O valente soldado de chumbo (edição de 1877)
Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos, por todos terem nascido da mesma colher de chumbo. Vêde-os: que attitude marcial, d'espingarda ao hombro, olhar fixo, e ricos uniformes azues e vermelhos! A primeira coisa que ouviram n'este mundo, quando se levantou a tampa da caixa em que elles estavam, foi este grito: «Olha soldados de chumbo!» que soltou um rapazito, batendo as palmas d'alegria. Tinham-lh'os dado de presente no dia dos annos, e o seu divertimento era formal-os sobre a mesa, em linha de batalha. Todos os soldados se pareciam maravilhosamente uns com os outros, excepto um, que tinha uma perna de menos, porque o tinham deitado na fôrma em ultimo lugar, e já não havia chumbo sufficiente. Apesar d'este defeito, os outros não estavam mais firmes nas duas pernas do que elle na sua unica, e é este o que precisamente nos interessa.
Sobre a meza em que os nossos soldados estavam formados havia mil outros brinquedos, mas o mais bonito de todos, era um lindissimo castello de papel. Pelas suas pequeninas janellas via-se-lhe o interior dos salões. Á volta era circumdado d'uma floresta em miniatura, que se reflectia poeticamente n'um pedaço d'espelho que fingia um lago, onde nadavam pequeninos cysnes de cêra. Tudo isto era encantador, mas não tanto como uma menina que estava á porta, e que era tambem de papel, vestida com um lindo vestido de cassa, apertado com um cinto de fivela azul. A menina tinha os braços arqueados, porque era dançarina, e tinha uma perninha levantada a tal altura, que o soldado de chumbo não a podia ver, e imaginou que, como elle, não tinha senão uma perna.
— Ali está a mulher que me convém, pensou elle, mas é uma grande fidalga. Mora n'um palacio, eu n'uma caixa em companhia de vinte e quatro camaradas, e não haveria cá lugar pura ella. No entantanto preciso conhecel-a.»
Deitou-se atraz d'uma caixa de tabaco, e d'ali podia ver á sua vontade a elegante dançarina, que estava sempre n'um pé só, sem perder o equilibrio.
Á noite todos os outros soldados foram mettidos na caixa, e as pessoas da casa foram deitar-se. Apenas os brinquedos perceberam isto, começaram a divertir-se, fizeram guerras, e a final deram um baile. Os soldados de chumbo mexiam-se, e remexiam-se na sua caixa, porque queriam lá ir; mas como haviam elles tirar a tampa? O quebra-nozes começou a dar cabriolas e saltos mortaes, o lapis traçou mil arabescos phantasticos n'uma louza, emfim o barulho tornou-se tal que o canario accordou, e poz-se a cantar. Os unicos que estavam quietos eram o soldado de chumbo e a dançarinasinha. Ella no bico do pé, e elle n'uma perna só, a espreital-a.
Deu meia noite, e zás, a tampa da caixa de rapé levanta-se, e em lugar de rapé, saiu um feiticeirosinho preto. Era um brinquedo de surpreza.
— Soldado de chumbo, disse o feiticeiro, trata de olhar para outro sitio.»
Mas o soldado fez que não ouvia.
— Espera até ámanhã, e verás o que te acontece, continuou o feiticeiro.»
No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puzeram o soldado de chumbo á janella, mas de repente ou por influencia do feiticeiro ou por causa do vento caiu á rua de cabeça para baixo. Que tombo! Ficou com a perna no ar, o peso do corpo todo sobre a barretina, e com a bayoneta enterrada entre duas lages.
A creada e o rapazito foram lá abaixo procural-o, mas estiveram quasi a esmagal-o, sem darem por elle. Se o soldado tivesse gritado: «Cautella!» tel-o-íam achado, mas elle julgou que seria deshonrar a farda. A chuva começou a cair em torrentes, e tornou-se n'um verdadeiro diluvio. Depois do aguaceiro passaram dois garotos.
— Olá! disse um d'elles, um soldado de chumbo por aqui! Vamos fazel-o navegar.»
Construiram um barco d'um bocado de jornal velho, metteram o soldado de chumbo dentro, e obrigaram-n'o a descer pelo regato abaixo. Os dois garotos corriam ao lado, e davam grito de prazer. Que ondas! Santo Deus! Que força de corrente! Mas tambem tinha chovido tanto! O barco jogava d'uma maneira horrorosa, mas o soldado de chumbo conservava-se impassivel, com os olhos fixos e a espingarda ao hombro.
