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Os Brilhantes do Brasileiro/II

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Estava Ângela na janela da sua casa na "rua do Bispo", quando o marido surdiu da esquina da "Praça nova". Reconheceu-o logo pela corpulência redonda. Retraiu-se da janela, e disse consigo, assustada:

— Há novidade! O coração bem mo dizia... Meu marido nunca vem a casa a esta hora! E Vitorina sem chegar!... Que seria!...

O resfolegar de Fialho, escada acima, cobria o estrondo dos pés nos degraus que rangiam.

— Ângela! Ângela! — clamava ele.

— Que é?

— Dou-te parte que estás roubada! — bradou o esferóide.

— Roubada! — gaguejou a esposa.

— Sim! roubada, tu! Aqui tens o teu bracelete sem os brilhantes. Conhece-lo? Vê lá que ladra saiu a tua criada favorita! Um conto seiscentos e cinqüenta mil réis de pedras... foi-se! E tu sem dares tino disto, mulher! Viste?

A pulseira tremia nas mãos convulsivas de Ângela.

E o marido prosseguia:

— Aqui tens! Tirou-lhe as pedras boas, e tinha a pulseira nos Mourões para lhas encravarem falsas. Lá está na administração a ladra, e de lá vai p’ra a cadeia, onde há de morrer; mas o meu conto, seiscentos e cinqüenta mil réis, esse é que não torna.

Ângela chorava, soluçante.

— Não chores, menina! — acudiu o Sr. Barrosas. — Olha que isto não abala a nossa fortuna...

— Ó meu Deus! — balbuciou a senhora, com as mãos nas faces.

— Não te aflijas que eu compro-te outra pulseira, mulher... Deixa-me cá por minha conta a criada; que essa, ou eu não hei de ser Hermenegildo, ou ela há de morrer na enxovia.

— Que infortúnio, Jesus, que infortúnio! — bradou ela desafogando-se a custo dos soluços.

— E ela a dar-lhe! Tem ânimo, Ângela! Já te disse que te dou outra pulseira. Sou muito rico, graças a Deus! Da ladra da moça eu te vingarei!

Ângela cobrou alento, ergueu a face, enxugou as lágrimas, e disse serenamente:

— Não prendas a criada que ela está inocente!

— quê?!

— Vitorina não roubou os brilhantes.

— Então quem diabo os roubou?

— Mandei-os eu vender.

— Tu?! P’ra quê? O dinheiro deles que lhe fizeste? — exclamou o marido, fazendo ambos os pés atrás, e tressuando novos repuxos de aflito suor. — Tu mentes, Ângela! Dizes isso para livrar a criada, não é verdade?

— A verdade é que Vitorina está inocente. Castiga-me a mim, se queres, que os brilhantes foram vendidos por minha ordem — tornou ela com admirável serenidade.

— Que fizeste ao dinheiro, tu? — ululou Fialho, sopesando com as mãos o arquejar do abdome.

— Gastei-o.

— Em quê? Não tinhas o que te era necessário?!

— Tinha; mas... gastei o dinheiro...

— Com quem? com quem? — tornou a perguntar. — Com dez milhões de diabos, com quem gastaste um conto e seiscentos e ...

— Não foi em coisas que me desonrassem, nem a ti...

— Então diz em que foi?

— Não posso.

— Não podes? Raios!... pois não podes? Então quem é que pode?

— Não posso.

— Arrebento! Tu não me cegues, mulher! Olha que eu já te não vejo nem enxergo! Com quem gastaste um conto e seiscentos e...

— Mata-me que te perdôo a morte — volveu ela tranqüilamente. — Morrerei sem remorsos nem vergonha. As jóias de minha mãe valem quatro a cinco contos de réis. Faz de conta que estás pago do roubo que te fiz: lá as tens.

— A história não é essa, não é o dinheiro... — replicou briosamente o marido. — O que se quer saber é a quem deste o capital?

— A quem o precisava para não ser infeliz.

— Essa é boa! Então deste um conto e seiscentos e cinqüenta mil réis de esmola?

— Dei.

— Mas a quem? a quem? com dez milhões de...

— Não te posso dizer mais nada, Hermenegildo... A criada está inocente. Não a prendas.

