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Os óculos de Pedro Antão

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Três causas diversas podem aconselhar o uso dos óculos. A primeira de todas é a debilidade do órgão visual, causa legítima, menos comum do que parece e mais vulgar do que devia ser. Vê-se hoje um rapaz entrado na puberdade e já adornado com um par de óculos, não por gosto, senão por necessidade. A natureza conspira para estabelecer o reinado dos míopes.

Outra causa do uso destes auxílios da vista é a moda, o capricho, ou, como diz Rodrigues Lobo, a galantaria. O ameno escritor exprime-se deste modo: “Assim é que até óculos, que se inventaram para remediar defeitos da natureza, vi eu já trazer a alguns por galantaria”. Efetivamente quem quiser passar por verdadeiro homem do tom deve trazer, não direi óculos fixos que é só próprio de sábios e estadistas, mas estas famosas lunetas-pênseis, que são úteis, cômodas e graciosas, dão bom aspecto, fascinam as mulheres, servem para os casos difíceis e duram muito.

Da terceira causa quem nos dá noticia é nem mais nem menos o gravíssimo Montesquieu. Diz ele: “Os óculos fazem ver demonstrativamente que o homem que os traz é consumado nas ciências, por modo que um nariz ornado com eles deve ser tido, sem contestação por nariz de sábio”. Conclui-se disto que a natureza é um causa secundária dos estragos da vista e que o desejo de parecer ou de brilhar produz o maior número dos casos em que é necessária a arte dos Reis.

Está já o leitor um pouco atrapalhado com este intróito que lhe parece mais de folhetim que de romance ou então pergunta consigo mesmo a qual destas coisas atribui eu os óculos de Pedro Antão. Isto não é folhetim, nem romance: é uma narração fiel do que me aconteceu há cerca de três anos: é crônica. Quanto a Pedro Antão é positivo que os seus óculos deviam ter por causa o enfraquecimento da vista; mas ainda assim não lhe posso afirmar nada, porque Pedro Antão, que eu não conheci, foi o homem mais singular das tais crônicas, viveu recluso durante a vida inteira e mal consta alguma coisa dos seus primeiros anos.

Há cerca de três anos, como dizia, recebi a seguinte carta do meu amigo Mendonça:

Pedro. Recebi hoje as chaves da casa de meu tio; vou abri-la. Queres acompanhar-me? Não penses que é por medo de lá entrar só; é porque eu sei que tu tens interesse e gosto em penetrar nos negócios misteriosos: e nada mais misterioso que a casa do famoso tio. Vem ao meio-dia. Teu Mendonça.

A minha resposta foi a seguinte:

José. — Vou, mas não ao meio-dia. Entrar em casa misteriosa, quando o sol está no zênite, é anacronismo. Irei às 11 horas da noite, e à meia-noite em ponto entraremos na casa do defunto. Teu Pedro.

Perto das 11 horas, depois de ter dito à família que ia ver um doente grave, por eu ser médico e costumo ver doentes à noite, investi para casa de Mendonça, que era na Rua do Areal.

Mendonça estava ceando; comi com ele um pouco de fiambre e de assado frio, engoli dois cálices de Madeira, tomei uma xícara de chá saboroso como aquele chá da comédia de Garção, e à meia-noite menos vinte minutos, saímos para ir ver a casa de Pedro Antão.

Pedro Antão tinha morrido dez meses antes; achou-se-lhe um testamento em que deixava a casa, os livros e mais objetos ao sobrinho Mendonça — com a condição de que só tomaria conta da casa dez meses depois. Mendonça estava então no boulevard dos Italianos, único sítio de Paris que conheceu e conhece a fundo, quando recebeu esta notícia. Riu muito da singularidade do tio, e veio ao Rio de Janeiro expressamente para tomar conta da casa. Aguardou religiosamente o termo da posse, e no dia 23 de março de manhã recebeu oficialmente as chaves que ansioso esperava.

A chave e a fechadura resistiram com força aos esforços que o Mendonça e eu fazíamos para abrir a porta. Felizmente vinha conosco um latagão, criado de Mendonça, sujeito que se gabava de não encontrar porta nem mulher que lhe resistisse. Arremeteu o sujeito com um denodo raro, e a porta gemeu e daí a alguns minutos estávamos no corredor. Aí despedimos o criado, depois de alguma oposição de Mendonça, que afirmava ser necessário ter mais alguém conosco. O criado saiu, e eu encostei a porta. Acendemos então uma das velas que trazíamos para o caso, e subimos uma escada velha e úmida que ia ter ao primeiro andar.

