o pretendente tinha jus ao lugar, porque um dia de manhã o chefe da repartição mandou chamar João das Mercês e deu-lhe a triste notícia de que estava demitido.
Nessa triste posição esteve João das Mercês uns quinze dias que foi quanto lhe durou o resto do ordenado. Ao fim desse tempo não tinha que comer. O estômago é engenhoso e tem boa memória. João lembrou-se que havia, em uma casa de pasto do seu conhecimento, um caixeiro a quem emprestara dez mil-réis em ocasião em que se achava desempregado. Correu para lá.
O caixeiro conheceu o credor, e acudiu a servi-lo. João das Mercês pediu alguma coisa para almoçar, e fingindo ler a lista declarou ao caixeiro que não tinha dinheiro naquela ocasião.
O caixeiro era bom rapaz e não deixou de o servir. Foi pelo mesmo teor o jantar e a ceia. No dia seguinte não havendo outra vela no horizonte culinário, João das Mercês recorreu ainda ao caixeiro, que não deixou de lhe fiar o comer; mas pensando que a penúria de João das Mercês era temporária, limitou-se a afiançar ao dono da casa a capacidade do freguês.
Ao fim de duas semanas, quando João das Mercês se assentava para comer o seu décimo-quinto almoço, o dono da casa foi-lhe levar uma conta que fez empalidecer o pobre rapaz.
— Amanhã lhe pago isto, respondeu ele pondo a conta no bolso, e com tanta confiança que parecia estar à espera de algum legado. Ignora-se como comeu ele no dia seguinte e nos outros. Um mês depois achamo-lo empregado em copiar certidões e outros papéis em casa de um tabelião. Era ativo no trabalho e sério no procedimento; infelizmente o tabelião padecia de moléstias que o enchiam de mau humor certas manhãs, mormente se comia na véspera carne cozida. Um dia em que o tabelião entrou no cartório afinadíssimo, João das Mercês teve a desgraça de copiar mal um papel. O tabelião revoltou-se contra o escrevente, e mandou fazer outra cópia, a qual, não saindo capaz, levou o tabelião às nuvens. Por desgraça, João das Mercês abalroou na mesa e entornou-lhe o tinteiro sobre uma procuração.
Foi demitido.
Tentou João das Mercês entrar no comércio, e alcançou ser admitido como sócio de indústria em um armarinho. O armarinho era afreguesado e João das Mercês julgou ter enfim dado o último golpe no caiporismo. Daí a um ano reconheceu que andava iludido com a aparente vitória.
O caiporismo é a hidra de Lerna.
O sócio disse-lhe um dia de manhã que ia buscar um primo em Sapopemba e partiu acompanhado de uma pequena mala.
João das Mercês ficou em casa só.
Mas os dias correram sem que o sócio voltasse; até que João fosse surpreendido com uma letra de quinhentos mil-réis. Recorreu à burra e não achou vintém. Deu parte à polícia; mas nem por isso escapou da correição.
Foi solto depois de um laborioso processo em que ficou provada a sua completa inocência. Os credores tomaram conta dos bens, e João das Mercês ficou no meio da rua com as algibeiras vazias e nenhuma esperança de melhora.
Não tinha as algibeiras vazias de todo; depois de as revolver muito achou seis mil-réis.
— Que tempo me durará isto? perguntou ele a si mesmo. Nem três dias; é preciso comer e dormir. Acabado este dinheiro estou como antes. Que farei?
Aqui teve uma dessas inspirações que salvam impérios.
— Gasto dez tostões em alguma coisa, e com os cinco mil-réis de resto compro um quarto de loteria.
Já sabemos que ele tinha esta mania que lhe deixara uma das sete amas.
Assim fez.
Depois de comer tranqüilamente um almoço sucinto e modesto, encaminhou-se para a Rua da Quitanda e comprou o bilhete.
— 1441, disse ele, bom número; tenho fé.
Tinha uma esperança mas não tinha jantar nem cama. Felizmente a roda corria no dia seguinte. João das Mercês entrou a passear pelas ruas, disposto a sofrer filosoficamente a fome e o mais na esperança dos vinte contos.
Casualmente encontrou o tio Gaspar.
— Como estás? perguntou-lhe o tio.
— Bom.
— Já te livraste do processo?
— Já.
— Tão depressa?
— Acha que foi depressa?
— Sim, essas coisas costumam a ser mais longas. Eu quis fazer alguma coisa por ti; mas tua tia, que é uma senhora de muito bem pensar, disse: “— Era bom ir socorrer o Joãozinho; mas o crime é tão feio que não é bom a gente meter-se nisto; que pensas tu, Gaspar?” “— Que hei de pensar, mulher? Penso que o rapaz é inocente e que foi atraiçoado; mas as aparências enganam... e nesse caso é minha vontade que não nos metamos nisto”.
