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Os Brilhantes do Brasileiro/XVIII

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Estava Ângela escrevendo a um dos três amigos de seu marido, rogando que a não considerassem esposa infiel, nem difamassem seu nome, querendo forçá-la a entrar num convento, à imitação das mulheres delinqüentes. Prometia ela defender-se, se se marido a quisesse escutar, a sós, bastando-lhe de sua inocência o testemunho de Deus, cuja providência, em tão apertado lance, lhe dava coragem para encarar de rosto qualquer desgraça, menos a de entrar no convento com a nódoa de adúltera.

A carta ia ser fechada, quando se anunciou Atanásio, com os seus amigos Pantaleão e Joaquim Antônio.

O marido da Ruiva declarou que o amigo Hermenegildo teimava em que sua mulher entrasse no convento que lhe fosse escolhido por eles, representantes de suas ordens; e que, no caso de a senhora se negar a obedecer a tão justo mandado, fizesse de conta que não tinha marido, nem casa, nem fortuna, porque todos os teres e haveres de seu homem estavam hipotecados, vendidos e alienados, como se provaria em juízo com documentos da maior validade.

Escutou-os Ângela, e disse serenamente:

— Mandam-me portanto sair?

— Sim, se a senhora não quiser ir para o convento.

— Não vou.

— Então, muito nos custa dizer-lhe que...

— Despeje a casa? — concluiu Ângela.

— Sim..., se a senhora... — repetiu Atanásio. — Bem sabe que a honra dum homem... Seu marido tem de dar contas à sociedade...

— E a Deus — ajuntou Ângela.

— Isso de Deus... — remoneou Joaquim José Antônio.

— Não há? — perguntou ela.

— Não sei se há, nem se não há. O que sei é que ele não se mete cá nestas coisas.

— Se a senhora está inocente — interveio Pantaleão — prove-o. Diga a quem deu 1.650$000 réis.

— A um pobre.

— Mas quem era o pobre? Saibamos isso... Era pobre honrado?

— Era.

— Como se chama?

— Ainda que lhes diga o nome dele, os senhores não conhecem os pobres honrados; conhecem somente os infames ricos.

— Tenha prudência na língua, minha senhora — rebateu Atanásio.

— Desçam as escadas, que quero sair, seus biltres! — exclamou a filha de D. Maria d’Antas. — Se os galegos da casa me obedecessem, haviam de fazê-los saltar pelas janelas; mas a casa já não é minha, e infame eu seja quando pedir um ceitil do que ela encerra. Aqui ficam as jóias de minha mãe, que valem quatro ou cinco contos de réis. O

seu amigo Hermenegildo que se pague do que me deu, e, se alguns vinténs sobejarem, que compre uma corda e que se enforque.

— Irra!... que mulher! — dizia Joaquim a Pantaleão, limpando o suor da testa em janeiro.

— Tem diabo no corpo! — regougou o outro.

Voltaram-lhe as costas com arremesso, e saíram vociferando palavras insultantes.

De pós eles saíram Ângela e Vitorina, deixando as portas abertas e a casa entregue aos criados, que choravam em altos clamores.

— Vais tão triste?! — perguntou Ângela à criada.

— E vossa excelência não, minha infeliz menina?

— Não! Pois não vês?! O que eu não deixei naquela casa foi o ouro da consciência...

— Sair sem nada!... Que leva vossa excelência ai nesse dispensável?...

— É o livro dos SONHOS do Francisco — respondeu ela sorrindo. — Não tenho mais nada que me recorde a minha alegre mocidade senão isto e tu! As coisas que mais amo vão comigo.

Vitorina chorou de agradecida, e participou involuntariamente da alegria da senhora.

Entraram na rua do Moinho de Vento e procuraram um número de casa. Subiram, e acharam-se na alegre e asseada saleta de Joana Costa, que se levantou a receber a fidalga com transporte e espanto.

— Venho pedir-lhe um canto da sua casinha! — disse Ângela risonhamente. — Dê-me o quarto de seu irmão para mim e para a minha Vitorina.

— Pois que é, minha senhora? Que é isto?! — exclamou Joana.

— É que fui expulsa; não tenho casa, nem "fortuna". Veja como se cai depressa, minha amiga! Apesar disso, quando a queda não é vergonhosa, a gente parece que sente as asas dos anjos a ampará-la.

Referiu Ângela o sucesso dos brilhantes, da intimação para responder à autoridade, da mensagem dos amigos do marido, etc. se Joana a interrompia com o choro, a serena hóspeda revelava desgosto, e queixava-se do mau uso que ela fazia das lágrimas.

Finda a relação, a filha do general foi tomar posse do quarto de Francisco, quedou largo tempo a examinar as mais insignificantes coisas, buliu nos livros, nas gavetas, nos papéis escritos, sorrindo a tudo.

— O meu livrinho das Esperanças? — perguntou ela.

— Levou-o. Costuma estar neste sitio — respondeu Joana indigitando um lugar vazio entre dois livros.