Não foi fácil a subida, porque, de quando em quando, surgia de um lado um rato, que esbarrava em nossas pernas e duas ou três baratas, assustadas com os inquilinos, voaram de um lado para outro, indo esbarrar nas paredes, e escorregando depois até o chão. Além disso, sentíamos aquele mau odor que exala de uma casa fechada durante muito tempo. Felizmente, Mendonça tivera a precaução de trazer consigo plantas e pós aromáticos, que queimamos na sala de visitas apenas lá entramos.

Mendonça achou-se mal ali dentro. Era um elegante de primeira classe, amigo do conforto, ao passo que eu, sem deixar de amar a comodidade e o asseio, estava disposto a aproveitar aquela página de romance tétrico que se me afigurava ver no interior da casa misteriosa.

— Vê lá, disse Mendonça, onde queres que nos sentemos?

— Nestas cadeiras.

— Sujas como estão?

— Limpam-se.

— Quem as há de limpar?

— Eu.

Mendonça levantou os ombros; eu tirei da algibeira dois lenços e com eles limpei o melhor que pude duas cadeiras das que ali se achavam.

Mendonça viu-me fazer esta operação com um sorriso de homem resignado a tudo.

— A casa não é má, disse eu, sentando-me em uma das cadeiras para lhe dar exemplo; e a mobília pode ser restaurada. Teu tio tinha gosto.

— Vamos ver o resto da casa, disse Mendonça.

— Espera.

— Esperar o quê? ficaremos agora a contemplar a sala?

— Pareces-me tolo, respondi; tu queres a herança do tio, e eu quero conhecer o homem. A sala é um primeiro indício. Vês este painel sobre a mesa?

Mendonça aproximou-se da mesa.

— Vejo, disse ele, é a Madona da cadeira.

— Cópia de Rafael. Já por aqui sabemos que o homem amava as artes. A cópia não é má, e a moldura é severa.

— Cá temos outro painel, disse Mendonça apontando para a parede.

Subi ao sofá e aproximei a luz do quadro.

— Não conheço este, disse eu.

— É um Velásquez, disse Mendonça; vi um igual em casa do conde de Chantilly.

— Que conde é esse?

— Não era conde, respondeu Mendonça acendendo um charuto; chamávamo-lo assim por ser um dos primeiros heróis das corridas de Chantilly.

— Aposto que morava no boulevard...

— Dos Italianos.

Acendi também um charuto enquanto Mendonça me contava uma aventura parisiense em que entravam ele, o conde e uma estrela do bosque de Bolonha. Deixei que a conversa levasse esse caminho, porque era o meio de reter o meu companheiro.

Já vês, disse eu voltando ao meu assunto, já vês que teu tio tinha gosto; Rafael e Velásquez são alguma coisa. Vamos ver o resto da casa.

Seguia-se outra sala menor que a primeira, onde nada havia que seja digno de nota. Apenas vimos sobre uma mesa um cachimbo alemão, que necessariamente devia ter pertencido ao Cavaleiro Teodoro Hoffmann, pois a sua forma era de todo fantástica. Representava uma figura do diabo, com chapéu de três bicos, cruzando as pernas, que eram de cabra.

— Olé! disse Mendonça; o tio fumava!

— Parece que sim; e o cachimbo não me parece ortodoxo.

— Pelo contrário, respondeu Mendonça; não pode ser mais ortodoxo do que é; meter fogo na cabeça do diabo não te parece digno de um servo de Deus?

— Tens razão! disse eu sorrindo.

Mendonça readquiria o seu bom humor e era isso justamente o que eu queria. Se não fosse assim, era provável que nos fôssemos embora dentro de dez minutos. Agora estava tranqüilo; quando Mendonça estava de bom humor obedecia a tudo.

Depois de examinarmos o cachimbo que, além daquela não oferecia nenhuma particularidade, seguimos por um corredor e fomos ter à sala de jantar. Esta como outras salas e quartos da casa, nada tinha que se parecesse com mistério. Passando por um dos corredores vimos uma escada que ia ter a um sótão. Subimos. No meio da escada, Mendonça estacou; ouvira um rumor em cima.

— São ratos, disse-lhe eu.

— Serão? perguntou Mendonça empalidecendo um pouco.

— Querias que fosse a alma do Antão?

Subi afoitamente; Mendonça, envergonhado, subiu também. A coragem de muita gente não tem outra explicação. Não é sempre por valentia que os homens são valentes, diz La Rochefoucauld.

Vasto era o sótão. Compunha-se de uma sala de estudo e de escrita, uma alcova na frente, e uma vasta sala no fundo. Era por assim dizer um segundo andar.

O que primeiro examinamos foi a sala da frente cuja mobília se compunha de algumas cadeiras, uma secretária, duas estantes, um sofá, tudo como qualquer mortal pode ter. Havia sobre a secretária dois bustos de mármore, e aqui começa o fantástico: uma era a cabeça de Cristo, outra a de Satanás. Cristo estava à direita, Satanás à esquerda.

