Os Brilhantes do Brasileiro/XVI

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Escreveu Ângela a João Pedro perguntado-lhe se o pai respondera. Teve resposta negativa. Que o fidalgo tivesse piorado supunha o escudeiro por ter lido numa gazeta de Lisboa que o bravo general Noronha estava em Paris sofrendo, além de antigos achaques, os graves incômodos de uma oftalmia, que o ameaçava de cegueira.

Não era já a herança que a alvoroçava. Contentá-la-ia a entrega das jóias, como um socorro imediato, para poder, agradecida a hospitalidade do brasileiro, procurar sua vida noutras condições. Mas até esta esperança se fechara à pobre senhora!

Na correnteza destes sucessos, aconteceu adoecer de hepatite Hermenegildo Fialho. Bem pode ser que o amor contribuísse a sobreexcitar a inflamação crônica do fígado, entranha que se ressente das perturbações morais por esquisita simpatia. Alguma razão, pois, tinha a mortificada Sr.ª Rita para atribuir a doença do irmão a pura paixão de alma.

A enfermidade agravou-se. Vieram as intermitentes, a intumescência da víscera, o fastio e a rápida magreza, os suores noturnos e o delírio, enfim o estado em que a medicina capitula assustadoramente a doença.

Nos delírios, o brasileiro rosnava o nome de Ângela, caso que fazia sempre repuxar chafarizes de lágrimas dos olhos da irmã, ao passo que o rosto de Ângela se entristecia compassivamente.

Uma vez que o doente desagradou notavelmente ao médico, Rita lançou-se de joelhos aos pés da hóspeda, e clamou:

— Meu anjinho, faça um voto a Nossa Senhora dos Remédios que há de casar com meu irmão, se ele melhorar! Faça, pelas chagas de Cristo, e por alma de sua mãezinha!

— Levante-se, Sr.ª Rita! — disse Ângela, inclinando-se para ergue-la nos braços.

— Não me levanto sem vossa excelência prometer a Nossa Senhora que há de casar com o meu pobre Hermenegildo, que morre de paixão pela senhora.

— Jesus! — balbuciou a atribulada menina.

— Então? — instou a suplicante velha. — então, minha senhora!...

— Pois a Sr.ª Rita cuida que a minha promessa salva seu irmão?! — argumentou Ângela.

— Cuido, cuido, porque Nossa Senhora há de ouvir a promessa dum anjo!

— Pois... sim — gaguejou a violentada senhora.

— Casa com ele? — acudiu Rita, radiosa de esperança.

— Sim... caso...

Levantou-se Rita com exultação de mentecapta, entrou no quarto do enfermo, e chamou-o tão estrondosa e vertiginosamente que o homem abriu os olhos, as ventas, e a boca, tudo a um tempo e medonhamente.

— Olha que a Sr.ª D. Ângela fez a Nossa Senhora dos Remédios a promessa de casar contigo, se tu melhorasses.

— Hum... — fez Hermenegildo, e quedou-se extático a olhar para a jubilosa cara de Rita, e ela a repetir-lhe até quarta vez a notícia.

E, ao mesmo tempo, Ângela soluçava e estalejava com os dentes vibrados por um frio nervoso. E Vitorina, a fim de consolá-la e tirar-lhe a carga da promessa, dizia-lhe:

— Não se aflija, menina, que o homem não escapa! Quando vossa excelência casar com ele, dou licença que me enforquem.

Voltou o médico Segunda vez naquele dia, e achou o homem menos febril, e a língua mais úmida. No seguinte, a febre foi menor; e o suor da noite quase insensível. Ao outro dia, como o doente já desemperrasse a língua para dizer que a dor o deixava respirar livremente, o médico, voltado para Rita e Ângela, declarou, com vaidade de ter restaurado um moribundo, que o doente estava livre de perigo, e ia entrar em convalescença.

E, dentro em pouco, entrou a bolear-se, a arredondar-se, a pele a encher, as orelhas a enconchar-se com um escarlate de coralinas, o nariz a vestir-se de tegumentos, o todo enfim do carão a luzir e a estilar sorosidades de sangue novo que parecia uma espumadeira de tomates.

E Ângela via tudo aquilo com o falso contentamento das viúvas do Malabar que assistem à disposição das achas para a fogueira que há de assá-las.

Hermenegildo esperava que a sua hóspeda lhe desse azo a falar-lhe em casamento; ela, porém, esquivava os lanços preparados pouco engenhosamente pela irmã do noivo.

Era fatal e indeclinável o cálix!