— Faz bem.
— Onde estás agora?
— Aqui na rua.
— Mas qual é o teu emprego?
— Passear.
— Que dizes?
— A verdade.
Gaspar, que não era mau homem, ficou penalizado com a situação do sobrinho. Quis fazer alguma coisa por ele; mas não ousava.
— Já comeste?
— Hoje comi; amanhã não sei.
— Olha, disse Gaspar com um belo movimento de generosidade, toma lá; eu fui agora mesmo receber um dinheiro; toma dez mil-réis.
João das Mercês aceitou os dez mil-réis e abraçou o tio.
— Bem! disse ele, a sorte começa a ceder. Já tenho com que dormir hoje e comer amanhã.
Era não contar com o caiporismo e D. Angélica. Esta senhora pediu ao marido contas do dinheiro que fora cobrar. Gaspar contou-lhe francamente o estado em que achara João das Mercês e o procedimento que tivera. D. Angélica irritou-se contra o marido e o sobrinho e exigiu a imediata entrega do dinheiro. Por honra dela, devo dizer que a sua intenção era simplesmente mortificar o marido. Mas este, acostumado a obedecer-lhe, tomou à letra a ordem e saiu desesperado em busca de alguém que lhe emprestasse dez mil-réis.
Esse alguém foi o sobrinho.
João das Mercês viu de longe o tio e aproximou-se dele. Achou-o triste e taciturno, perguntou-lhe o que tinha.
— Nada, disse Gaspar.
— Alguma coisa tem meu tio; vamos, diga o que é.
Gaspar não disse palavra.
Então lembrou-se João das Mercês do domínio que a tia exercia no ânimo do marido, e calculou que a tristeza de Gaspar se prendesse ao generoso presente dos dez mil-réis.
— Qual! disse Gaspar, quando João das Mercês lhe comunicou a suspeita; Angélica não era capaz de semelhante coisa; estima-te e respeita-te. A verdadeira causa de minha tristeza é que esse dinheiro não era meu, e eu dei-te os dez mil-réis por engano.
João das Mercês entregou o dinheiro ao tio.
Gaspar sentiu-lhe borbulhar-lhe uma lágrima nos olhos. Apertou a mão ao sobrinho e foi para casa. Entrava triunfante com os dez mil-réis, quando D. Angélica, franzindo o sobrolho, perguntou-lhe de onde os houvera. Gaspar confessou-lhe a verdade.
— Que! exclamou a esposa; pois tu tiveste ânimo de ir tirar estes pobres dez mil-réis ao rapaz que nem comer tinha?
— Mas tu...
— Eu, o quê? Eu disse aquilo por dizer. Vai, vai entregar este dinheiro ao pobre rapaz.
— Onde o encontrarei agora?
Gaspar saiu e não achou o sobrinho. Às ave-marias voltou para casa, mas receando que a mulher lhe revistasse as algibeiras, coisa que nunca deixava de fazer todas as noites, tratou de gastar os dez mil-réis como pôde.
João das Mercês passou a noite na rua; no dia seguinte almoçou com um outro companheiro do cartório; e à hora do costume foi para a Misericórdia ver correr a roda.
— Tenho um pressentimento, disse ele consigo, de que hoje venço o destino.
Chegou; dez minutos depois o nº 1441 era aclamado como tendo obtido os vinte contos de réis.
João das Mercês desmaiou.
Deram-lhe os prontos socorros. Tornou a si, apalpou as algibeiras; e achou o abençoado bilhete.
Graças a este recurso inesperado foi à antiga casa de pasto, cuja dívida estava paga, e apresentou o bilhete.
— Tenho aqui a sorte grande; dê-me de jantar que eu depois de amanhã lhe satisfaço a conta do que for.
Foi prontamente obedecido. Jantou como um príncipe. No fim pediu ao caixeiro conhecido, sempre sobre a base do bilhete, alguns charutos que só tinham o defeito de não serem de Havana; no mais não prestavam para nada.
Mas naquela situação tudo o que se fuma é bom. Qualquer homem fumará alegremente couro de boi, se tiver a certeza de que no dia seguinte lhe metem na algibeira vinte contos de réis.
Acabava ele de acender um charuto, quando um sujeito que lhe ficara fronteiro, e tinha ouvido a conversa com o dono da casa, lhe disse com familiaridade:
— Com que então tirou a sorte grande?
— É verdade, respondeu João das Mercês, com a indiscrição de um homem feliz após tantas desgraças. Tirei a sorte grande e ainda estou admirado disso.
— Por quê? disse o sujeito, levantando-se com a xícara de café na mão e indo assentar-se à mesa do rapaz.