— Bravo! exclamei; vou penetrando no homem. Achas ainda alguma ortodoxia nesta aproximação de bustos?

Mendonça, que estava enlevado no primor da escultura, respondeu:

— Toda.

— Explica-te.

— O tio juntava-os para emblema da vida humana, que se compõe do mal e do bem; o bem está aqui para corrigir o mal. É o Ceci tuera cela, de Vítor Hugo.

— Está feito; tu explicas tudo. Mas é porque aqui a simetria das coisas te favorece. Cristo e Satanás ao lado um do outro é uma simetria de poeta; mas eu creio que Pedro Antão era outra coisa. Olha aqui para o chão; vês esta reunião de coisas extravagantes? Um par de chinelas, uma imagem da Virgem, uma trança de cabelos amarelos, um baralho de cartas, uma cruz, uma página de hebraico; vês?...

À proporção que eu ia inventariando os objetos encontrados no chão, ia o Mendonça examinando atentamente, tendo previamente calçado um par de luvas a fim de não macular as mãos.

Abri uma janela a fim de que o ar penetrasse nos aposentos. Depois, sacudindo o pó de duas cadeiras, sentei-me numa delas, e disse a Mendonça:

— Sabes que mais? Já não vou daqui sem que me contes alguma coisa do tio. Que idade tinha ele?

— Quarenta anos.

— Viveu sempre recluso?

— Desde muito tempo. Nos últimos cinco anos nem saia de casa. Era um criado que lhe trazia o que precisava. Esse mesmo criado morreu na véspera de morrer o tio.

— Qual foi o motivo da morte do criado?

— Não sei; creio que uma apoplexia.

— Quem sabe? Talvez a morte do criado explique a morte do seu tio. Estou a ver aqui um assassinato e um suicídio. De que morreu o tio?

— De uma queda.

— Dentro de casa?

— Sim.

— Bem digo eu; aqui há coisa. Estes objetos dizem claramente que Pedro Antão era feiticeiro.

Mendonça sorriu com desdém; posto que fosse supersticioso e timorato, Mendonça não acreditava em sortilégios. Eu era então um pouco dado a essas crenças, e ainda hoje não deixo de as ter. Depois que os filósofos modernos, com a mania de destruir tudo, afirmaram que o criador era uma invenção dos homens, eu, que não dou ao acaso as honras de ter criado o universo, substituí Deus por um grande feiticeiro, autor de todas as coisas, e nem por isso sou mais absurdo que os filósofos.

— Que quer dizer, continuei eu, esta madeixa de cabelos amarelos?

— É uma madeixa de cabelos, respondeu Mendonça; amareleceram com o tempo.

— E esta página de hebraico não quer dizer alguma coisa?

— Não sei se é hebraico ou siríaco.

— Deve ser hebraico. Eu não conheço essas línguas, mas conheço os caracteres; estes são hebraicos. Quanto a esta cruz metida entre um baralho de cartas, creio que não dirás ser o bem e o mal, emblema da vida humana. Mas deixemos isto; que houve notável na vida do tio?

— Coisa nenhuma. Viveu aqui recluso sem procurar a família; nem recebê-la em casa. Ao princípio, correu que o tio tinha alguma beleza escondida, e meu pai procurou saber disso conversando com o criado, mas o criado disse que não havia ninguém. Verdade é que o primo Antônio disse que uma noite, passando por aqui, viu da rua uma sombra de mulher passeando na sala de visitas; mas eu o convenci logo de que seria o mesmo tio, embrulhado em um lençol.

— Que diziam os vizinhos?

— Apenas um afirmou ter ouvido uma noite gemidos lúgubres cá dentro; no dia seguinte, não sei se por humanidade, se por curiosidade, mandou o vizinho saber o que era; o tio correu o portador a pau. Queres que te diga a minha opinião?

— Não, não digas. Veremos se eu descubro...

— Não tens nada que descobrir: creio que o tio era doido.

— É o que te parece. Veremos isso. Talvez esta secretária nos diga alguma coisa; mas está fechada. Como abri-la?

— Arrombe-se amanhã.

— Pois sim; mas vamos ver o resto do sótão.

Peguei na vela e encaminhamo-nos para o interior. No corredor que separava as duas salas, bati com o pé num objeto que foi parar três passos adiante.

Era um par de óculos de ouro.

Examinamos os óculos que nada particular indicavam; tinham asas grossas e vidros azuis sem grau. Conheci que era uma quarta espécie de óculos; usava-os Pedro Antão para abrandar os raios da luz quando trabalhasse ou lesse de noite. Um dos vidros estava rachado.

Seguimos levando os óculos.

