Saltar para o conteúdo

Obras completas de Fagundes Varela (1920)/Vozes da América/Mauro, o escravo

Wikisource, a biblioteca livre

A Sentença
I
Na sala espaçosa, cercado de escravos
Nascidos nas selvas, robustos e bravos,
Mas presos agora de infindo terror;
Lotário pensava, Lotário o potente,
Lotário o opulento, soberbo e valente,
De um povo de humildes tirano e senhor.
II
Nas rugas da fronte fatídica e rude
Não tinham-lhe as rosas de longa virtude
Do tempo os vestígios lavado em perfumes;
Nublava-lhe o rosto, mais negros fazia
Dos olhos ardentes os férvidos lumes.
III
No inverno da vida, dos tempos passados
Ninguém lhe sabia. Boatos ousa

dos
Erguiam-se às vezes; mas ah! que diziam?
Lotário era grande; seus bosques passavam
Das serras além; seus campos brotavam
Riquezas imensas, que a tudo cobriam.
IV
Depois, é tão fácil na sombra noturna
O inseto esmagar-se, de voz importuna,
Que o ouvido nos enche de tédio e do nojo!
Um gesto... uma espera... na estrada uma cruz...
Só sabem-no as selvas, os fossos sem luz
E as serpes que a plaga percorrem de rojo.
V
Na sala espaçosa Lotário pensava.
Roberto seu filho de um lado esperava
Tremente, ansioso, que o pai lhe falasse.
A turba de servos imóveis, silentes
Os braços cruzados, as frontes pendentes,
A voz aguardava que as ordens ditasse.
VI
- Conduzam-me o escravo! - Lotário bradou; -
O bando de humildes a sala deixou
Às torvas palavras do torvo senhor.
Lotário sombrio voltou-se a seu filho,
De quem, dos olhares, corria, no brilho,
A chama sinistra de um gênio traido

r.
VII
- Sossega, Roberto; - lhe disse - é forçoso
Que eu puna o africano feroz, revoltoso,
Que ousou levantar-se da lama a teus pés.
Roberto curvou-se. O pai se afastando
Sentou-se, e, os sobrolhos fatais carregando,
Em cisma profunda perdeu-se outra vez.
VIII
Momentos passados, um surdo ruído
Ergueu-se da escada, por entre o tinido
De férreas cadeias batendo no chão,
E os servos de volta, trazendo o culpado
Tristonho, olhos baixos, o dorso arqueado,
No centro pararam do antigo salão.
IX
Silêncio profundo! nem um movimento
Se via no grupo, que trêmulo e atento
A voz esperava que alçasse o senhor;
Lotário media severo o cativo,
E as faces do filho tirânico e altivo
Cobriam-se aos poucos de vivo rubor.
X
- Escravo, aproxima-te. Ao mando potente,
Moveu-se o inditoso brandindo a corrente,
E erguendo a cabeça fitou seu juiz;
Que traços distintos! que nobre composto

!
Que lume inspirado saltava do rosto,
Dos olhos doridos do escravo infeliz!
XI
Oh! Mauro era belo! Da raça africana
Herdara a coragem sem par, sobre-humana,
Que aos sopros do gênio se torna um vulcão.
Apenas das faces um leve crestado,
Um fino cabelo, contudo anelado,
Traíam do sangue longínqua fusão.
XII
Trinta anos contava; trinta anos de dores
Do estio da vida secaram-lhe as flores
Que a aurora banhara de orvalhos e luz,
Deixando-lhe apenas um ódio sem termos,
E d'alma indomável, nos cálidos ermos,
A chama vivaz que a força traduz.
XIII
Mas isto que importa? dos mares no fundo,
No lodo viscoso do pântano imundo,
Tem brilhos o ouro, cintila o diamante?
E a testa cingida de etéreo laurel
Tem vida se o mundo nodoa-se de fel
E curva aos martírios de um jugo aviltante?
XIV
- Conheces teu crime? - gritou o senhor. -
- Não! - Mauro responde com frio amarg

