Suspiros poéticos e saudades (1865)/O Vate

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Por que cantas, oh Vate? por que cantas?
Qual é tua missão? O que és tu mesmo?
Para ti nada é morto, nada é mudo;
Co'o sol, e o céu, e a terra, e a noite falas.
Tudo te escuta; e para responder-te,
Do passado o cadáver se remove,
E do túmulo seu a fronte eleva;
O presente te atende; e no futuro
Eternos vão soar os teus acentos!


Quando o vento em furor açouta as comas
Dos brasílicos bosques, voz tremenda
Igual a do trovão ao longe atroa,
E uma nuvem de flores se levanta,
Que o ar com seus eflúvios embalsama;
Assim, quando te agita o entusiasmo,
Dos lábios teus emana alma torrente
Troante e recendente de perfumes.

De mágico poder depositário,
Qual um gênio entre os homens te apresentas.
Ante ti não há rei, nem há vassalo;
Tu nos homens só vês virtude, ou vício.
Como um déspota, ufano em teus delírios,
Uns cercas de imortal auréola tua,
Outros condenas ao opróbio, e à morte.

Umas vezes soberbo, impetuoso,
Qual águia que sublime o céu devassa,
E do céu sobre a terra os olhos desce,
Teu ígneo, alado gênio, no ar suspenso:
Não, oh mortais, não vos pertenço, (exclama)

Eu sou órgão de um Deus; um Deus me inspira;
Seu intérprete sou; oh terra! ouvi-me.

Outras vezes, nas selvas meditando,
Sobre um tronco sentado, junto a um rio,
Que embalança da lua a argêntea cópia;
Como entre as folhas sussurrante vento
Gemer parece, e de algum mal carpir-se,
Tu gemes, e co'o verme te comparas,
Que arrasta pelo chão a inútil vida;
E vês nas águas, que a teus pés deslizam,
A imagem de teus dias fugitivos.

Fogem os dias como as águas fogem;
Mas da lua o clarão, que a água reflete,
Sem do lugar fugir, brilhando fica;
Tal sobre a terra, onde escoara a vida,
Resta do Vate a rutilante glória!

Quando ouve o sabiá troar nas várzeas
Do fero caçador a mortal arma,
Sufoca o sabiá seu canto, e foge:
Assim tu emudeces, quando estruge

Da civil guerra, e da discórdia o grito.
Mas quando à Pátria o inimigo insulta,
Armando o braço, e reforçando o peito,
No meio dos combates te arremessas,
Como o raio que estronda, e fere, aclara,
E após teus cantos a vitória marcha.

Vate, o que és tu? És tu mortal ou Nume?
Que Deus te abala o peito, e te enfurece,
Quando, como um vulcão que estoura em lavas
Que acesas rolam, tua voz desatas?

Oh como é grande o Vate, que arrojado
Da terra s'ergue como a labareda,
E vagando no céu como um meteoro,
Dos lábios solta a voz, e a vibra em raios,
Que o vício, e o crime ferem, pulverizam!

Canta, oh Vate! sagrados são teus cantos;
Canta, que o céu te inspira, o céu te inflama;
Canta, que apesar seu, te escuta o mundo,
E o vício de te ouvir treme de medo.


Não, não és um mortal quando tu cantas!
És o Arcanjo da justiça eterna!
Lâmina acesa, fulminante empunhas,
Com que prostras por terra a fronte ao crime,
Com outra mão elevas o homem justo.

Ou tu cantes a guerra, ou. amor cantes,
Ou louves do Senhor as maravilhas;
Ou do céu as angélicas belezas,
Ou do inferno os horrores nos retrates;
Ou sobre o esquife de um amigo chores,
Ou enfeites a campa da inocência;
Sempre teus versos, qual nectáreo rócio,
De inefável prazer a alma me embebem!

Ah não profanes o teu gênio, oh Vate!
O incenso só no altar queimar-se deve!
Em lago impuro não se banha o cisne,
Que manchar teme a cândida plumagem.
Imita o cisne; e como sempre as flamas
Sobem ao céu, ao céu teus hinos subam.

As riquezas que a terra oh avaro ofrece,
Mais valor para ti que o céu não tenham;

As riquezas da terra ao Vate servem
Para imagem da mística linguagem,
Como ao belo ideal dão vida as cores.

No dia em que da lira sons forçados
Venderes ao tirano em troco de ouro,
Nesse dia o céu deixa de inspirar-te;
Quebra essa lira, e cessa de ser Vate.

Quando a virgem do sol seu voto infringe,
Vedado lhe é tocar no sacro fogo;
D'alva c'roa de flores a despojam,
Adornos de vestal, e o nome perde;
Assim quando uma vez, oh Vate, atende,
Venais hinos os lábios teus verterem,
Deixarás de ser Vate; arranca a c'roa,
E co'o selo do opróbrio entra no mundo.

Opróbrio ao Vate que profana a lira!
Opróbrio, infâmia a quem insulta o Vate.