Nenhuma mobília tinha a sala do fundo. Ao fundo havia uma janela que dava para o telhado. Estava fechada com uma pequena aldraba.

— Aqui não há que ver, disse Mendonça querendo voltar.

— Pelo contrário, disse eu.

— Que é?

— Vês isto?

O objeto que eu mostrava a Mendonça era uma escada de seda atirada a um canto. Estava gasta pelo uso e estragada pelo desuso.

— Creio que isto é alguma. Vejamos a janela.

Abri a janela, que era baixa. Dava para o telhado da própria casa. Olhei em redor; todas as casas eram baixas, exceto uma que ficava à esquerda, que era um sobrado e tinha uma janela que dava para o telhado. Junto da janela do sótão havia algumas telhas quebradas.

Fechei a janela, e disse rindo a Mendonça:

— Já me não escapa o homem!

— És um visionário, foi a única resposta de Mendonça.

Quando íamos a sair, Mendonça deu um grito.

— Que é?

— Vê.

Olhei e vi a um canto da sala dois olhos verdes fitos sobre nós. Quis aproximar-me; Mendonça agarrou-me pelas abas do paletó. Fiz um esforço e fui até o canto ver o que eram aqueles olhos.

Dei uma gargalhada.

Era um gato preto que ali se achava, o qual, assustado com a gargalhada, deitou a correr, desceu a escada e não apareceu mais.

Começo a tremer, disse Mendonça; que quer dizer este gato aqui em cima?

— Uma destas duas coisas; ou era companheiro do homem nos sortilégios; ou é um gato da vizinhança que se acostumou a vir aqui passar a noite em procura de ratos.

— Será, será.

— Inclino-me à segunda hipótese, porque, ainda que eu suponha teu tio amante de feitiçarias, creio que não é essa a parte mais importante da vida dele.

— Qual será então?

— Meu caro, temos já todos os elementos de que compor um romance; vamos para a outra sala.

Quando ali chegamos, sentei-me tranqüilamente, acendi um charuto, e brincando com os óculos de Pedro Antão, comecei a falar.

— Viste aqui uma casa velha, trastes velhos, ares velhos, nada mais. Eu vi aqui dentro uma história misteriosa. Organizar no vácuo não é coisa que todos possam fazer. Vejamos se não me achas razão.

Mendonça sentou-se e eu comecei:

— Sabes a razão da reclusão do tio?

— Não, respondeu o meu companheiro.

— Foi uma paixão? Não te rias. Eu imagino que teu tio se apaixonou por alguma dama formosa. Sabes donde concluo isto? Do gosto pelas artes. As artes substituem os amores, quando estes são impossíveis. Amou, e não querendo ou não podendo casar com ela, retirou-se por aqui. A solidão e a paixão começaram a atuar na sua imaginação. Olha os livros que ele lia; vê estes dois bustos de Cristo e de Satanás; olha estes objetos de feitiçaria esparsos no chão; tudo isto quer dizer que a religião nem a filosofia bastavam à alma do tio e quando a filosofia e a religião não podem triunfar de uma alma, triunfa a superstição. Que te parece?

— Um conto para passar o tempo.

— Ouve o resto. Ao cabo de um ou dois anos, Pedro Antão recebeu uma pequena cartinha...

— Ah! onde está?

— Não sei; mas recebeu. Talvez a encontremos dentro desta secretária. O bilhete era da mulher amada, e dizia provavelmente que tendo ele fugido, vinha ela em busca dele.

— E veio?

— Veio morar na vizinhança, naquele sobrado cujos fundos vimos pela janela do sótão. O tio não respondeu à carta; a dama que eu chamarei Cecília esperou debalde a resposta. Nova carta: novo silêncio. Cecília, no furor da paixão, veste-se um dia com uma mantilha e entra por aqui a pretexto de vir buscar esmolas para os indigentes da paróquia. — Mande entrar quem é, disse Pedro Antão. A rapariga entrou, e quando se achou a sós com o tio, descobriu o rosto. — Céus! és tu! — Sim sou eu; vim porque me recusavas; amo-te... — Mas desgraçada! não sabes que o teu ato é uma loucura e um crime? — É uma virtude pois que amo. O tio pôs o rosto nas mãos; estava desesperado.

— Compreendo. E depois?

— Procurou dissuadi-la dos planos que ela concebera; a única coisa que conseguiu foi dar sua palavra de que iria vê-la à casa ou ao menos conversar de fora. — Mas eu não sei como possa lá ir, objetou Pedro Antão. — A janela do teu salão dá para os fundos da minha casa. Sobe ao telhado e eu conversarei da janela. — Pois sim respondeu teu tio.

— Supões que ele respondeu assim?

— Com certeza.

— O tio cumpriu então a promessa?