— Porque fui sempre muito caipora. Nunca comprei bilhete que me saísse sequer o mesmo dinheiro. Desta vez porém acertei...
— Homem, eu também fui sempre caipora. Joguei dois anos com o mesmo número e nunca tirei mais de 40$000. Um dia porém, saiu o diabo detrás da porta e caiu-me a bicha em casa.
— Sim? Quando foi isso?
— Foi há seis meses.
— Um quarto ou bilhete inteiro?
— Meio bilhete. Recebi dez contos.
— Talvez não precisasse deles...
— Quase que lhe posso dizer isso. Graças a Deus ainda que não viessem os dez contos, tinha com que passar. Acontece-lhe o mesmo?
— Infelizmente não, disse João das Mercês seduzido com a maneira e a confiança do interlocutor.
— Mais uma razão para que eu o felicite.
O desconhecido apertou a mão a João das Mercês e ofereceu-lhe um charuto.
— Estes charutos daqui não prestam, tome este.
João das Mercês acendeu o charuto depois de pôr o seu fora, e reclinou-se sobre a mesa a conversar com o desconhecido.
Ao fim de uma hora saíram de braço dado. O desconhecido disse chamar-se Viana; João das Mercês deu também o seu nome. Saíram como dois amigos velhos. Passearam todo o tempo; Viana levou a benevolência ao ponto de o convidar a tomar um sorvete no Carceller.
Perto da noite, disse Viana para João das Mercês:
— Vou levá-lo até à sua casa.
João das Mercês fez uma careta.
— Isso agora há de ser mais difícil, disse ele depois de alguns instantes.
— Por quê?
— Porque...
— Seja franco.
— Pois bem, meu caro, eu não tenho casa!
— Não tem casa?
João das Mercês contou fielmente ao amigo a sua posição. Viana ouviu a narração com visíveis sinais de simpatia.
— Pois se isto o não incomoda nem ofende, ofereço-lhe por hoje um hospício. Amanhã já não será preciso porque receberá o dinheiro.
— Aceito.
Dirigiram-se para a Rua da Misericórdia. Viana morava ali em um primeiro andar mobiliado com algum asseio.
— A casa não está arranjada, disse ele, mas é porque eu mais me entendo com a desordem que com a ordem.
— Está excelente, disse João das Mercês. Ah! meu caro senhor Viana, creio que sou agora verdadeiramente feliz. No dia em que me entra o dinheiro pela porta, entra-me um amigo pelo coração. Pela porta é metáfora, acrescentou ele rindo.
Viana apertou-lhe a mão comovido.
— Tive um amigo da sua idade; era a mesma alma franca e aberta aos sentimentos generosos; permita-me a ilusão de que o encontrei agora...
— Espero que não seja ilusão, exclamou João das Mercês.
Conversaram até alta noite. À uma hora João das Mercês disse que estava com sono.
— Eu também, disse Viana. Vamos dormir. Tenho sempre esta outra cama pronta para o que der e vier. Olhe, gosto de acordar cedo.
— Homem, nestas alturas não se me dera acordar mais tarde, respondeu João das Mercês que, como sabemos, adquirira de uma das suas amas o modo de dormir demais.
— É que eu tenho de sair cedo, para levar um papel à estrada de ferro. Às nove horas estarei de volta.
— A minha madrugada será às nove horas.
— Veja lá se perdeu o bilhete.
— Nada, cá está no bolso do colete.
Dormiram.
No dia seguinte, seriam onze horas quando João das Mercês abriu os olhos. Viana ainda não tinha voltado. O rapaz costumava estar na cama acordado ainda um quarto de hora. Ao fim desse tempo levantou-se, lavou-se e vestiu-se.
Não tendo relógio não sabia que horas eram. O sol estava encoberto. João das Mercês chegou à janela a ver se via o dono da casa.
Não viu ninguém.
Pouco depois deram os sinos meio-dia.
— Meio-dia, disse ele. Onde estará este homem.
Começou a sentir fome e a arrepelar-se com a demora, quando instintivamente levou a mão ao bolso do colete.
Não achou o bilhete!...
— Roubado! exclamou ele com desespero.
Chegou à janela, gritou, acudiu gente à porta que o deram por maluco. Do segundo andar desceram algumas pessoas, e depois de ouvirem as queixas do mísero rapaz, foram chamar a autoridade.
Quando o rapaz conseguiu achar-se na rua eram já duas horas. Seu primeiro pensamento foi ir à casa de loteria.
Correu para lá.
Ó desgraça! todos os quartos da sorte grande estavam pagos. Deu os sinais de Viana e eram os mesmos de um sujeito que lá fora cobrar um quarto.