or,
O tigre encarando que em raiva o media.
- Pois que, desgraçado! - fremente exclamou,
E erguendo-se rubro, Lotário avançou
Ao servo impassível que ao raio sorria.
XV
- Pois que, desgraçado! tu zombas de mim!
E ousado, insolente contemplas-me assim!
A mão levantando Lotário bramiu.
Mas frio, tranqüilo, sereno o semblante,
Sem dar nem um passo, mover-se um instante,
O escravo arrogante de novo sorriu.
XVI
Conteve-se o bárbaro. - Mísero cão!
Humilha-te, abaixa-te, é tempo, senão
Com férreos açoutes arranco-te a vida!
- Conheces teu crime?
- Ignoro, senhor;
Minh'alma é tranqüila, só tenho uma dor,
E essa é de funda, secreta ferida.
XVII
- Tu'alma é tranqüila! Tu nada fizeste?
Tu contra meu filho brutal não te ergueste,
Nem duros insultos lançaste-lhe às faces?
- Não nego, é verdade.
- Confessas?
- Confesso!
E o escravo agitou-se, do ódio no excesso,
Lançando dos olhos centelhas fugazes.
XVIII
Lo

tário tremeu. Nas luzes febrentas
Daquelas faíscas, passaram sedentas
As fúrias medonhas de eterna vingança.
Calou-se um momento, sombrio, engolfado
Num pego de idéias, talvez despertado
Ao súbito choque de viva lembrança.
XIX
Mas logo de novo raivoso, incendido,
Voltou-se ao cativo: - Cativo atrevido,
Porque ultrajaste teu amo e senhor?
- Porque? - disse Mauro; porque? vou dizer;
Porque? eu repito que assim é mister:
Teu filho é um cobarde, teu filho é um traidor!
XX
- Segurem-no!... branco, de cólera arfando,
Rugiu o tirano, convulso, apontando
O escravo rebelde que os ferros brandia.
Segurem-no! e aos golpes de rábido açoite,
Lacerem-lhe as carnes de dia e de noite,
Até que lhe chegue final agonia!
XXI
O bando de servos lançou-se, ao mandado.
- Ninguém se aproxime! - bradou exaltado
O moço cativo sustendo a corrente.
A turba afastou-se medrosa e tremendo

E Mauro sublime, seu ódio contendo,
Falou destemido do déspota à frente:
XXII
- Não creias que eu tema! não creias que escravo
Suplícios me curvem, ai! não, que sou bravo!
Porque me condenas? que culpa me oprime,
De fogos impuros, lascivos, sedento,
Lançasse a inocência nas lamas do crime?
XXIII
Oh! sim, sim, teu filho, no lúbrico afã,
Tentou à desonra levar minha irmã!
Ai! ela não tinha que um mísero irmão!...
Ergui-me em defesa, teus ferros esmagam,
Humilham, rebaixam, porém não apagam
Virtudes e crenças, dever e afeição!
XXIV
Fiz bem! Deus me julga! Tu sabes meu crime,
O fero delito que a fronte me oprime,
As faltas nefandas, os negros horrores;
Agora prossegue, prossegue, estou mudo,
Condena-me agora que sabes de tudo,
Abafa-me ao peso de estólidas dores!
XXV
E Mauro calou-se. Mais frio que a morte,
Mais trêmulo que os juncos ao sopro do norte

,
À viva ironia Lotário abalou-se.
- Afastem-no!... Afastem-no! ergueu-se rugindo,
E a turba dos servos, o escravo impelindo,
Em poucos instantes da sala afastou-se.
XXVI
Ah! mísero Mauro! passados momentos,
Terrível sentença dos lábios sedentos
Baixou o tirano, que em fúria ardia:
- Amarrem-no, e aos golpes de rábido açoite,
Lacerem-lhe as carnes de dia e de noite,
Até que lhe chegue final agonia.
XXVII
Mas quando a alvorada no espaço raiava,
E os bosques, e os campos, risonha inundava
Das longas delícias do etéreo clarão,
O escravo rebelde debalde buscaram,
Cadeias rompidas somente encontraram,
E a porta arrombada da dura prisão.
[O Suplício]
I
Na hora em que o horizonte empalidece,
Em que a brisa do céu vem suspirosa
De úmidos beijos afagar as flores,
E um véu ligeiro de sutis vapores
Baixa indolente da montanha umbrosa