— Cumpriu. Quando toda a vizinhança estava recolhida, trepava ele ao telhado e ia conversar por baixo da janela de Cecília até que vinha a madrugada e Pedro Antão voltava para casa com o coração mais tranqüilo...

— E uma constipação no lombo.

— Não te rias, Mendonça; és um espírito fútil. Ouve o resto, e verás que tudo se explica; eu aprendi a arte de interpretar as coisas mais insignificantes. Ora, atende; atende e concordarás comigo.

— Continua.

— Assim se passaram os dias, as semanas, os meses; era um idílio renouvelé de Roméo. Um dia provavelmente o pai da moça percebeu que alguém costumava perlustrar os telhados, e tendo ouvido conjugar o verbo amar todas as noites sempre no indicativo do tempo presente, resolveu pôr em cena um quinto ato de Crebillon; comprou uma pistola...

— E matou o tio?

— Não!

— Felizmente.

— Pôs-se de emboscada; apenas apareceu um vulto, disparou a pistola... Dois gritos agudos acompanharam o som do tiro; Pedro Antão correu a meter-se em casa. Cecília caiu redondamente no chão.

— Morta?

— Desmaiada. Acudiu toda a família. O pai acudiu também; mandou chamar um médico e deram-se à pequena os primeiros cuidados que a situação exigia. Albuquerque (deve ser o nome do pai) era homem de costumes severos; guardou uma repreensão para a filha depois que ficasse boa. A menina ficou no quarto com a mãe e uma escrava velha, a tia Mônica. Aqui não te posso dizer quanto tempo esteve ela gravemente enferma; o que te afirmo é que, apenas tornou em si, e pôde lembrar-se do episódio do tiro, disse que tivera um grande pesadelo, e a isso devera o desmaio. A mãe engoliu a pílula; o pai achou-a amarga demais. Passaram-se os dias; Cecília sempre de cama, ficava então só com a escrava. Uma noite, disse-lhe a escrava: — Por que razão, sinhá-moça, quer sempre que eu vá à janela de noite? Cecília fitou nela os olhos, e com voz fraca disse: — Tia Mônica, você é capaz de guardar um segredo? — Sou, respondeu a preta. Cecília contou então tudo; e quando acabou, disse: — Eis aqui por que eu te mando à janela: é para ver se vês o meu querido Antão; morreria ele? — Não, sinhá, respondeu Mônica; está vivo. A moça respirou. Depois ouvindo rumor no telhado, disse à preta que fosse ver o que era. — É ele, disse Mônica. — Ah! diz-lhe que eu estou de cama, mas que preciso falar-lhe. A preta deu conta do recado; Pedro Antão voltou para casa. Meditou nos meios de subir à casa de Cecília e vê-la um minuto que fosse. Por honra dele, devo dizer que hesitou muito tempo em cumprir a promessa...

Mendonça neste ponto inclinou-se mais para mim e disse:

— Não ouves?

— O quê?

— Um rumor?

— São ratos. Deixa-te de vãos temores. Ouve a narração. Não te parece exata?

— Sim; parece. Tens uma penetração rara! Quem não dirá que isso não é a verdade?

— Ninguém pode dizê-lo.

— Continua.

— Assentou Pedro Antão em ir ver a enferma; para isso era preciso subir; para subir era necessário ter uma escada; e a escada só podia ser de seda. Por quem mandaria comprar uma escada de seda? Podia dizê-lo ao criado; mas isso era impossível; seria a vergonha. Pedro Antão resolveu sair ele mesmo...

— Sair?

— Foi a única vez que saiu depois da sua voluntária reclusão. Saiu, e foi encomendar uma escada de seda, a qual ficou pronta e veio daí a dias por mão do criado, mas enrolada de modo que o criado não soube o que era.

— Sim, o tio era prudente.

— Na primeira noite em que Pedro Antão subiu à casa houve na sua alma uma verdadeira luta. Eram os últimos lampejos da virtude; digo virtude, porque o ato de escalar uma janela constitui um crime para qualquer, quanto mais para um homem daquela força! Mas a paixão e a piedade venceram; teu tio atravessou o telhado com a escada debaixo do braço. A fiel Mônica lá estava e ajudou a preparar a escada; depois subiu Pedro Antão mais lesto que um menino trepando por uma mangueira acima. Não se descreve a cena do encontro dos dois amantes ao cabo de tanto tempo. Cecília estava mais pálida que o linho dos lençóis; o tio ajoelhou e derramou lágrimas de dor... Que cena aquela! oh! os que amaram sabem o que é aquilo!

Creio que fui tão patético nesta descrição, que o próprio Mendonça ficou comovido. Pela minha parte não o estava menos; davam então duas horas; tudo em volta de nós contribuía para a emoção de que nos achávamos possuídos.

