Odysséa de Homero/Palavras necessarias
PALAVRAS NECESSARIAS
Poucos Estados do Brasil poderão desvanecer-se de um patrimonio tão vasto, e tão rico, no dominio das letras, como aquelle que agora inaugura esta Bibliotheca, indice do genio dos seus filhos. Tempo houve, sabem-n’o os estudiosos, em que o Maranhão apparecia como um dos mais respeitados centros de cultura, em todo o paiz. A muralha de pedra que orla o littoral de São Luiz era, então, uma das tribunas mais altas, fonte do verbo mais puro, de onde prosadores, poetas e politicos faziam, entregando-a aos quatro ventos, a semeadura da palavra. Para ser escutado e lido o maranhense não tinha necessidade de vir ao sul ou de ir ao extremo-norte: passavam as portas da sua cidade as correntezas que arrastam as idéas, levando-as no seu curso para serem espalhadas pelo mundo.
O deslocamento do eixo economico do paiz nos dois ultimos decennios do Imperio modificou, entretanto, o destino do Maranhão, isolando-o nas suas fronteiras. Novos centros de cultura surgiram, favorecidos pela facilidade das communicações, pelo surto das industrias, pela prosperidade do commercio, Privado do seu auditorio, o espirito maranhense calou-se. Á surdez de quem ouvia succedeu, como consequencia, a mudez de quem fallava.
O Maranhão jamais esqueceu, todavia, o esplendor do seu passado ou desesperou, jamais, da gloria do seu futuro. Os grandes nomes que esmaltam a sua historia literaria vivem, todos, na memoria e na saudade dos maranhenses de hoje. O Brasil evoluiu, porém, de modo imprevisto, nos Estados do sul. Ondas de homens vindos de fóra formaram uma nova modalidade da raça e, com ella, um novo genio, que creou novas raizes no terreno da tradição. O desapparecimento gradual, nas livrarias, das obras produzidas naquella idade de ouro da intelligencia, contribuiu para o PALAVRAS NECESSARIAS seu olvido. De modo que se fazia mistér um gesto do poder publico, restaurando, para a admiração nacional, as dezenas de livros notaveis em que os maranhenses fixaram as imagens do seu espirito creador, como poetas ou, como estudiosos, a segurança da sua erudição.
Comprehendeu essa necessidade, no anno corrente, o Congresso Maranhense, por suggestão do Presidente do Estado, o Sr. Commandante José Maria Magalhães de Almeida. Louvar, aqui, essa lembrança patriotica e generosa, consubstanciada en acto official, é gesto desnecessario. Espalhada a noticia d’elle por todo o paiz, não houve homem intelligente que o não louvasse, commovido. E se outros louvores faltassem, bastaria, para consagrar a sua benemerencia, a attitude da Academia Brasileira de Letras, onde se ergueram no mesmo dia, requerendo, em nome das letras nacionaes, um voto de applauso e de gratidão ao Presidente maranhense, os Srs. Coelho Netto e Alberto de Oliveira, que são, como se sabe, no Brasil, o maior prosador e o maior poeta do seu tempo.
A inauguração da Bibliotheca de Escriptores Maranhenses com a Odysséa, de Homero, vertida em verso portuguez por Manuel Odorico Mendes, não constitue uma preferencia especial: determina essa escôlha a circumstancia de tratar-se de trabalho inédito, cujos originaes se achavam, desde alguns annos, em poder do governo do Maranhão.
Latinista e hellenista á maneira de Larcher, o qual, na expressão de um dos seus biographos, lia grego todos os dias e, ás sextas feiras, por penitencia, se réduisait au vil latin, Odorico traduziu para o portuguez, na linguagem mais castigada, os mais altos monumentos das duas grandes literaturas antigas. A Eneida, de Vergilio, publicou-a o erudito maranhense em 1854. Reeditando-a em 1858, juntou-lhe as Georgicas e as Bucolicas, enriquecidas de preciosas annotações. Victorioso sobre as difficuldades do verso latino, emprehendeu, então, a traducção de Homero, primeiro com a Iliada, depois com a Odyssea.
A traducção da primeira d’essas épopéas terminou-a Odorico Mendes nos primeiros dias de 1863; e em 1864, em julho, concluia a versão da segunda. Um mez depois, em agosto, morria em Londres esse novo Ulysses, que levara a termo, consumindo nella as ultimas reservas da propria vida, esta soberba aventura.
