Odysséa de Homero/VIII
LIVRO VIII
Do éter assoma a dedirrósea filha;
Ergue-se o rei, presenta o egrégio Ulysses
Ante as naus ao congresso convocado,
E a par assentam-se em polidas pedras.
Cuidadosa do urbífrago Laércio,5
Palas, de Alcino o arauto semelhando
Na cidade apregoa: «Ao foro, ao foro;
Um de vulto imortal ide ouvir, chefes,
Que hospede Alcino recolheu das vagas.»
Incitados, a praça e os bancos enchem.10
Mirando aquele em cuja fronte e espáduas
Graça divina despejou Minerva;
Mais guapo o fez e esbelto e majestoso,
Para que, a todos formidando e grato,
Nos certames de si desse alta prova.15
Conciona grave na assembléia Alcino:
«O que hei no peito, príncipes, declaro.
Veio-me á casa este hospede errabundo,
Se do Oriente ignoro ou do Ocidente,
Mas passagem me pede e que a fixemos.20
A ida se lhe apresse; um forasteiro
Nunca em meu lar se lastimou retido:
Novo negro baixel ao mar divino,
Cinqüenta e dous receba exímios nautas.
Ligados presto os remos aos toletes,25
Eia, a lauto festejo compareçam.
No me falheis, cetrados: convidai-me
Demôdoco imortal, que em estro aceso
Por Jove, entoa cânticos melífluos.»
Ei-lo, avança; os cetrígeros o escoltam,30
O arauto corre ao músico sublime.
Cinqüenta e dous se elegem, que submissos
Vão-se á praia e o navio deitam n’água,
Alçam mastro, içam velas, prendem remos
Com atilhos de coiro, e tudo prestes,35
Abrindo o pano, o lenho põem de largo;
Passam depois ao régio nobre alcáçar,
Salões, atrios, vestíbulos se atulham
De mancebos, de velhos, turba imensa.
Alcino doze ovelhas e oito porcos40
De alvos dentes immola e dous refeitos
E flexipedes bois, que os mais esfolam,
Deleitoso banquete aparelhando.
Conduz Pontono o vate aceito á Musa,
Que o cegou, mas lhe deu canto suave45
E do bem e do mal o entendimento;
Num trono o põe de prata cravejado,
Numa coluna o encosta, e lhe pendura
Sobre a cabeça em prego a doce lira
E de a tomar indica-lhe a maneira;50
Pousa-lhe um canistrel em mesa ornada,
Com cheia copa que á vontade empine.
Atiram-se aos manjares os convivas.
Expulsa a fome e a sede, a Musa instiga
O poeta a cantar guerreiro canto,55
Cuja fama ás estrelas se exaltava;
A rixa era de Ulysses e de Aquiles,
Com ditos agros num festim sagrado;
E o rei dos reis folgava, porque entrando,
No estrear Jove a lide Grega e Teucra,60
Do Pítio Apolo no marmóreo templo,
O oráculo a vitória prometeu-lhe,
Dês que os melhores Dânaos contendessem.
Prossegue o vate, a Ulysses á cabeça
Com força deita o purpurino manto,65
Para encobrir nas morenadas faces
As lágrimas que a pares borbulavam.
No intervalo da música, as enxuga
E desce o manto, liba ás divindades
Na bicôncava taça; quando, a rogos70
Dos que a toada e a letra enamorava,
O bom cego as repete, o herói suspira
E, tornando a embuçar-se, esconde o choro.
Junto, o percebe o rei: «Feaces, basta.
Nós, de iguarias cheios e de acorde,75
Glória e adorno da mesa, ao foro andemos:
Narre o estrangeiro aos seus quanto habeis somos
Em luta e pugilato, em salto e curso.»
Marcha, e os grandes com ele; ao prego a lira
Suspende o arauto, e á cola guia o cego80
Dos que iam divertir-se nos certames,
De infinita caterva acompanhados.