— Vamos para casa, disse Mendonça.

— Ouve o resto. A visita do tio foi repetida nos seguintes dias. Parece que isso mesmo apressou o restabelecimento da moça. No dia em que Cecília ficou perfeitamente boa, disse-lhe Pedro Antão que era aquela a última visita. Cecília entrou a chorar. — “Não chores, disse teu tio; eu te amarei sempre; mas bem vês que é impossível a minha volta aqui. A tua doença explicava a minha audácia; a tua saúde...” — “Que temes tu? disse a moça; a opinião, quando vier a saber que nos amamos? Pois bem; Mônica assistirá as nossas entrevistas...” Teu tio mostrou-se severo e resoluto. A única coisa que lhe concedeu foi que viria conversar à janela: ficando ele pendurado na escada.

— Por que supões isto? perguntou-me Mendonça.

— Saberás adiante. Tudo o que até aqui tenho dito é a verdade; do estudo destes objetos que vemos a conclusão que tiro, é que só a minha narração pode explicar a vida de Pedro Antão.

— Continua.

— A promessa do tio foi cumprida. Todas as noites saía o homem de casa, levando a escada que era posta convenientemente para que ele subisse e fosse conversar com Cecília na posição em que Romeu e Julieta se separaram dando o último beijo e ouvindo o rouxinol... Queres ouvir o diálogo da despedida de Romeu?

— Não, vamos ao tio.

— Não descansou o pai de Cecília enquanto não lhe arranjou um casamento. Apresentou-lhe um dia um rapaz dizendo que era o seu noivo. Imagina o coração da pobre moça ao saber de semelhante notícia. Não ousou dizer abertamente ao pai que não queria o noivo; mas pediu para refletir três dias; e comunicou isso a teu tio. Imagina a dor do homem. Que luta aquela! O amor e o dever — luta terrível à qual teu tio teria sucumbido se não fora a grande alma que Deus lhe deu. Que diria à moça?

— Eu carregava com ela.

— Bem, mas ele hesitou; pareceu-lhe que não podia santificar uma união condenada pela sociedade. Não queria perturbar o destino da moça que talvez fosse melhor do que se lhe afigurava a ela. Que fez então? disse-lhe que se casasse. Cecília recusou o conselho; teu tio insistiu; ela chorou. Que fazer diante das lágrimas de uma mulher? O homem pediu um adiamento de vinte e quatro horas. Terrível foi a noite e o dia que se seguiu a esta entrevista. Jogava-se o destino de Antão e de Cecília. Raptando a moça, ele ia constituir-se réu perante Deus e os homens. O momento era solene. A crise da vida chegara ao seu auge. Sobre a tarde tomou ele uma resolução suprema; raptar a moça, isto é, salvá-la das garras de um noivo a quem ela não amava, e dar-lhe a felicidade que ela almejava neste mundo. Comunicou o seu plano à rapariga; e assentou-se que daí a três dias se executaria o plano. A moça dormiu alegre como se no dia seguinte devesse entrar na bem-aventurança. Oh! o amor é capaz de grandes coisas! e quanta vez se cometeu crime com alma alegre só porque é o amor que nos impele para o mal!

— Bonito! murmurou Mendonça.

Irritou-me a interrupção e levantei-me.

— Onde vais?

— Não me queres ouvir.

— Quero; continua. Aplaudi a tua exclamação. Quero saber em que parou tudo isso.

— Quando o tio voltou para casa, encontrou junto à janela o criado. Todo o corpo lhe tremeu; estava descoberto. O criado tinha ouvido bulha e supondo serem ladrões subiu ao sótão, viu a janela aberta, e espantado, viu um vulto ao longe, e esperou. Quando descobriu que era o tio, compreendeu que alguma coisa havia, e arrependeu-se de ter subido. Quanto ao tio, passado o primeiro momento, voltou em si, desceu tranqüilamente e disse ao criado que se fosse deitar. O criado desceu sem dizer palavra; o teu tio veio tranqüilamente para esta sala e entrou a meditar no que devia fazer. Era forçoso confessar tudo ao criado; estando descoberto, já lhe não aparentava a discrição; antes tê-lo por amigo mostrando confiança. Assentou nisso. Mas daí a pouco entrou o receio a torturar-lhe a alma. Podia acaso contar com a discrição de criado, ainda quando lhe mostrasse confiança? O medo de ver-se descoberto lhe obumbrou a razão; o crime chama o crime. O relâmpago do crime lhe fuzilou na alma...

— Que fez?

