Os Brilhantes do Brasileiro/XIV

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Passaram dois anos, e somos chegados ao de 1840.

Alteração notável no viver de Francisco José da Costa não há nenhuma. É ainda amanuense de tabelião. Joana continua a trabalhar para as modistas; mas, cansada e doente, rende-lhe pouquíssimo o louvor.

O viver de Ângela é mais angustiado. Vitorina já vendeu tudo que valia dinheiro. A ama não tem que vender, porque sua tia Beatriz negou-lhe algumas jóias que o pai lhe havia dado, sem impedimento de terem sido de D. Maria d’Antas. Os escrúpulos de beata não iam ao extremo de repulsarem os braceletes e correntes da pecadora.

Vitorina já aceita as esmolas de Rita de Barrosas, e as liberalidade de outras senhoras que delicadamente favorecem a sobrinha de Cassilda de Noronha — freira opulenta, como depositária e herdeira in mente dum dom abade de beneditinos, rolado ao inferno por intermédio duma hidropisia.

Ângela ignorou algum tempo a sua deplorável dependência. Era, contudo, forçoso adivinhá-la, e inferi-la das tristezas da criada. Animou-se para entrar ao fundo da sua miséria, e soube que estava indigente.

Vencida pela desesperação, escreveu ao pai, invocando a memória de sua mãe. Péssimo expediente! Vitorina quis dissuadi-la da invocação; mas era-lhe doloroso, tendo de explicar a inconveniência, contar a uma filha a desastrada morte de Maria d’Antas. A carta foi; mas a resposta não veio.

Pensava Ângela sem sair do mosteiro e ir ajoelhar-se diante do pai. Constou o intento. A prelada, com boas palavras, lhe desfez o plano, dizendo-lhe que só poderia sair com ordem de sua tia ou do Sr. arcebispo de Braga.

— Mas minha tia ou o Sr. arcebispo não me deixarão morrer à necessidade? — perguntou Ângela debulhada em lágrimas.

A prelada, comovida, respondeu:

— A menina não há de morrer à necessidade. Por enquanto alguém e tem socorrido e continuará a socorrer. A misericórdia do Senhor é grande.

Neste tempo, aconteceu chegar ao convento a notícia de ter aparecido em Barrosas um brasileiro muito rico, procurando novas de uma irmã que deixara, quando, em criança, fora para a América. Ora a irmã do brasileiro era Rita de Barrosas, criada da abadessa. Grande alvoroço, e alegrias, e invejas no mosteiro!

Rita correu ao quarto de Ângela a mostrar a carta do vigário da sua freguesia, avisando-a de que o irmão iria brevemente buscá-la de liteira.

Dias depois, chegou a Viana Hermenegildo Fialho; e, dado aviso ao convento, foi procurar a irmã. Saíram a cumprimentá-lo as religiosas mais autorizadas, e folgaram de o ver comer pastéis ensopados em vinho do Porto com familiar lhaneza e proporções homéricas de estômago.

Ao outro dia, Rita saiu do mosteiro, depois de ter chorado abraçada em Ângela, única pessoa, dizia ela, de quem levava saudades, e de quem nunca se esqueceria.

Com este sucesso coincidiu a morte de D. Beatriz de Noronha. Contaram as criadas que o fantasma de José Maria, auxiliado por incômodos de bexiga, a matara, penetrando-a dum remorso dilacerante. E posto que a crítica e a medicina presumam que D. Beatriz haja sucumbido a uma cistite, ou qualquer outra moléstia mais ou menos grega, é certo que a velha, para lograr o espectro do merceeiro, deixou em testamento 960$000 réis para missas por sua alma de esmola de 240. Quatro mil missas! O diabo que se atreva a levar alma com tal recomendação, se é capaz!

Falecida Beatriz, solicitou Ângela novamente a sua saída. A prelada consultou Soror Cassilda, a qual respondeu que não tinha que ver com a saída, assim como não tivera com a entrada. Sempre discreta! Os frades desta senhora deviam ter sido sujeitos áticos bastantemente nos seus raciocínios. Esta madre era notável nas formas aforismáticas, e quase sempre rebatia as réplicas com argumento de dois bicos. Parece que, na convivência de varões doutos, a sutil religiosa medrava em espírito o que os mestres iam adelgaçando na parte que Xavier de Maistre denomina a outra.

Rita de Barrosas, escrevendo a D. Ângela, pedia-lhe que fosse estar com ela uma temporada à bela quinta que seu irmão acabava de comprar; e ajuntava que, sendo necessária licença, ela se encarregaria de a requerer e obter em Braga.

Ninguém impediu a saída da reclusa. As freiras cooperaram quase todas para que não se estorvasse à pobre senhora o intento de pedir perdão ao general.