II
Na hora em que as estrelas estremecem
Lágrimas de ouro no sidério manto,
E o grilo canta, e o ribeirão suspira,
E a flor mimosa que ao frescor transpira
Peja os desertos de suave encanto;
III
Na hora em que o riacho, a veiga, o inseto,
A serra, o taquaral, o brejo e a mata
Falam baixinho, a cochichar na sombra,
E as moles felpas da campestre alfombra
Molham-se em fios de fundida prata;
IV
Na hora em que se abala o santo bronze
Da igrejinha gentil no campanário,
Uma voz lacerada, enfraquecida,
Levantava-se amarga e dolorida
Da sombria morada de Lotário.
 II
Eu vou morrer, meu Deus! já sinto as trevas,
As trevas de outro mundo que me cercam!
Já sinto o gelo correr nas veias,
E o coração calar-se pouco a pouco!

II
Eu vou morrer, meu Deus! minh´alma luta,
E em breve tempo deixará meu corpo...
Tudo em torno de mim foge... se afasta...
Já estas dores não me pungem tanto!
III
Não... meus sentidos se entorpecem. Belo
O meu anjo da guarda me contempla;
Meu seio bebe virações mais puras,
Creio que vou dormir... sim, tenho sono.
IV
Minha mãe!... meu irmão!... eu não os vejo!
Vinde abraçar-me, que padeço muito!
Mas debalde vos chamo... Adeus... adeus
Eu vou morrer... eu morro... tudo é findo...
V
E a voz debilitava-se, fugia,
Como o gemido febril de um rola
Nos complicados dédalos da selva,
Até que em breve se escutava apenas
O estalo do azorrague amolecido,
Sobre as feridas do coalhado sangue
Da pobre irmã do desditoso Mauro.
VI
- Basta! - bradou um dos algozes - basta!
Deixai-a agora descansar um pouc

o,
Repousemos também; meu braço é fraco,
Inunda-me o suor! logo... mais tarde
Logo? estais doudo? a criatura há muito
Que sacudiu as asas.
 - Sim!... é pena.
- Apalpai-a e vereis.
 - Com mil diabos!
Ide ao amo falar, - responde o outro,
Limpando na parede a mão molhada.
VII
Os que este ofício lúgubre cumpriam
Era um branco robusto, olhar sinistro,
Cabeça de pantera; o outro um negro
Possante e gigantesco; as costas nuas
Deixavam ver os músculos de bronze
Onde o suor corria gota a gota.
VII
- Meu senhor...
 - O que queres? fala e deixa-me.
Lotário respondeu voltando o rosto
Ao servo hercúleo que da porta, humilde,
Lhe vinha interromper nas tredas cismas.
- A mulata morreu.
 - Pois bem, que a deixem
E enterrem-na manhã.
 A esta resposta
Decisiva e lacônica, o africano
Retirou-se a buscar seu companhei

ro,
Deixando o potentado, que de novo
Mergulhou-se nas fundas reflexões.
IX
Ao vivo encanto de uma aurora esplêndida
Voltando o rosto a noite despeitada
Cedeu-lhe a criação, e foi ciosa
Esconder-se em seus antros. As florestas
Sacudiam a coma embalsamada,
Onde ao lado da flor o passarinho
Se desfazia em queixas amorosas.
Tudo era belo, radiante e puro,
Palpitante de vida; a natureza
Como noiva feliz, tinha trajado
As mais soberbas galas, e estendia
Os seus lábios de rosa ao rei dos astros,
Que ansioso tremia no oriente
Para libar-lhe seu primeiro beijo.
X
Mas através do manto vaporoso,
Que leve e tênue para o céu se eleva
Nas madrugadas festivais do estio,
Um grupo silencioso caminhava
Pela encosta do monte, conduzindo
Um fardo estranho e dúbio; era uma rede
Nodoada de sangue! um corpo longo,
Rijo, estendido, desenhava as formas
Sobre o sórdido estofo. A madrugada
Que tão linda ostentava-se no espaço,
Tristonha e temerosa, pareci