Jovens de pulso, Anquíalo, Acronio,
Nautes, Elatreu, Ocíalo, se ergueram,
Pronteu, Proreu, Toon, Prines, Eretemes,85
Anabesinco, Anfíalo progênie
De Polineu Tectômides; nem faltam
O igual de Marte Euríalo, o formoso
E esbelto Naubólides mais que todos,
Fora o guapo Laodamas; este alçou-se90
Também com seus irmãos, de Alcino ramos,
Hálio gentil e Clitoneu galhardo.
Começam pelo curso, e da barreira
Entre nuvens de pó rápidos voam:
Quanto um pousio arando excedem mulas95
A bois tardonhos, Clitoneu bizarro
Pretere os outros e regressa ao povo.
Anfíalo em saltar, no disco Elatreu,
Vence Euríalo os mais na acerba luta,
Na punhada Laodamas, que no meio100
Do regozijo brada: «Amigos, vinde,
Perguntemos se o hospede é nos jogos
Exercitado: o corpo tem fornido,
Pernas, coxas, pescoço, espáduas, punhos;
Inda é verde, sofresse embora há pouco105
O trabalho do mar, que tanto custa
E do varão mais rijo as forças quebra.»
Euríalo aprovou: «Pois bem, Laodamas,
Vai tu mesmo incital-o.» Eis ante Ulysses
Tem-se o filho de Alcino: «Hospede padre,110
Entra, se os aprendeste, em nossos ludos;
Quadram-te á maravilha: é do homem timbre
De pés e mãos valer-se denodado.
Bane a tristeza, partirás em breve;
Em nado é teu baixel e os vogas prontos.»115
Mas o astuto: «Laodamas, tu provocas
A que zombem de mim? Não penso em ludos,
Penso na dores que passei tamanhas;
A volta mendigando, ao rei depreco
E ao popular congresso.» Em face o ataca120
Súbito Euríalo: «Hospede, não cuido
Que nos certames dos varões te exerças;
Menos atleta válido pareces
Que de marujos traficante mestre,
A especular na carga e mercancia125
Da remeira galé, de roubos arca.»
Torvo Ulysses o mede: «E tu pareces
Doudo varrido a proferir dislates.
Nem tudo Jove dá; beleza nega,
Ou loqüela, ou juizo: um não formoso130
Com suave eloqüencia orna o semblante,
E olhado com prazer, modesto e firme,
No parlamento se insinua e reina,
E na rua e na praça um deus o aclamam;
Outro, gentil como íncolas celestes,135
Insulso é no exprimir-se. Tu, mancebo,
Nobre és de aspecto, mas no tino falhas;
Com teu parlar minha alma exacerbaste.
Não me creias ignaro dos certames;
Da idade no vigor fui dos primeiros:140
Hoje o pesar me oprime, e o que hei passado
Na guerra e em salsas vagas; mas embora,
Meu coração mordeste, os jogos tento.»
Aqui, de manto mesmo, um grosso aferra
Disco muito maior que os dos Feaces145
O peso a revoltões zunindo expede:
Bem que pujante a chusma a remo e vela,
Se agacha ao tiro, e sobrevoa a pedra
Salvando as marcas todas. — Palas uma
Logo fixando, em vulto humano fala:150
«Pode, hospede, apalpando qualquer cego
Teu sinal discernir, que é nímio avante
Sem confusão dos mais; nenhum Feace
Tirar-te-á do lanço, eu to aseguro.»
O herói folga de tal benignidade,155
E brando ajunta: «Á liça agora, moços;
De novo jogarei, talvez mais longe.
Vós me irritastes, a ninguém recuso;
Ao cesto, á luta, ao curso, desafio
Todos, menos Laodamas, que hospedou-me:160
Pelejar com o amigo, é de um vil néscio;
Quem quer que o tente num país estranho,
O jus perde ao respeito e a beneficios.