De repente o barco foi levado para um cano, onde era tão grande a escuridão como na caixa dos soldados.
— Onde irei eu parar? pensou elle. Foi o tratante do feiticeiro que me metteu n'estes trabalhos. Se, apesar de tudo, aquella linda menina estivesse no barco, não importava, ainda que a escuridão fosse duas vezes maior.»
D'ali a pouco apresentou-se um enorme rato d'agua; era um habitante do cano.
— Venha o teu passaporte.»
Mas o soldado de chumbo não disse nada, e agarrou com mais força na espingarda. O barco continuava o seu caminho, e o rato perseguia-o, rangendo os dentes, e gritando ás palhas, e aos cavacos: — Façam-n'o parar, façam-n'o parar! Não pagou a passagem, não mostrou o passaporte.»
Mas a corrente era cada vez maior, o soldado via já a luz do dia, e sentia ao mesmo tempo um barulho capaz d'assustar o homem mais valente. Havia na extremidade do cano uma queda d'agua tão perigosa para elle, como é para nós uma catarata. Aproximava-se d'ella cada vez mais, sem poder parar, com uma rapidez vertiginosa. O barco lançou-se sobre a queda d'agua, e o pobre soldado firmava-se o mais possivel, e ninguem se atreveria a dizer que o tinha visto fechar os olhos com o susto.
O barco, depois de ter andado á roda durante muito tempo, encheu-se d'agua, e estava a ponto de naufragar. A agua já chegava ao pescoço do soldado, e o barco afundava-se cada vez mais. O papel desdobrou-se, e a agua passou por cima da cabeça do nosso heroe. N'esse momento supremo, pensou na gentil dançarinasinha, e pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:
— Soldado: o perigo é enorme, a morte espera-te.»
O papel rasgou-se, e o soldado passou atravez d'elle. N'esse momento foi devorado por um grande peixe.
Lá é que era escuro, ainda mais que dentro do cano. E além d'isso, que talas em que elle estava mettido! Mas, sempre intrepido, o soldado estendeu-se ao comprido com a espingarda ao hombro.
O peixe mexia-se e remexia-se, dava saltos de metter medo, até que emfim parou, e pareceu que o atravessava um relampago. Appareceu a luz do dia, e alguem exclamou:
— Olha um soldado de chumbo!»
O peixe tinha sido pescado, exposto na praça, vendido, e levado para a cosinha, e a cosinheira tinha-o aberto com uma enorme faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a sala, onde toda a gente quiz admirar esse homem extraordinario, que tinha viajado na barriga d'um peixe. No entretanto o soldado não se sentia orgulhoso. Collocaram-n'o em cima da meza, e ali — tanto é verdade que acontecem cousas extraordinarias n'este mundo — achou-se na mesma sala, de cuja janella tinha caido. Reconheceu os pequenos e os brinquedos que estavam em cima da meza, o lindo palacio, e a adoravel dançarina sempre de perna no ar. O soldado de chumbo ficou tão commovido, que de boa vontade teria derramado lagrimas de chumbo, mas não era conveniente. Olhou para ella, ella olhou para elle, mas não disseram uma palavra um ao outro.
De repente um dos pequenos pegou n'elle, e sem motivo algum deitou-o no fogão; eram obras do feiticeiro da caixa do rapé.
O soldado de chumbo lá estava perfilado, allumiado por um clarão sinistro, e soffrendo um calor terrivel. Todas as côres lhe tinham desapparecido, sem que se podesse dizer, se era por causa das suas viagens, ou por causa dos seus desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que tambem olhava para elle. Sentia-se derreter, mas, sempre intrepido, conservava a espingarda ao hombro. De repente abriu-se uma porta, o vento arremeçou a dançarina ao fogão para junto do soldado, que desappareceu no meio das lavaredas. O soldado de chumbo, já não era mais que uma pequena massa informe.
No dia seguinte, quando a creada veiu tirar a cinza, encontrou um objecto que tinha o feitio d'um pequeno coração de chumbo, e tudo o que restava da dançarina era a fivela do cinto azul que o lume tinha ennegrecido.