a
Das vestes alvas afastar a fímbria
Desta cena sinistra e ensangüentada!
XI
Chegando ao topo da montanha, os vultos
Pararam, descansando sobre a terra
O peso mortuário. A natureza
Que provida lançara o encanto e a vida
Ao redor deste sítio, parecia
Ter-lhe Tudo negado. o solo ingrato
Revolto, seco nem sequer mostrava
Uma gota de orvalho; desde a relva
Macia e vigorosa até a urtiga
Nada crescia ali! Triste, solene,
Sobre um monte de pedras, levantava-se
Apenas uma cruz em cujos braços
Dous pássaros beijavam-se gemendo.
XII
- Pega na enxada e cava; disse o homem
Que presidia ao bárbaro suplício
Da pobre irmã de Mauro - abre uma cova
Aqui neste lugar, e bem depressa,
Oito palmos de fundo e três de largo,
Atira dentro o corpo da mulata,
Cobre de terra e calca. Estas palavras
Foram ditas ao negro gigantesco
Que à véspera sorria-se, rasgando
As carnes da infeliz. Depois voltando-se
Aos outros desgraçados: - venham todos,
São horas dos trabalhos! e partiram.

XII
Em breve tempo os golpes compassados
De uma enxada pesada, começaram
A cair sobre a terra, lentamente
Abrindo o último leito da inditosa.
O feroz africano prosseguia
No seu lúgubre ofício sem ao menos
Levantar a cabeça. Alguns minutos
Já tinham decorrido quando em frente
Uma voz retumbante levantou-se
Fazendo ouvir-lhe o nome, o brônzeo monstro
Parou, volveu em torno o olhar selvagem,
E murmurou estremecendo: - Mauro!...
XIV
Sim, era Mauro, e quão mudado estava!
Dias sem luzes, noites sem descanso,
Tinham dez anos lhe roubado a vida!
Naquela fronte cismadora e doce,
Onde luziu resignação outrora,
Passavam nuvens de fatal vingança,
De planos infernais! Naqueles olhos
Donde incessante vislumbrava o gênio,
O gênio que o Senhor prefere às vezes
Sobre a choça lançar do que nos paços,
O gênio que alimenta-se de dores
E vive de amargor, naqueles olhos
Raios de sangue se cruzavam, rápidos!
A face descarnara-se, os cabelos,
Os cabelos, oh! Deus, negros, luzentes,
Em poucos dias alvejaram! Ma

uro
Era uma sombra apenas e uma idéia:
Sombra de dor, idéia de vingança!
XV
Não era o seu trajar o de um escravo,
Nem também de um senhor. Sombria capa,
Grosseira, embora, lhe cobria os ombros
E deixava entrever pendente à cinta
Uma faca ou punhal; largo chapéu
De retorcidas abas inclinava-se
Mostrando a vasta fronte; uma espingarda
Trazia à mão direita. Onde encontrara
O escravo estes recursos? Não se sabe.
Dera-lhe alguém, ou os roubara? Mauro
Era nobre de mais: desde criança
Bebera as leis de Deus dos santos lábios
Do velho missionário, e aprendera
A decifrá-las nos sagrados livros,
Embora a furto, a medo, que ao cativo
É crime levantar-se além dos brutos.
XVI
- Mauro!... de novo estupefato, trêmulo,
Ao aspecto do trânsfuga sinistro
O negro murmurou:
 - Oh! sim, é Mauro!
Bradou aquele adiantando-se; abre
Esta rede depressa, quero vê-la,
Vê-la ainda uma vez, depois... vingá-la!
- É tua irmã...
 - Bem sei. Abre essa rede,
Abre essa rede, digo-te!
 - O afric