Nenhum temo ou desprezo; ás claras venha
O que me julgue imbele experimentar-me.165
No arco mormente primo; sei na turba
De hostis frecheiros num dos seus a farpa
Á vontade empregar: nos campos Tróicos
Só me vencia o archeiro Filoctetes;
Entre os mortaes que o pão da terra, comem,170
Gabo-me e prezo de lhe ser segundo.
Com prístinos varões não me comparo,
Com Hércules e Êurito Ecaliense,
Que na sua arte aos numes se atreviam:
O grande Êurito foi de curta vida,175
ímpio desafiando o iroso Apolo.
Meu dardo alcança como de outro a seta.
Só receio os Feaces na carreira,
Das ondas nimiamente quebrantado:
Nem sempre era o navio bem provido,180
E frouxos tenho os trabalhados membros.»
Ao silêncio geral sucede Alcino:
«Tens hospede, razão de te agastares
Contra esse audaz, e a peito o provar tomas
De constante valor munido seres.185
Que homem sisudo nunca mais te argua.
Ouve-me, outra impressão de nós conserves,
Para, ao festim com tua esposa e filhos,
Contares aos heróis quais prendas Jove
Desde avós nos transmite: em luta e cesto190
Não somos extremados, sim ligeiros
E na marinha exímios; o banquete
Nos praz, coréia e música, a mudança
De vestidos, bom leito e quentes banhos.
Bailai vós, peritissimos Feaces;195
O hospede narre aos seus quanto excelemos
Em navegar, em pés, em dança, em canto.
Corra alguém, e a Demôdoco da regia
Depressa traga a cítara sonora.»
Pontono corre. Os públicios do circo200
Nove eleitos juizes, levantados,
O lugar aplanando, o espaço alargam.
O arauto volta; a cítara o poeta
Recebe, a quem na arena adolescentes
Cercam destros e airosos, em cadencia205
Pulsando o chão divino: absorto Ulysses
O enredo, o passo, a rapidez contempla.
Demôdoco depois dedilha e canta
Como furtiva a coroada Vênus
Uniu-se a Marte, que o Vulcânio toro210
Maculou com mil dons peitando a esposa.
Pelo Sol advertido, o grão ferreiro
Parte, vingança a meditar profundo;
No cepo encava a incude, laços forja
Que desdar-se não podem nem romper-se.215
Mal os conclui, á câmara caminha
Do seu leito amoroso; uns aos pés liga,
Outros ao sobrecéo, com tanta insídia,
Que de aranha sutil quais teias eram,
Mas a qualquer celícola invisíveis.220
Armada a fraude, simulou viagem
De Lemos á carissima cidade.
Marte, cujos frisões têm freios de ouro,
Não obcecado, o fabro viu partindo;
Veio-lhe presto á casa, cobiçoso225
De gozar Vênus bela: esta pousava
De visitar o genitor Satúrnio;
Pega-lhe o amante na mimosa destra:
«Vazia a cama está; Vulcano é fora,
Aos Síntios foi-se de linguagem bronca.»230
Ei-los ao leito jubilando ascendem,
E nas malhas do artista se emaranham;
Nem desatar-se nem mover-se podem,
Sem ter efúgio algum. Torna Vulcano,
Antes que a Lemos chegue; o Sol o avisa.235
Ao seu pórtico pára angustiado,
Urro esforça raivoso, que no Olympo
Retumba horrendo: «Ó Padre, ó vós deidades,
Vinde rir e indignar-vos desta infâmia.
Por coxo a Dial Vênus me desonra,240
Amando ao sevo Marte, que é perfeito:
Se esta iesão me afeia, é toda a culpa
De meus pais, que gerar-me não deviam.
Vêde-os, oh! triste aspecto como dormem
No meu leito enleados; mas duvido245
Que em seu ardor jazer assim desejem.
Meu laço os reterá, té que haja o dote
E os dons feitos ao pai, que deu-me a filha
De formosura exemplo e de inconstância.»