Efetivamente, Ângela, apesar de desprezada do pai, insistia em tentar a reconciliação apresentando-se-lhe com as súplicas piedosas do costume. Se ela medisse o seu amor filial pelo que devia esperar de Simão de Noronha, poupar-se-ia a tentativas vãs. Em verdade, o desapego era recíproco. A ficção poderia espremer lágrimas dos olhos de Ângela aos pés do pai, que lhas desprezaria; se, todavia, ele pudesse sobreposse acariciá-la, os júbilos do perdão escassamente agitariam o coração da filha. Seriam, bem ensaiados, filha e pai de comédia, quando os artistas se compenetram dos seus papéis.

Um pensamento, nem esquisito, nem repreensível, avassalava o ânimo de Ângela: cogitava em ser rica para enriquecer Francisco da Costa e irmã. O amor já entrava quase esvaído neste cálculo. Figurava-se-lhe que tocaria o acume da fortuna se conseguisse pagar cem por um dos bens que perderam os dois irmãos, quebrado o esteio do lojista.

Ora, a riqueza donde lhe proviria a não ser do general, cuja abastança engrossara com a herança de D. Beatriz?

Rijo era, pois, o estímulo que a fazia transpor as balizas da dignidade. E longe de nós acoimar de aviltamento a humilhação da filha; se, no entanto, o sentir filial a não impulsa, e a cobiça, fingindo arrependimento, se deplora, o senhoril do ato é pouquíssimo exemplar. Tanto assim, que Ângela, despreocupada do desejo de enriquecer-se para remediar alheios infortúnios, certo se deixaria vencer da fome antes de ajoelhar a um homem distinto dos outros pelo nome insignificativo de pai.

Foi, pois, caminho de Ponte de Lima, apenas saiu do convento. Chegou de noite com Vitorina ao portão do palacete. Bateu, esperou largo tempo que lhe abrissem. Anunciou-se. Mandou-a entrar um antigo criado; conduziu-a a uma sala, com duas alcovas, dizendo-lhe:

— Vossa excelência tem ali uma cama naquela alcova, e a criada outra. Eu vou servir o chá.

— E meu pai não me consente que o veja hoje? — perguntou Ângela.

— Seu pai, minha senhora, foi para França há quinze dias consultar médicos, por que tem padecido muito nestes últimos meses. Eu já era criado em Gondar quando vossa excelência nasceu. A Sr.ª. Vitorina há de lembrar-se do João Pedro. Sou eu, é este velho que aqui está. Ora eu fiquei com o governo desta casa, que para isso fui chamado lá do Paço, e entendo que minha obrigação é receber a filha do meu amo, e dar parte para Paris que vossa excelência está aqui. Se o Sr. general reprovar o meu procedimento, e me despedir do seu serviço, já me não prega grande peça, que eu pouco hei de viver. Até já, minha senhora. Se a Sr.ª. Vitorina quisesse ajudar-me a preparar o chá, bom seria, para não haver grande demora; que eu despedi a cozinheira assim que o patrão saiu, e cá me arranjo e mais outro criado com duas brasas e um púcaro.

Era consolador o repousar e respirar que Ângela experimentava naquela atmosfera de riqueza. O seu quarto de dormir, quando, anos antes, visitava o pai, era aquele mesmo. Enquanto Vitorina moirejava alegremente na cozinha, a senhora pegou num castiçal e andou percorrendo a casa. Reconheceu a antecâmara de seu pai, entrou e sentou-se na cadeira de espaldar anteposta à banca de escrever. Era esta banca rodeada de escaninhos onde se recadavam cartas. Ângela reconheceu a letra da defunta Beatriz num sobrescrito de carta emaçada com outras. Leu a primeira, em que

sua tia relatava os pormenores da fuga, caluniando a sobrinha a ponto de referir que os seus criados a tinham arrancado dos braços do filho do sacristão. Que seria daquela alma, a não se guindar do purgatório alçapremada por quatro mil missas a 240 réis!

Leu a Segunda, em que D. Beatriz participava estar disposta a obrigar Ângela, pela necessidade, a vestir a touca de criada, para que todos soubessem que os parentes, se o eram, (sublinhava ela), a tinham abandonado como infame.

— É impossível que meu pai me receba... — disse entre si amargurada.

Ia retirar-se, quando reparou num cofre de prata que assentava sobre um bufete. Reconheceu-o, porque tinha sido de D. Beatriz. Abriu-o. estavam dentro as jóias que seu pai lhe tinha dado, e sobre elas um cartão com o nome impresso do general, e por baixo, escrito do pulso dele, o seguinte: Estas peças em número de dez pertencem a Ângela, filha de D. Maria d’Antas, já defunta. Se eu morrer em Paris, entreguem-lhas os meus testamenteiros. Procurem-na no mosteiro de S. Bento em Viana, ou onde ela parar. Não tem mais que herdar da casa onde viveu sua mãe.

Fechou Ângela o cofre e voltou profundamente descoroçoada à sala.

Entravam os dois criados com a bandeja do chá. A filha de Maria d’Antas tomou um chávena, e disse:

— Aceito a esmola, Sr. João Pedro. Dirá ao Sr. general que a filha de D. Maria d’Antas aceitou esta chávena de chá, e um leito onde passar uma noite.