ano
Deixou a enxada e foi abri-la. Oh! Deus!
Não era um corpo humano, era um composto
De carnes laceradas, roxas, fétidas,
Inundadas de sangue! Massa informe
De músculos polutos, negro emblema
De quanto há de feroz, bárbaro e tétrico,
Cruentamente horrível! O cativo
Exalou da garganta um som pungente,
Tigrino, e tão selvagem, que o africano
Sentiu um calafrio; ergueu os olhos
Abrasados ao céu, depois sem forças
De joelhos caiu junto ao cadáver
E se desfez em lágrimas ardentes,
Em soluços doridos. Impassível,
Frio como as estátuas indianas,
O negro contemplava este espetáculo
Que abalaria de piedade as pedras,
E susteria as rábidas torrentes
Nas rochas encarpadas!
 - Bem; é tempo,
Basta de inútil pranto! disse Mauro
Erguendo-se do chão; - e tu agora,
- Falou fitando o túrbido coveiro -
Cumpre teu dever!... De novo os olhos
Encheram-se de lágrimas. - Adeus!
Adeus! mísera irmã, tu és ditosa!
Deus te deu a coroa do martírio
Para entrares no céu; a corte angélica
Espera-te sorrindo... e eu inda fico,
E tenho de esgotar até às fezes
A taça envenenada da existência!
 III
Tu passaste na terra como as flores
Que a geada hibernal derriba e mata;

Foram teus dias elos de teus ferros,
E teus prazeres lágrimas!
II
Negou-te a primavera um riso ao menos;
Dos sonhos na estação, nenhum tiveste;
A aurora que de luz inunda os orbes
Te abandonou nas trevas!
III
Alma suave a transpirar virtudes,
Gênio maldito arremessou-te ao lodo!
Buscaste as sendas lúcidas do Empíreo,
E apontaram-te o caos!
IV
A providência que os coqueiros une
Quando a tormenta pelo espaço ruge,
Até o braço de um irmão vedou-te,
Oh! planta solitária!
V
A morte agora te escutou, criança!
Trouxe a alvorada que esperaste embalde,
E adormecida nos seus moles braços
Pousou-te junto a Deus!...
XVII
Assim Mauro falou. Pesada e surda
A enxada do coveiro retumb

ava,
Como o bater funéreo e compassado
Do quadrante do tempo. O foragido
Lançou um olhar piedoso e triste
Sobre os restos da irmã, depois ligeiro
Afundou-se no dédalo das selvas.
[A Vingança]
I
Três vezes percorrido as doze casas
Tem o rei das esferas. É um dia
Brilhante e festival, cheio de júbilo
Nos imensos domínios de Lotário.
A habitação transborda de convivas,
Retroa a orquestra, tudo ri-se e folga,
E os próprios servos no terreiro juntos
Dançam contentes, sem lembrar-se ao menos
Da escravidão pesada. O que há de novo?
Que fato estranho há transformado a face
Desta sinistra e túrbida morada?
Não o sabeis? Roberto hoje casou-se,
Roberto, o filho amado de Lotário
Cujos domínios não abrange a vista:
Feliz três vezes a formosa noiva!
II
A dança, o riso, os brindes e as cantigas
Até à noite vão; quando já débeis
As luzes vacilam nos seus lustres,
E o cansaço abatia os seios todo