No éreo paço Vulcânio já Neptuno,250
Mais o frecheiro Febo e o deus do ganho,
As deusas de pudor não comparecem;
Do pórtico os demais, ás gargalhadas,
O dolo observam do prudente mestre,
Olham-se e clamam: «Da virtude o vicio,255
Do inferno o lesto e forte é suplantado;
O manco aos mais veloz prendeu com arte,
Pague o adúlterio a multa.» Apolo ao núncio
De bens dador voltou-se: «Quererias,
Filho de Jove, assim dormir nos braços260
Da áurea Ciprina?» Respondeu Mercurio:
«Oxalá, Febo Apolo, ao pé de Vênus
Vós me vísseis dormir, e as próprias deusas,
No tresdôbro dos fios envolvido.»
Renovou-se a risada; mas Neptuno265
Sério ao mestre pediu que solte a Marte:
«Solta-o; prometo que a teu grado e á risca
Hajas a multa aos imortaes devida.»
«Rei, contesta o aleijado, não mo ordenes;
A caução para o fraco é fraca sempre:270
Como eu te obrigaria, se elle escapo
Se recusasse?» Então Neptuno: «Marte
Se renuir, pagar-te-ei, Vulcano.»
Rende-se o ínclito coxo: «Não me é dado
Negar-to.» E os laços desliou de um toque.275
Os réos fugiram: para a Trácia, Marte;
Para Pafos Ciprina, a mãe dos risos,
Que ali tem bosque e recendentes aras.
Banhada em óleo divinal ungida,
As Graças do mais fino a paramentam.280
Ulysses da harmonia se recreia,
E a gente em roda. Alcino bailar manda
Laodamas e Hálios sós, que a palma levam:
Um, curvo atrás, ás nuvens roxa pela,
Que fez Pólibo, alteia, e outro, a pulo,285
Antes que aos pés lhe caia, a encontra e joga;
A alma terra ao depois, tripudiando,
Alternos batem, com geral aplauso.
O estrépito sossega, e Ulysses fala:
«Bem gabaste na dança os teus Feaces;290
Estou, potente rei, maravilhado.»
Alegre Alcino: «Príncipes, decerto
É sábio e dons merece. Há cabos doze,
E eu treze: cada qual brinde-lhe um manto
Rico e túnica nova e áureo talento,295
E junto obtenha tudo e á ceia folgue;
A injuria apague Euríalo e o congrace
Com palavras e dádivas» — De grado
Seu próprio arauto unânimes despacham,
E Euríalo obedece: «De vontade300
Quero aplacal-o, ó maioral dos povos;
Haja esta brônzea espada com bainha
De recente marfim e argênteos punhos,
Digna dele.» E ao passá-la: «Ó veneravel,
Espalhe o vento irrefletidas vozes.305
Longo há fora dos teus, hospede, os numes
Restituam-te á patria e á mulher cara.»
«Salve, Ulysses responde, e sê ditoso.
Nunca, jovem amigo, a falta sintas
Do presente que afavel me concedes.»310
Aceita e cinge a espada claviargêntea.
O Sol transmonta, e as dádivas afluem
Que ao real paço arautos conduziam;
De Alcino os filhos as recebem logo
E á mãe vão reverentes presentá-las;315
O pai á casa os principais convida,
Senta-os em tronos, volve-se á rainha:
«Traze, mulher, tua arca a mais luzente,
Boa túnica e um manto; ao lume aqueçam
Caldeira para banho. Ele gozoso320
Os dons remire dos heróis Feaces,
Divirta-se ao banquete e os hinos logre.
Dou-lhe em memória uma áurea fina taça,
Por onde libe á Jove e á corte sua.»
Ela ordena; uma trípode as escravas325
Põem ao fogo e por baixo lenha acendem;
A água, lambendo a labareda o bojo,
Ferve em caixões... N’arca louçã, que trouxe,
Dos Feaces a roupa e o ouro mete,
Mais a túnica e o manto: «A tampa, adverte,330
Hospede, esguarda; em nó seguro a feches,
Para ninguém lesar-te na viagem,
Quando em ferrado sono a bordo pegues.»