Do destino dos originaes das duas traducções, dá noticia Antonio Henriques Leal, quando escreve, em nota, no tomo I, pag. 66, do Pantheon Maranhense: "Dois dias depois da morte do irmão, voitou D. Militina irmã do morto) de Londres para Paris, onde arrecadou todos os papeis de Odorico, e de la partiu para o Rio, onde aportou a 17 de novembro do mesmo anno, indo para a companhia do seu irmão Theodoro J. Muller, unico que lhe resta, de tantos que eram. “E adeante, á pag. 97, em outra nota, referindo-se aos mesmos manuscriptos: ”Pretendia o autor publicar esse trabalho de volta ao Brasil, e para auxilial-o, na impressão d’elle tinha a Assembléa Provincial do Maranhão na sua legislatura de 1864 decretado a lei de 14 de março (n. 575), consignando fundos para esse fim. Não foi, porém, esse favor solicitado por elle. Gonçalves Dias, seu amigo e admirador, escreveu-me lembrando a idéa, e eu não descansei até que consegui de amigos prestadios e influentes, que tinha nessa corporação, uma remuneração aliás diminuta a quem tanto fizera pela patria. É com prazer que posso assegurar aos amantes das letras que os herdeiros do poeta vão em breve satisfazer a anciosa curiosidade dos cultores da bôa literatura e admiradores de Odorico, dando á estampa essas obras, cujo manuscripto foi examinado por Sua Magestade o Imperador que o restituiu a imã do poeta ha mais de um anno. Para comprovar esta agradavel noticia, ajunto o que diz o Paiz, do Maranhão, no seu n. 14, de 1.º de fevereiro do anno corrente."
Vinha, em seguida, a transcripção da referida noticia d’O Paiz, do Maranhão, daquelle anno (1873), e que é esta: "Estão lembrados que por occasião da viagem de Sua Magestade o Imperador pela Europa, correu o boato de que deixara elle a imprimir-se em Leipzig esse monumento erguido pelo illustre poeta maranhense ás letras patrias. Não passou isto de pura invenção, como depois se verificou. Agora, porém, podemos afiançar que os Herdeiros de Odorico Mendes estão mandando imprimir no Rio de Janeiro a traducção da Iliada e da Odysséa, e tanto é isto mais certo que o Sr. Dr. Antonio Henriques Leal deu ordens a seu procurador n’esta cidade, o Sr. Luiz Antonio Vieira, para levantar da casa dos Srs. Manuel Nina Irmão a quantia que da Assemblea Legislativa alcançára para auxiliar essa impressão, e recebera do Thesouro Provincial. Remette o Sr. Luiz Antonio Vieira ao Sr. Antonio Henoch dos Reis no vapor Cruzeiro do Sul, que sae hoje para o Rio de Janeiro, essa quantia, que monta a 6: 595$268 réis, e vae ser entregue á irmã e tuhos do nosso venerando literato. O saque é pela casa do Sr. José Moreira da Silva, no valor de 6: 590$268 reis, deduzidos da quantia retro 5$000 réis para sello da letra. Folgamos, pois, de annunciar aos amantes das boas letras que dentro em breve poderão recrear-se coni a leitura da primeira traducção portugueza das obras de Homero, feita sobre o original grego."
No anno seguinte, 1874, appareciam, effectivamente, no Rio de Janeiro, os primeiros exemplares da Iliada, "em verso portuguez, por Manuel Odorico Mendes, da cidade de S. Luis do Maranhão", da qual, segundo se lê no frontespicio, era “editor e revisor Henrique Alves de Carvalho, tambem natural do Maranhão ”. Era impressa na Typographia Guttemberg, praça da Constituição, n. 47, e continha 312 paginas.
Onde estaria, porém, a Odysséa?
O destino dado a essa traducção de Odorico Mendes constituiu, durante muitos annos, objecto de curiosidade e de pesquisas por parte dos estudiosos, até que, em 1912 ou 1913, foi ella ter, com outros papeis do hellenista maranhense, ás mãos do senador Urbano Santos, offerecida por um dos herdeiros do traductor. Comprehendendo o valor d’aquella reliquia literaria, o senador Urbano Santos doou-a á Bibliotheca Publica de S. Luis, para ser opportunamente editada. Em 1925, perdurando a situação angustiosa do Thesouro Publico, o Presidente do Estado, Dr. Godofredo Vianna, entregou, pessoalmente, os originaes á Academia Brasileira de Letras, para que tirasse d’elles uma copia, e publicasse a obra. A Academia, porém, não editou Odorico. E estava a sua traducção condemnada a permanecer inedita e a cahir de novo no olvido, quando o Congresso Maranhense, por iniciativa do actual Presidente do Estado, a quem.o Maranhão já devia a repatriação dos ossos do Homero Brasileiro, votou a lei n. 1.302, de 31 de março de 1928.
Annunciando a remessa de recursos para publicação da Iliada e da Odyssea, escrevia Antonio Henriques Leal no Pantheon Maranhense, em 1873: "Venham breve essas joias literarias engastar-se explendidas na opulentissima corða artistica das duas nações irmãs; dando ao mesmo tempo irrefragavel testemunho de que, sob aquellas neves, que lhe branqueavam a cabeça, ardiam frementes o amor ao trabalho e o dezejo de ser util, e que nesse inverno tão adeantado espanejavam-se ainda serodias flores de donosa e festiva primavera."
A ultima pedra aqui está. Engasta-a, pelas mãos do seu Congresso e do seu Presidente, o Estado do Maranhão.
HUMBERTO DE CAMPOS.
Da Academia Brasileira de Letras.