— Decretou a morte do criado. Quem poderá dizer que longos foram os instantes passados naquela combinação de um crime que era o primeiro na escala dos crimes futuros! Ao cabo de uma hora, tomou uma vela, desceu a escada de mansinho, encaminhou-se ao quarto do criado. Este dormia profundamente; Pedro Antão lembrou-se de que o melhor meio era sufocá-lo; subiu outra vez e foi buscar um travesseiro. Desceu; o criado ainda dormia. Teu tio pôs-lhe o travesseiro sobre o pescoço e calcou com todas as forças. Surpreendido no sono com este ataque, o criado procurou defender-se; quis lutar; impossível... por um movimento enérgico Pedro Antão concluiu a morte começada.

— Onde viste sinais desse crime?

— Não vi sinais; mas é um crime lógico. Por que razão morreria o criado logo na véspera do rapto? Teu tio quis arredar uma testemunha ou um cúmplice; mas vai ouvindo.

— Triste morte foi essa!

— Terrível; teu tio subiu, atirou-se à cama, mas não dormiu; a noite foi cruel; quando chegou a madrugada ele respirou; podia ao menos afastar a memória do fato terrível da véspera. Do quintal chamou um vizinho, e pediu-lhe que fosse cuidar do enterro do criado. À tarde foi este enterrado, levando para a sepultura o segredo do crime...

— Mas, Pedro, é impossível que tu não saibas disto por outro modo que não o conjectural. Estás falando de maneira que pareces ter assistido a tudo... Sabias alguma coisa?

— Nada.

— Mas então não compreendo.

— Meu amigo; chama-se a isto penetrar além da superfície dos fatos. Vai ouvindo. A noite do enterro do criado, era a noite do rapto de Cecília. Tudo estava preparado. Pedro Antão aguardou silenciosamente a hora marcada por ele, isto é, meia-noite. O leitor facilmente calculará...

— Que leitor?

— Foi engano. Quero dizer que tu facilmente calcularás as emoções do namorado antes de cometer o rapto. Entretanto chegou a hora; Pedro Antão, que estava lendo para passar o tempo, apenas ouviu bater meia-noite, foi ao quarto, pegou na escada... Aqui entram os óculos de Pedro. Estava lendo, e para ler punha os óculos a fim de quebrar os raios da luz. Com a pressa e a preocupação do ato que ia cometer nem se lembrou de tirar os óculos; foi com eles ate à outra sala, abriu a janela, saltou ao telhado e aproximou-se da casa de Cecília. Tudo estava silencioso; nenhum sinal de vida. Que aconteceria? Estaria descoberto o plano? Adoeceria a moça? Nesta incerteza esteve Pedro Antão durante dez mortais minutos. Abriu-se finalmente a janela, e a cabeça da moça apareceu. Teu tio deu sinal de que ele ali estava, e a preta disse-lhe que esperasse um pouquinho enquanto a ama completava os preparativos. Pedro Antão indagou a razão da demora. A preta respondeu que houvera visitas em casa, e que em virtude disso, Cecília não pôde sair da sala. Entrou a preta e teu tio esperou.

— Vê se pões a pequena cá para baixo.

— Ouve. Esperou teu tio outros dez minutos, ao cabo dos quais voltou a preta e o homem atirou a extremidade da escada que foi convenientemente presa em cima. Cecília apareceu e a vista da moça deu ânimo ao namorado. Disse-lhe ela que, para melhor efetuar a descida vestira umas calças do primo; e atirou para baixo duas trouxas. Continham roupa e vários objetos. Pedro Antão pôs as trouxas de lado, e disse à pequena que descesse. Ora, justamente quando a moça se preparava a descer, ouviu-se uma voz que dizia: Miserável! — Cecília deu um grito e entrou fechando a janela. Ficou em baixo Pedro Antão a procurar com os olhos de onde vinha a voz, até que um vulto se lhe aproximou. Era nem mais nem menos o pai de Cecília.

— De onde surgiu ele?

— Tinha percebido que a pequena tramava alguma coisa; foi espreitar pelo buraco da fechadura, e viu-a preparar as trouxas; desceu ao quintal e de lá ouviu a voz de teu tio; por meio de uma escada de mão trepou ao telhado no momento em que a moça ia pôr o pé fora da casa. Avalie-se o drama que se passou ali no telhado. O pai, armado com uma pistola, apontou-a ao peito de Pedro Antão; este viu iminente o seu fim. Quem poderia salvá-lo? — “Eu! gritou uma voz no meio das sombras”.

— Quem era?

— Espera. O vulto desarmou o pai de Cecília e intimou-lhe a retirada; o velho quis recalcitrar, mas teve de obedecer à voz imperiosa do salvador de Pedro Antão. Tendo escapado por milagre à morte que o esperava, o homem voltou-se para o vulto e agradeceu-lhe aquela intervenção providencial. Depois pediu que entrasse com ele em casa para lhe explicar a razão de achar-se ali. Pedro Antão meditava uma mentira. O vulto respondeu simplesmente. — Eu sei tudo! — Sabe tudo? — Quem é o senhor? — Ninguém.