Uma vez, o brasileiro, esporeado pela mana, afoitou-se a perguntar a D. Ângela se queria ser sua esposa.

— Sim, senhor — balbuciou ela, rápida e laconicamente como o suicida que fecha os olhos, e se despenha, antes que a reflexão lhe pinte os horrores da queda.

Hermenegildo emparveceu mais que o comum nos sujeitos da sua natureza. O sorriso que lhe entreabriu as queixadas parecia escancarar os alçapões daquele peito carecido de ar, como se o júbilo o afogasse.

A careta era feia; mas amorosíssima. Havia ali mescla de sátiro cupidinoso e de amante soez. Ângela não viu a fachada do coração que sonhoreava. Se naquele instante o encarasse, bem pode ser que a Senhora dos Remédios fosse lograda.

Dado o dilacerante sim, a ideal amante de Francisco Costa, a maviosa cismadora das Esperanças, entrou no seu quarto, e não pode chorar. Sentia um peso de estupidez, uma sensação na cabeça, como um capacete de lama, permita-se a figura.

Vitorina foi eminentíssima em insartar argumentos sobre argumentos convincentes de que Ângela havia de ser feliz, embora não amasse o marido, e simplesmente o estimasse como homem que a levantava com sua riqueza à independência, à consideração pública, e ao futuro gozo de ser viúva: "porque ele, dizia a criada, doutro ataque vai-se embora".

Numa tragédia desta ordem, como se vê, o cômico está sempre negaceando à gente por detrás daquele Fialho, o qual, apesar dos chacoteadores, tinha ares de bom homem, e talvez desse de si um marido regular, se se ajoujasse a uma fêmea da sua espécie.

Por cortar demoras, não nos deteremos a descrever a bulha que a felicidade de Rita e do irmão fazia na casa. Fialho saiu logo para o Porto a prover-se dos aprestos para o noivado, e então comprou os 6.500$000 réis de brilhantes, como consta do primeiro capítulo desta crônica social, e cortes de seda, e peças de veludo, e quanto lhe depararam as casas francesas, e modistas escrituradas que levou consigo para a quinta.

No meio desta azáfama, Ângela estava como insensível, e, na cama, onde uma febre lenta a prostrara.

Vitorina, exagerando o susto, já era de parecer que se desligasse a ama da sua palavra, e não casasse.

— Que me importa a mim?! — disse Ângela. — Dum ou doutro modo hei de acabar breve. O coração já não o sinto. Não tenho saudades de nada. Morro, sem faltar à minha palavra. Se Deus me não der melhor vida depois, é que não há céu.

Ângela enganou-se. Ao fim de quinze dias estava cansada de pensar na sua desgraça, e indiferente, senão identificada. Estas refundições são vulgaríssimas. É minha opinião que as lágrimas deslaçam e rompem os liames de

certas crenças e esperanças; porém, como à vida se fazem mister outros, opera-se uma renovação de vínculos que nos atam a outras preocupações. Nas índoles feminis são por via de regra tais renovações mais temporãs, em razão de operarem nelas as lágrimas em maior cópia. E se me não engano, há aí coração de senhora que pode frutificar colheitas variadas cada ano, duas, três e mais, consoante a regra de lágrimas. E uma aleivosia que o mundo ignaro lhes assaca de versatilidade não é mais que ilusões que se afogam e renovos que desabrocham assim que as lágrimas se estancam.

Postas estas coisas como explicação de outras relativas à filha do general Noronha, cumpre saber que no dia 4 de novembro de 1841, pelas 9 horas da manhã, contraíram o sacramento do matrimônio D. Ângela de Noronha Barbosa com Hermenegildo Fialho.

Entre as testemunhas deste consórcio, invejado das damas e cavalheiros do concelho, estava aquele João Pedro mordomo do general.

É que ele tinha chegado na véspera a entregar a D. Ângela o cofre das jóias de D. Maria d’Antas, e a mostrar uma carta, escrita desde Paris, em que o general dizia: "Se souberes onde para a senhora que pernoitou nessa casa, entrega-lhe um cacifro de objetos de oiro e pedras que está no meu quarto, e cobra recibo".

João Pedro, informado da riqueza do noivo, antes de o ver, felicitou a filha de seu patrão; mas, depois que o viu, coçou as farripas da calva, e disse à puridade, a Vitorina:

— Oh! Com dez milheiros de diabos!...

— Então que é? — perguntou a criada.

— É que, se a fidalga não for santa, aquele homem há de ser...

E calou-se, porque adivinhou que eu tinha de contar fidelíssimas estas passagens.