— Há de ir presa até dizer a quem deste o dinheiro

— Ela morrerá sem o dizer.

— Pois há de morrer... — vociferou Barrosas saltando e batendo com os dois pés em cheio no soalho. — E tu... não sei o que será de ti...

— Mata-me que eu não tenho pena de deixar o mundo... — murmurou sossegadamente, mas debulhada em lágrimas, a pálida senhora.

Hermenegildo rolou a sua pessoa fumegante escadas a baixo. Entrou no escritório do administrador, chamou de parte a autoridade, e contou-lhe o ocorrido com a mulher, insinuando o magistrado a sacar da criada o segredo.

— O meu dever é aceitar as declarações voluntárias da criada — disse o administrador. — Não posso incutir-lhe terrores, nem devassar os segredos da vida doméstica de vossa senhoria. Se sua senhora diz que a criada está inocente, a confissão da ré não basta a destruir o depoimento da ama, sendo de mais a mais muito natural que os brilhantes se hajam vendido por consentimento de sua esposa; aliás, desde muito que ela teria dado pela falta. Enfim, sou obrigado a interrogar a ama e a crida, uma na presença da outra.

— Essa vergonha é que eu não quero! — obstou desabridamente o brasileiro.

— O interrogatório há de ser secreto: não há testemunhas que divulguem este ato impreterível de justiça — contraveio a autoridade. — Se sua senhora disser de modo convincente: "a criada cumpriu as minhas ordens", é certo que a moça não pode ser pronunciada, visto que obedeceu a sua ama; e os desvios dos bens comuns feitos pela esposa não é roubo, nem a cumplicidade da criada é punível. Se sua esposa foi burlada por algum industrioso, e quiser declarar-se, o meu dever é seguir o fio do enredo; mas o que eu não posso é interrogá-la sobre segredos da sua vida íntima. Isso pertence a vossa senhoria mediante processo de outra natureza...

— Então... afinal diz-me vossa senhoria que... — interrompeu o brasileiro, zangado.

— Que vou mandar chamar sua senhora...

— Pois chame! — bradou ele. — Este negócio há de aclarar-se... Não se me importa a vergonha nem o diabo! Eu sou um homem de bem, Sr. Administrador!

— Quem o duvida?

— Ninhos atrás das orelhas não mos fazem!

— Com razão...

— O meu dinheiro quero saber que fim levou...

— Essas averiguações é que são delicadas, Sr. Fialho, - aconselhou a autoridade. - E parecia-me razoável e prudente que vossa senhoria as guardasse para o secreto da sua casa.

— Mas ela não o diz!

— Se o não diz a vossa senhoria, menos o dirá a mim ou ao juiz...

— Diz que deu um conto e seiscentos e cinqüenta mil réis de esmolas! O senhor acredita isto?

— Acredito;... porque não? Se ela repartisse por todos os infelizes do Porto essa grande quantia, estou em que não chegaria um pinto a cada pobre.

— Mas então a criada que diga a quem levava as esmolas. Dá-me vossa senhoria licença que eu pergunte?

— Sim, senhor — respondeu o administrador, e, tangendo uma campainha, disse o oficial de diligencias:

— Essa mulher que entre aqui sozinha.

Entrou Vitorina.

— Responda ali a seu amo — disse a autoridade à presa.

Hermenegildo assoou-se, fez duas upas na cadeira, roçou no pavimento as espaciosas plantas, e rompeu neste interrogatório:

— quem roubou os brilhantes?

— Fui eu, senhor.

— Mentes! Os brilhantes foi tua ama que tos mandou vender!

Vitorina estremeceu, fitou o administrador, e gaguejou palavras imperceptíveis.

— Foi sua ama que mandou vender os brilhantes? — interveio a autoridade.

— Não, senhor... Fui eu que os... furtei.

E as lágrimas derivavam-lhe pelas faces copiosamente.

"Esta mulher está inocente!" disse entre si o interrogador.

— Mentes, desavergonhada! — trovejou o Sr. Fialho, jogando com as catapultas dos braços à cara da criada.

— Levemos isto mais moderadamente, Sr. Barrosas, - admoestou o administrador. — ora diga-me, mulher, foi vossemecê mesma que vendeu os brilhantes?