s;
Quando convulso o arco estremecia
Nas cordas da rebeca, e os olhos lânguidos
Percorriam os grupos fatigados,
Roberto palpitante de ventura,
Louco de amor, a fronte incandescente
De abrasadas idéias, afastou-se
Do meio dos convivas, e furtivo
Desceu ao campo a respirar as brisas
Embebidas dos lânguidos perfumes
Das noites do verão. Tudo era calmo,
Sereno e sossegado; a natureza,
Num leito de volúpias adormida,
Parecia sorrir-se desdenhosa
Ao júbilo ruidoso que partia
Da casa de Lotário. Pensativo
Roberto se sentou sobre uma pedra
À margem de um regato, abrindo o seio
Ao transpirar balsâmico das flores.
III
Nas noites de noivado, quem se atreve
A deixar o festim, antes que a aurora
Não surja no horizonte? Assim o moço,
Vendo inda longe a hora desejada,
Maldizia essa festa, esses convivas,
Essa ardente alegria, que adversa
Levantava-se entre ele e a noiva amada.
IV
Longo tempo assim ´steve, mergulhado
Nas suas reflexões; quando se ergu

ia
Para voltar à casa, um vulto escuro
A passagem cortou-lhe. O moço, rápido,
Volveu um passo atrás, e sossegado
Deu seu primeiro susto, perguntou-lhe:
- Quem és tu? o que queres?
 Impassível,
O estrangeiro afastou as largas abas
De seu vasto chapéu.
 - Oh! Deus! é Mauro!
Mauro, o que queres? fala!
 - Eis o que quero!
O escravo respondeu vergando o moço
Com seus braços de ferro: - eis o que quero!
- Bradou cruento, amiudando os golpes
Terríveis e certeiros sobre o peito
Do mancebo infeliz; - Eis o que quero!
Repetiu arrastando-o sobre um fosso imundo,
Cheio de lama e apodrecidas plantas:
- Eis teu leito de bodas, boa noite!
V
A orquestra prosseguia, ardente, forte,
Seus ruidosos acordes; dos dançantes
Poucos se achavam do salão no meio,
A maior parte conversava aos cantos
Cansada sonolenta. De repente
Uma escrava lançou-se alucinada
Entre os grupos esparsos dos convivas!...
- Venham! bradava, meu senhor ´stá morto,
Meu senhor já morreu!... venham, acudam!
Um raio que tombasse no edifício
Não produziria tanto horror

um calefrio

Correu nas veias todas, e nos rostos
A palidez do túmulo estendeu-se.
Levantaram-se trêmulos, medrosos,
Acompanhando a escrava, que apressada
Ao quarto de Lotário os conduziu.
VI
Ele estava deitado no assoalho
Inundado de sangue; um surdo ronco
Partia-lhe do seio, e os olhos baços
Uma janela aberta contemplavam,
Como querendo descobrir nas trevas
Um profundo mistério. O quarto cheio,
Repleto de convivas e de escravos,
Retumbou de questões: - onde foi ele?
Como foi? conheceram-no? seu nome?
VII
Lotário apenas, já levado ao leito,
Para a janela olhava, abria os lábios,
Uma palavra ia partir, depois
Vendo baldados os esforços todos,
Soltava um som pungente e cavernoso,
Entre espuma sangrenta, da garganta.
VIII
Duas horas de angústias se passaram.
A morte caminhava passo a passo,
E não tardava a vir sentar-se, lívida,
Do leito do senhor à cabeceira.

IX
Tudo era em vão; cuidados e socorros
Gastaram-se debalde. Um dos cativos,
Montado sobre rápido cavalo,
Correra a ver o médico; era longe
A morada do filho da ciência;
E a sina de Lotário estava escrita!
X
Quando a sombra funérea de além mundo
Começou a turbar-lhe o olhar e o rosto,
Supremo esforço ele tentou; ergueu-se
Por uma estranha força, abriu os lábios
E murmurou com voz lúgubre e funda,
Com essa voz tão próxima dos túmulos,
Que parece partir de negro abismo:
- Também era meu filho!... e extenuado
Caiu sobre os lençóis, rígido, frio,
Já domínio da campa
 Em vão tentaram
O sentido buscar dessas palavras
Que Lotário dissera ao pé da morte,
Em vão tentaram descobrir aquele
Que era também seu filho! densas trevas,
Impenetrável manto de mistério
Cobria esse segredo, e o único lume
Que pudera surgir, o gelo frio
Tinha apagado para sempre! A campa,
Discreta confidente, esconde tudo!