— Pois irá para o lugar dele o livro dos SONHOS.

E colocou o manuscrito, examinando os dois livros laterais. Eram também manuscritos, e ambos com o mesmo título: ÂNGELA.

Joana disse, sorrindo:

— Eu nunca lhe contei que ele tinha esses livros...

— Não.

— De propósito para que vossa excelência os não quisesse ver... Escreveu-os nos primeiros quatro anos da nossa pobreza. Passava as noites nisto, depois de gastar os dias no escritório. Lia-me às vezes alguma página, e abraçava-me se eu chorava. Mas não se entristeça, minha senhora! Já mudou de semblante!

— É felicidade! Não me lamente, minha amiga!... Como eu quero a estes dois livros!... E era capaz de me deixar morrer sem que eu os visse?

— Decerto! Deus me livrasse de eu ir inquietar vossa excelência!... Já depois que meu irmão saiu, estive aqui um dia muito doente, e pensava já em os rasgar, se piorasse; que não fosse alguém ler o que ele dizia de vossa excelência...

— Pensemos noutra coisa, minha amiga — tornou Ângela com os olhos rasos de gozosas lágrimas. — Temos em que trabalhar?

— Não precisamos; que meu irmão deixou-me metade dos trezentos mil réis que foi ganhar. Apenas gastei duas moedas deste dinheiro. Abra vossa excelência essa gaveta, que lá está o resto.

— Mas é necessário trabalhar, minha irmã. A ociosidade é o tédio, é a doença, é o desespero. Olhe que eu, quando me chamavam a brasileira do meio milhão, em cada dia, costurava cinco horas. E foi bom conservar os costumes adquiridos na pobreza do convento. a pobreza voltou; mas desta vez encontra-me prevenida, e de mais a mais disposta a desafiá-la para que me incomode.

— E como o prazer lhe salta nos olhos! — dizia Joana a contemplá-la, e a saborear o seu quinhão daquela comunicável alegria.

— Não, que a minha irmã não imagina quanto me sinto bem! Parece que renasci! Ó Vitorina, vai ver como está isso lá de cozinha. Tenho vontade de jantar. Vamos jantar logo, Joanhinha?... E se seu irmão nos aparecesse agora! Se ele me encontrasse de posse do seu quarto e dos seus livros, e a escrever as minhas novas Esperanças... Esperanças! — sorriu ela, acentuando a palavra. — Agora é que as esperanças de amanhã não hão de inquietar o bem

de hoje! Até agora o que eu esperava era isto... esta paz, esta doçura de viver, sem parentes, sem ninguém, senão com as pessoas que sacrifiquei, e me querem bem, apesar de tudo, não é verdade?

— Mas se seu marido a vem buscar, minha senhora!

— Buscar-me! Eu morri, ou ele morreu... não sei bem quem foi; mas o certo é que nos não veremos mais...

Àquela mesma hora, Hermenegildo jantava na cevadeira de Atanásio. Escarmentado pela ceia da véspera, não comeu empadão de ostras; mas fez-se em lagosta e salmão. Depois de jantar, reuniu os amigos, e completou as instruções a seguir sobre a segura arrecadação da sua "fortuna", alienação fraudulenta de quintas, casas e navios, tudo incontinente para antecipar-se à tentativa de divórcio com a separação do casal, a requerimento de sua mulher. Ao anoitecer, meteu-se em carruagem, e foi para S. Roque da Lameira, ou para a Cruz da Regateira: não liquidamos com certeza em qual das paragens pernoitou. O sabido é que uma das frescassas moças de Barrosas o seguiu para o Porto, no dia seguinte por noite, e tomou as rédeas do governo da casa do brasileiro, e achou bonitas as cortinas do leito nupcial de Ângela, quando pela manhã um raio de sol, através das rendas, aureolava a cabeça de Hermenegildo, contornada no braço trigueiro dela.

E, quinze dias depois, o brasileiro, chorado e lamentado dos amigos, embarcava em um dos seus navios, aproando às praias de Santa Cruz, onde, dizia ele, ia esconder a sua vergonha, associando à sua angústia a franduna rapagoa, Rosa Catraia, que se lhe encostava ao coração, enjoada com o balanço da galera!

A colônia de brasileiros portuenses longo tempo chorou a sorte dura de Fialho. Ali, na Praça-nova e no Jardim de S. Lázaro, se apinhavam os magotes daquele gentio a escoucear na honra de Ângela. Enquanto uns diziam que ela passara a abarregar-se com o incógnito amante, outros asseveravam ter exatas informações de que a tal fidalga da Cascos-de-rôlhas cedo poria em almoeda a sua beleza. E os homens honestos do Porto jungiam-se na maledicência com a vara de javardos que retoiçavam e foçavam na infâmia uns dos outros. E sobre aquela gente chovia, e chove Deus toda casta de prosperidades! E a providência ter-lhe-á dado quanto tem e pode no dia em que enviar sobre ela uma nova chuva... de albardas.