Não se pode descrever o desespero de João das Mercês. Faltava-lhe aquele golpe mais terrível que todos, o de ter a fortuna na mão e senti-la voar como um pássaro esquivo.
Não hesitou; a idéia de morrer entrou-lhe na cabeça como uma solução às suas desgraças.
No fundo do bolso ainda achou um cartão de barca. Dirigiu-se à ponte e tomou passagem para S. Domingos.
No meio da viagem, aproveitou o descuido das pessoas que se achavam perto dele e atirou-se ao mar.
Houve logo a bordo o rebuliço que um caso destes produz. A barca parou e a bordo se empregaram todos os esforços para salvar o infeliz.
João das Mercês veio à tona d’água quando lhe atiraram uma corda; ele repeliu-a com energia.
Seu pensamento era morrer.
Não contava com o caiporismo.
Os esforços empregados em favor de uma criatura que não queria nada da vida, foram coroados de sucesso, João das Mercês foi salvo.
Passado esse triste acontecimento, João das Mercês dispôs a lutar violentamente com a sorte; pareceu-lhe esta sorrir. Alcançou o rapaz um emprego que lhe dera com que viver pobremente.
Alugou uma casinha na Cidade Nova, e assim passou alguns meses.
Um dia reparou que havia defronte uma velha que não deixava de sorrir quando ele entrava ou saía de casa. João das Mercês cumprimentava-a cortesmente, mas não julgava que o riso fosse com ele.
A casa da velha era a melhor casa da rua, e a moradora passava por ser rica.
Quando João das Mercês descobriu que o riso era com ele, começou a prestar maior atenção à vizinha. Esta redobrou de demonstrações e seria enfadonho contar aqui miudamente os acontecimentos que se deram depois. Basta saber que João das Mercês entrou a freqüentar a casa da vizinha, e esta declarou-lhe francamente o amor que o moço lhe havia inspirado.
Não devendo esperar que a própria velha oferecesse aquilo que era um favor para ele, João das Mercês exclamou um dia:
— E se nós nos casássemos?
— Essa é a minha intenção, disse Margarida, se acha que eu o posso fazer feliz.
— Oh! mais que feliz!
A velha tinha duzentos contos.
Era mais que a sorte grande.
Marcou-se o dia do casamento, correram os pregões, João das Mercês mandou fazer a roupa nova e convidou Gaspar para ser padrinho.
— Sem dúvida, meu rapaz, respondeu o tio, mas quem é a madrinha?
— Eu tinha-me lembrado de minha tia...
— Conta com ela; vou agora mesmo avisá-la.
Margarida não cabia em si de contente; dizia que apesar da idade que tinha, sentia em si mais amor do que nunca tivera ao defunto marido.
João das Mercês disse a mesma coisa. Amara muitas vezes, mas nunca com tanta força.
— Sei o que é, acrescentava ele, é que eu amei sempre a umas deslambidas sem gravidade nem as graças que só se podem ter em certa idade.
Margarida não tinha parente nenhum com exceção de um primo remoto, que fez todos os esforços para impedir o casamento, e que nada tendo alcançado, resolvera aceitar o convite para ser padrinho, não podendo brigar com a parenta rica.
Raiou enfim a véspera do casamento.
Por conselho da noiva, João das Mercês tinha desistido do emprego, aliás com repugnância, porque não queria parecer que ia viver às sopas da mulher. A coisa era isso mesmo, mas ele não queria a aparência da coisa.
Terníssimos foram os adeuses dos noivos na véspera do casamento. João das Mercês já tinha fechado a porta, e Margarida ainda acenava com o lenço.
Alta noite foi João das Mercês acordado por violentas pancadas na porta. Levantou-se sobressaltado e foi ver o que era.
Era um escravo de Margarida.
Vinha dizer que a senhora estava mal; e que o mandava chamar.
A primeira frase de dor do rapaz foi toda egoísta: Ah! meu caiporismo! exclamou ele enfiando as calças.
Margarida estava realmente às portas da morte. Quis ver o noivo; este chegou; ela apertou-lhe a mão com ternura.
Depois chamando o primo declarou que desejava fazer o seu testamento, mas ainda não tinha acabado de falar que expirou.
João das Mercês teve um ataque.
Quando voltou a si, o pobre rapaz lembrou-se outra vez de morrer. Mas tantos sucessos lhe tinham embotado a energia.
Nunca raiou dia de felicidade para este infeliz. Tem sido sucessivamente agente de procurador, copista de advogado, porteiro de teatro, vendedor de bilhetes de loteria, negociante de charutos, sempre perseguido pela fatalidade.
Ele mesmo diz com resignação evangélica:
— Sou o rei dos caiporas!