— Parodiou o Garrett.

— Convidou teu tio ao vulto para ir descansar alguns minutos em casa. O vulto aceitou. Atravessaram o telhado e entraram pela janela. Como estivesse escuro, Pedro Antão tomou um fósforo, que levara consigo para a volta e à luz quem havia ele de ver?

— Quem?

— Adivinha.

— Não sei.

— O criado?

— Sim.

— O defunto?

— Nem mais nem menos, o defunto.

— Essa agora!...

— Imagina o rosto do pobre homem, deu um grito e correu; o criado segurou-o ainda pelas abas do paletó; Pedro Antão fez um esforço, escapou-se-lhe das mãos, caíram-lhe os óculos; e ele foi rolando pela escada abaixo até cair morto.

— Que horror!

— Aqui tens, concluí eu nem mais nem menos a história do tio, dos seus motivos de reclusão, e da sua morte desastrosa; aí tens explicados os óculos no corredor, a escada de seda na outra sala. Queres mais claro?

— Realmente, disse Mendonça, falas com uma segurança que pareces ter visto tudo isto!!

— Para que serviria a perspicácia então?

— Safa! Eras capaz de provar que eu ontem matei um homem!

— Questão de perspicácia; nada mais. Queres apostar uma coisa?

— O quê?

— Queres apostar que eu acho nesta secretária algum indício do que estive a referir?

— Então sabias alguma coisa?

— Eu, nada. Mas tenho um pressentimento de que aqui dentro acharei coisa que nos guie e me prove a veracidade do que te acabei de contar. Vamos abri-la.

— Com quê?

— Não tens nada?

— Nada. Sabes que mais? Vamos embora. Amanhã, abriremos isto.

— Não, agora mesmo.

— Qual olha; são três horas quase. Vamos dormir; amanhã voltarei contigo e de manhã, virá conosco um homem que entenda disto...

— Pois sim.

Saímos da casa de Pedro Antão; e eu confesso que não dormi a noite inteira, porque o pouco que dela restava, gastei-a eu a pensar na história do homem. Se eu achasse na secretária alguma coisa, uma cartinha de amores, uma lembrança de mulher, tinha ganho a glória de ter adivinhado uma história que ninguém descobriria nem exporia com tanta lucidez.

No dia seguinte às dez horas da manhã fui ter com o meu amigo Mendonça que ainda estava dormindo; esperei que acordasse e almoçasse, depois do que fomos buscar um ferreiro, encarregado de arrombar a secretária de Pedro Antão.

A fechadura não resistiu muito tempo.

Quando nos achamos sós, entramos a examinar o conteúdo daquele velho móvel, testemunha insuspeita da vida do tio.

Muitos objetos íamos encontrando que não serviam para o caso: papéis velhos, cartas de amigos, contas de credores, notas de leitura, etc.

Nada vimos que servisse ao caso.

— É impossível, disse eu; vejamos nas gavetinhas.

Nas gavetinhas também nada se encontrou que pudesse ter relação com a minha versão da morte de Pedro Antão.

De repente, disse-me Mendonça ter achado uns cabelos.

— Ah! exclamei, enfim!

— Mas são cabelos brancos, acrescentou Mendonça.

Em resumo, nada encontramos que nos pudesse guiar no assunto, e eu senti deveras porque o menor indício era naquele caso uma prova; ao menos eu assim o entendia.

No meio do trabalho em que estávamos, não demos por uma gaveta escondida por trás de uma tabuinha.

Abriu-se a gaveta por si e graças a um acaso. Querendo eu arrancar um folheto, apertei uma mola e a gaveta abriu-se.

Dentro havia um rolo fino de papel com esta nota por fora. “Para ser entregue a meu sobrinho Mendonça“.

— Vejamos.

Mendonça abriu o rolo. Continha uma folha de papel com as seguintes palavras:

Meu sobrinho. Deixo o mundo sem saudades. Vivo recluso tanto tempo para me acostumar à morte. Ultimamente li algumas obras de filosofia da história, e tais coisas vi, tais explicações encontrei de fatos até aqui reconhecidos, que tive uma idéia excêntrica. Deixei aí uma escada de seda, uns óculos verdes, que eu nunca usei, e outros objetos, a fim de que tu ou algum pascácio igual inventassem a meu respeito um romance, que toda a gente acreditaria até o achado deste papel. Livra-te da filosofia da história.

Calcule agora o leitor o efeito deste escrito, espécie de dedo invisível que me deitava por terra o edifício da minha interpretação!

Daí para cá não interpretei à primeira vista todas as aparências.