Suspiros poéticos e saudades (1865)/A Poesia
Um Deus existe, a Natureza o atesta;
A voz do tempo sua glória entoa,
De seus prodígios se acumula o espaço;
E esse Deus, que criou milhões de mundos,
Mal queira, num minuto,
Pode ainda criar mil mundos novos.
Os que nos leves ares esvoaçam,
Os que do vasto mar no fundo habitam,
Os que se arrastam sobre a dura terra,
E o homem que para o céu olhos eleva,
Todos humildes seu Autor adoram.
Todos te adoram, sim, meu Deus, mas como?
Este no sol te vê, na lua aquele,
Qual um touro te crê, qual um tirano;
E entre si disputando a preferência,
Todos ufanos conhecer-te julgam.
No céu rutila o sol, e sobre a terra
Caem seus raios como chuva de ouro;
Mas cada flor, um raio recebendo,
De um esmalte diverso se colora.
Oh tu, qu'eu amo como casta virgem!
Sim, tu és como Deus, diva Poesia!
Sim, tu és como o sol! Por toda parte
Cultos te rendem de uma zona à outra;
Cada mortal te ofrece
Um culto igual à força de sua alma;
Qual te julga uma virgem do Permesso,
Só de ficções amiga;
Qual da verdade o Anjo,
Que tudo vê com olhos luminosos;
Tua voz similhante a uma torrente
Tudo abala, e consigo arrasta tudo.
Oh Poesia, oh vida da Natura!
Oh suave perfume
D'alma humana exalado!
Oh vital harmonia do Universo!
Tu não és um fantasma de beleza.
Falaz sonho de mente delirante,
E da mentira a deusa;
Tu não habitas só da Grécia os montes,
Nem só de Febo a luz te inspira o canto!
D'alvo manto coberta, roçagante,
Lá no meio da noite, quando a lua
Só para os mortos alvejar parece,
Como a lanterna fúnebre do claustro,
Tu, encostada à Cruz do cemitério,
Como o Anjo da morte,
Ao som de uma harpa suspirando exalas
De quando em quando teus sagrados salmos;
Quando tu pausas, gemebundo o vento
Vai também entre os lúgubres ciprestes
Teus últimos acentos murmurando.
Nas cavas sepulcrais som lutuoso
De tua voz reboa.
Dirias que animados por teu canto,
Os mirrados cadáveres se elevam
Do fundo dos jazigos,
E sobre as lousas curvos,
Cantam num coro o místico estribilho.
Sobre o bronco alcantil de alpestre fraga
Pelos tufões batida, e pelas ondas,
Que incessantes se entonam,
Tu, sentada, qual virgem
Do naufrágio escapada,
O mar contemplas, do infinito imagem;
E depois para Deus erguendo os olhos,
Teus olhos como dois fanais acesos,
Que dos céus co'as estrelas rivalizam,
E ao viajante ao longe o escolho indicam;
Ao compasso das vagas gemebundas,
Tua angélica voz, como um eflúvio,
Do mais íntimo d'alma a Deus exalças.
Sobre montes de ruínas dos Impérios,
Entre relíquias de abatido templo,
Ao qual somente o céu de teto serve,
E de lâmpada a lua, tu vagueias,
E te aprazes co'os sérios pensamentos,
Que os destroços inspiram.
No campo da batalha, o chão juncado
De ossos que alvejam, de quebradas armas,
Que sublimes lições aos homens ditas!
Tu és tudo, oh Poesia!
Tu estás na paz, e na guerra,
Nos céus, nos astros, na terra,
No mar, na noite, no dia!
Oh mágico Nume,
Que minha alma adora,
Do céu sacro lume,
Que abrasa, e vigora
O meu coração!
Tu és o perfume,
E o esmalte das flores,
Dos sóis os fulgores,
Dos céus a harmonia,
Do raio o clarão!
Tu és a alegria
D'uma alma piedosa,
E a voz lutuosa,
A voz d'agonia,
Que escapa do peito,
De quem vai do leito
À terra baixar.
Tu és dos desertos
O som lamentoso,
E o eco choroso
Das vagas do mar.
Tu és a inocência,
E o riso da infância,
Do velho a prudência,
Do moço o vigor,
Do herói a clemência,
Do amor a constância,
Da bela o pudor.
Tu, que cantaste o hino da inocência,
Quando imóvel ainda repousava
No berço do Oriente a Humanidade;
Tu, que cantando sempre a acompanhaste
Nos seus dias de dor, ou de triunfo,
Acaso morrerás também com ela?
Ou sem ti, como um astro em seu eclipse,
Se arrastará sem vida a Humanidade,
Até toda no túmulo sumir-se?
Quando o sol, que é tua imagem,
No seu zênite apagar-se,
E tudo outra vez do nada
No escuro golfo abismar-se:
Tu, que és a imagem do Eterno,
Terás fim nesse momento?
Ou terás nova existência
Do Senhor no pensamento?
Sim; quando tudo extinguir-se,
Guardará Deus na lembrança
De tudo que agora existe
Uma viva similhança.
Essa imagem a Deus presente
Serás tu, oh Poesia!
Tu és do Eterno um suspiro,
Que enche o espaço de harmonia.
Veneza, maio de 1835.