Na tampa o cauto herói passa um nó firme,
Invenção da engenhosa augusta Circe.335
Da caseira a banhar-se convidado,
Entra a prazer em tina de água morna;
Pois tamanha delicia não gozava,
Dês que a ilha deixara de Calypso,
Onde elle como um nume era tratado.340
Lavam-no, ungido vestem-lhe as escravas
Túnica e manto, e sai para entre os cabos
Vinhos saborear. Então Nausica,
Beleza divinal, chega á soleira
Da magnífica sala; atenta Ulysses,345
Admira-o, diz veloz: «Hospede, salve;
Lá mesmo em teu país de mim te lembres,
De mim primeira em te guardar a vida.»
Respondeu-lhe: «De Alcino ínclita filha.
Assim de Juno o altíssono consorte350
A luz ver da partida me conceda,
Como hei de lá qual déa honrar-te sempre,
A ti que me salvaste, ó nobre virgem.»
E junto ao rei sentou-se, quando as peças
Partiam já e o vinho misturavam.355
Com o amavel cantor o arauto vindo,
No meio o encosta á sólita coluna.
A porção mais sucosa rasga Ulysses
Do pingue dorso de albidente porco:
«Toma, a Demôdoco isto leva, arauto;360
Quero na minha dor mostrar que o prezo.
Os poetas venera e afaga a terra,
Caros á Musa, que os doutrina e inflama.»
Jubilando o cantor a offerta aceita,
E começa o banquete aparatoso.365
E a Demôdoco Ulysses, finda a ceia:
«Eu te respeito sobre os homens todos;
A Dial Musa ou Febo é quem te inspira.
Cantaste os casos e aflições dos Dânaos,
Como se própria testemunha fosses,370
Ou de uma o ouvisses. Canta-me o cavalo
Que da madeira Epeu fez com Minerva,
Do Laércio ardiloso introduzido,
Prenhe de heróis que Pérgamo assolaram:
Exato sejas, e aos mortaes proclamo375
Que um deus influi e te modula os hinos.»
Ei-lo, em furia sonora; entoa o como.
As tendas abrasando, uns Gregos vogam,
E outros, sujeitos ao facundo Ulysses,
Ficam no amplo cavalo, que puxaram380
Da fortaleza a dentro os mesmos Teucros.
Estes confusos em redor concebem
Três projetos, brocar a bronze o lenho,
Ou do castelo abaixo despenhal-o,
Ou santo voto oferecê-lo aos numes:385
O ultimo ymphausto parecer adotam;
Fado era que a ruína em lígneo bojo
A escolha dos Aqueus levasse a Tróia.
Canta o como, vazio o cavo engano,
Ílio os esparsos Dânaos depredaram;390
Como, enquanto a cidade vai acesa,
Outro Mavorte, o Ítaco, á Deifobéia
Estância foi com Menelau divino,
E ali, travada aspérrima contenda,
Coroou-lhe a vitória a Protetora.395
Ao cântico do vate, as maçãs rega
Debulhando-se em lágrimas Ulysses:
Qual em braços o esposo a mulher chora
Que o viu cair em vascas moribundo
Ante a muralha, os cidadãos e os filhos400
Ao sevo dia subtrair tentando,
E em ais e em gritos sobre o seu cadaver,
Dos soldados, que o tergo lhe escalavram,
Na amargura e na dor é constrangida
A cruel cativeiro; tal carpia405
O Laércio infeliz. Sómente Alcino,
Sentado ao pé, seu suspirar percebe:
«Cale o poeta, ó chefes, o instrumento,
Pois nem todos se alegram do seu canto:
Findo o repasto, á musica atendendo,410
Mesto sempre nosso hospede soluça;
Poupar seu luto cumpre e distrai-lo
Por elle é que esta festa preparamos,
Com generosos dons, segura escolta:
É vero irmão para as sensíveis almas415
Um súplice estrangeiro. Agora, amigo,
Toda a franqueza: como dos vizinhos
Eras chamado? o bom e o mau têm nome
Que seus pais á nascença lhe impuseram.