— Uma noite! — volveu espantado o velho. — Vossa excelência está em sua casa, penso eu. E, se me não engana o coração, a fidalga não sairá mais da casa de seu pai.

— Amanhã.

— Amanhã! Pois vossa excelência ainda há pouco parecia resolvida a ficar esperando que o senhor general...

— É verdade; mas resolvi outro passo menos desonroso. Amanhã iremos para Barrosas, Vitorina. Aceitaremos o bem-fazer da mulher humilde. Ela foi pobre; será por isso mais compadecida.

— Estou às aranhas, minha senhora! — exclamou João Pedro. — Faça-me o favor de mudar de idéias, e queira desculpar o meu atrevimento. A senhora tenha prudência. Já que veio, fique; que seu pai, quer queira quer não, para fora de casa não a manda...

— Manda — afirmou Ângela com veemência. — Diga-me uma coisa, Sr. João: nunca ouviu falar de mim ao Sr. general?

— Nunca: eu não sei mentir.

— Quem supõe vossemecê que seja herdeiro do senhor general?

— Os irmãos da mulher com quem ele casou quando tinha dezasseis anos, uns homens de pé descalço, que nunca vieram a esta casa. Eu desconfio, minha senhora, que seu pai está doente da cabeça, há coisa de quatro anos. Os médicos não atinam com a cura por que lhe procuram a doença no peito, e ele tem-na nos miolos; salvo tal lugar. É por isso que eu desejava que ele visse aqui vossa excelência, porque, se a visse, parece-me que atremaria outra vez.

— E, se ele morresse em Paris, eu seria expulsa desta casa pelos homens de pé descalço, não é verdade? — perguntou Ângela.

— Seria o que fosse. Eu, e mais os criados todos, iríamos jurar que seu pai não regulava do juízo quando fez o testamento; e p’ra prova basta dizer que ele mandou trazer da capela do Paço de Gondar o esqueleto da tal Josefa Salgueira com quem foi casado, e tem-no debaixo da cama num caixão de pau de alcânfora. Que-lo mais doido ao pobrezinho do velho?

— Respeite-se a sua dor, embora seja um desatino — disse Ângela. — Então ele amou muito essa mulher?

— Lá isso muito. Ela morreu de aflição, quando o viu ferido em Amarante.

— Já sabia isso. Era uma sublime alma! Conheceu-a?

— Se conheci! Andava ela com o rebanho das ovelhas, quando eu era rapazola de quinze anos. Era muito linda, isso era!

— E de minha mãe, lembra-se?

— Da senhora D. Maria d’Antas?... pois não lembro! Isso foi ontem! Fui criado dela dez anos... como hei de eu não me lembrar?

— A Vitorina diz que era muito formosa...

— Era vossa excelência sem tirar nem pôr. Estou a vê-la. Só era um poucachinho mais alta e corada.

— Lembra-se se ela era muito minha amiga?

— Parece-me que sim...

— Por quê?

— Foi ela quem a criou: não quis ama, como todas as mães que tem de seu.

— Lembra-se da morte dela?

João Pedro respondeu tardamente e tartamudo:

— Não me recordo bem... Eu estava então na quinta de Santo Amaro... Lá é que me chegou a notícia de ter morrido a fidalga... E, quando voltei, o Sr. Simão de Noronha já estava fora de Portugal...

— Mas o Sr. general não mandou buscar os ossos de minha mãe? — perguntou Ângela, chorando no sorriso.

O velho não respondeu.

— Vamos deitar, Vitorina. Até amanhã, Sr. João Pedro.

— Muito bem passe a noite, fidalga.

Ao alvorejar da manhã, Ângela, que velara a noite ao pé do leito de Vitorina, foi sentar-se à banca de seu pai, e escreveu uma breve carta, que sobrescritou ao general Simão de Noronha, pedindo-lhe que perdoasse ao seu criado a caridade de a ter recebido, e lhe ter dado uma cama por uma noite, e lhe haver ainda esmolado dinheiro com que ela e sua criada pudessem chegar a outra porta caritativa. Em seguida, chamou João Pedro ao escritório de seu pai, abriu o cofre das jóias, leu-lhe a declaração do general, e ajuntou:

— É quase certo que, por morte do Sr. Simão de Noronha, me sejam entregues as jóias de minha mãe. Sobre este penhor, peço eu a vossemecê que me empreste uma moeda para eu poder ir daqui a uma terra chamada Barrosas. Não tenho outro penhor que lhe oferecer.

— Pois eu tenho mais que uma moeda para dar a vossa excelência. Tenho cinqüenta.

— Uma me basta.

— Torno a pedir-lhe que não vá, fidalga.

— Hei de ir forçosamente.

— Faça-se a sua vontade. Irei então alugar cavalgaduras; e entretanto Vitorina fará o almoço. ....

— Aqui tem esta carta: mande-a a meu pai — concluiu Ângela saindo com a face altiva e enxuta.