Demorou-se Vitorina em responder:

— Fui, sim, meu senhor.

— A quem?

Repetiu-se a mesma tardança na resposta.

— A quem os vendeu? Aos ourives Mourões? — repetiu o funcionário.

— Sim, senhor.

— Todos?

— Sim, senhor.

— Está vossemecê mentindo. Os Mourões compraram três pedras a uma mulher, que provavelmente era vossemecê, e duas a um vizinho. Como explica vossemecê esta verdade com a sua mentira?

A mulher abafava com soluços.

— Seja verdadeira; vossemecê não roubou os brilhantes; vendeu-os por ordem de sua ama...

— Não, senhor — acudiu a criada com veemência.

— Não me desminta, que logo vai ser sua ama interrogada na sua presença, e ela mesma já disse ao Sr. Fialho que vossemecê não furtou a pulseira.

— O que eu quero — intermeteu-se o brasileiro — é saber a quem tua ama dava o dinheiro.

— Isso é que eu não quero saber enquanto sua senhora se não queixar de que foi lograda fraudulantamente — emendou o administrador do bairro. — Já disse a vossa senhoria que esta repartição judiciária não é confessionário, nem entende com a moralidade dos atos domésticos, entre casados, enquanto eles se não queixam competentemente. Da minha competência é saber como hei de enviar esta mulher ao juízo criminal. Ela teima que roubou os brilhantes; a esposa de vossa senhoria declara que os mandou vender. O meu juízo está feito; mas...

— Então qual é o juízo do Sr. Administrador? — interrompeu o queixoso.

— É o juízo do Sr. Fialho.

— O meu?!

— Sim: o senhor diz que foi sua esposa quem mandou esta ou outra mulher vender as pedras; eu digo o mesmo.

— Mas quem me há de a mim dizer o caminho que levou o dinheiro? Um conto seiscentos e...

— Sua senhora, se quiser.

— Mas esta mulher sabe-o.

— Vossemecê sabe-o, mulher? - perguntou a autoridade sorrindo.

— O quê, meu senhor?

— Sabe o que aquele senhor deseja saber?

— Sabes a quem tua ama dava o dinheiro dos brilhantes? — perguntou o amo com estrondosos berros.

— Que brilhantes?

— Os brilhantes que ela te mandava vender.

— Não me mandou vender nada.

— Então roubaste-los tu?

— Sim, senhor.

Hermenegildo sobrepôs os braços um no outro, transversalmente apoiados no estômago, e começou a dar com eles de modo que tiravam um som de timpanites das cavernas subjacentes.

— Já viram pouca vergonha deste feitio? — gritava ele. — Veja vossa senhora se isto não é para endoudecer um homem!

E, levantando-se com prodigiosa rapidez, exclamou:

— Vou consultar, os meus amigos sobre o que devo fazer; vossa senhoria faça a sua obrigação. O negócio é muito sério. Hei de sair com honra desta tramóia. Sou um homem de bem. Quem quiser saber quem é Hermenegildo Fialho Barrosas, pergunte-o aí na praça do comércio do Porto.

— Sei que é honrado capitalista, Sr. Fialho! Quem lhe nega as suas excelentes qualidades?

— Vossa senhoria parece que está disposto a favor dos criminosos! — retorquiu o ricaço, esbofeteando uma mosca na testa.

— Quem são aqui os criminosos?

— Não sei! Não entendo esta balbúrdia!

— Sua senhora diz que mandara vender os brilhantes. Quer que ela seja enviada ao juízo criminal com o labéu de ladra? — volveu o administrador agastado.

— Não quero isso! Quero saber quem recebeu o dinheiro.

— Não posso esclarecê-lo.

— O dinheiro gastei-o eu — repetiu Vitorina.

— É o que vamos ver.

Disse, e tangeu de novo a campainha o funcionário, mandando o oficial que intimasse a Sr.ª D. Ângela a comparecer na administração.

— que vem ela cá fazer?! — exclamou Vitorina com aflição. — Minha ama não tem que fazer nesta casa!

— Cá se avenham! — disse o brasileiro, e saiu em cata dos seus amigos.