Qual é tua terra e gente me declares.420
A fim que a nau medite na viagem:
De mestre e leme as nossas não precisam,
Pensam, calculam, como a raça humana,
Quaisquer povoações e campos sabem,
Por entre o nevoeiro as vagas tranam,425
Sem temor de soçôbro ou de avaria.
Previu porém meu pai que, da passagem
E do socorro aos náufragos Neptuno
Azedo, um nosso galeão de volta
Sumiria no pelago, á cidade430
Um monte empinadissimo afrontando.
Se há de ou não preencher-se o vaticínio
Pertence ao deus. Mas sem refôlho narra
Que praias tens corrido, que paragens
E regiões trilhado; quais das tribos435
Agrestes eram, bárbaras e injustas;
Quais, tementes á Jove e hospitaleiras.
Porque em segredo gemes, as desgraças
Dos Gregos e dos Teucros escutando?
O Céo quis sucumbissem tais guerreiros,440
Para matéria a pósteros poemas.
Junto a Ilion morreu-te algum parente?
Morreu-te um genro, um sogro, os mais diletos
Após os consangüíneos? ou pranteias
Um camarada? o socio íntimo e sério445
Não é menos que irmão no amor e estima.
NOTAS AO LIVRO VIII
71-78 — Homero não diz, como alguns tradutores, que só a toada agradava aos ouvintes; a letra sobretudo é que entristecia a Ulysses. O verbo enamorar, Constâncio o dá por antiquado e Gonzaga, autor que nunca sai da linguagem do tempo de Garção e Denis, traz enamorar, no translato, em que é comumente empregado de preferencia a namorar. E este ultimo tem menos nobreza no sentido próprio; diz-se, por exemplo, a moça namora a todos, e não enamora a todos; além de que, a primeira oração mostra sempre que é a moça que procura agradar, quando a segunda pode mostrar que ela é a todos agradavel sem buscar sê-lo. — Homero, parece-me, distingue o saltar do dançar: nos jogos públicos, houve exercicio de luta, carreira, pugilato e salto; a dança propriamente dita foi ao depois que mandaram vir a lira de Demôdoco, e mereceu louvor especial de Ulysses.
106-115 — O verso 106 é de Camões, canto VI, na fala de Veloso. O meu verso 115 diz que o navio estava em nado, ou que tinha sido lançado ao mar: não sei por que Pindemonte usa de varar, que é o contrário do texto.
121-126 — A insolència de Euríalo tem dobrado merecimento: primeiro, serve para preparar a quase declaração de Ulysses e mover o desejo de lhe ouvirem as aventuras; segundo, faz aparecer a disposição da chusma não favoravel aos estrangeiros. Ainda que Euríalo pertencia aos grandes, o que representa a preocupação popular contra os vindiços; porque esta preocupação, quando geral, até penetra nas classes elevadas; e em todos os tempos houve na aristocracia quem, ao menos na aparencia, adotasse a opinião da maior parte.
359 — Albidente é de óbvio sentido: Pindemonte, para o italiano, compôs o adjetivo dentibianco neste mesmo lugar.
392-395 — Dá Homero a primazia a Ulysses, pondo Menelau como seu ajudante, para assim realçar a valentia do seu herói, e para que a este mais comovesse Demôdoco. M. Giguet, aliás fiel em quase tudo, verteu: la vitoire que leur assura Pallas. Mas Homero como que de propósito mete Menelau na sombra, deixando brilhar a figura de Ulysses, e usando sempre do singular; o plural leur diminui a delicadeza do poeta.