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Os Bruzundangas/Capítulo especial

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OS SAMOYEDAS
 

 
CAPITULO ESPECIAL
 

Vasios estais de Christo, vós que
vos justificais pela lei: da graça ten-
des caido


S. Paulo aos Galatas  

 

Queria evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. E’ um capitulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado.

Dissertar sobre uma literatura estrangeira suppõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiaes: idéas geraes sobre literatura e comprehensão facil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a lingua da Bruzundanga, isto é, a lingua falada pela gente instruida e a escripta por muitos escriptores que julguei excellentes; mas aquella em que escreviam os literatos importantes, solemnes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito differente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lidima, justificando isso por ter feição antiga de dous seculos ou tres.

Quanto mais incomprehensivel é ella, mais admirado é o escriptor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escripto.

Lembrei-me, porém, que as minhas noticias d’aquella distante republica não seriam completas, se não désse algumas informações sobre as suas letras; e resolvi vencer a hesitação immediatamente, como agora venço.

A Bruzundanga não podia deixar de tel-as, pois todo o povo, tribo, claro, todo o agrgegado humano, emfim, tem a sua literatura e o estudo dessas literaturas muito tem contribuido para nós nos conhecermos a nós mesmos, melhor nos comprehendermos e mais perfeitamente nos ligarmos em sociedade, em humanidade, afinal.

Seria uma falha minha nada dizer eu sobre as bellas letras da Bruzundanga que as tem como todos os paizes, a não ser o nosso que, conforme sentenciou a «Gazeta de Noticias», não merece tel-as, pois o literato não tem funcção social na nossa sociedade, provocando tal opinião o protesto de um sociologo inesperado. Devem estar lembrados deste episodio — creio eu. Continuemos, porém, na Bruzundanga.

Nella, ha a literatura oral e popular de canticos, hymnos, modinhas, fabulas, etc.; mas todo esse folk-lore não tem sido colligido e escripto, de modo que, delle, pouco lhes posso communicar.

Porém, um conto popular que me foi narrado com todo o sabôr da ingenuidade e dos modismos peculiares ao povo, posso reproduzir aqui, embora a reproducção não guarde mais aquelle encanto de phrase simples e miagens familiares das anonymas narrações das collectividades humanas.

Na versão dos populares da curiosa republica, o conto se intitula — O GENERAL E O DIABO — havendo uma variante sob a alcunha de — O PADRE E O DIABO. Como não tivesse de cór nem as palavras da versão mais geral, nem as da variante, aproveitei o thema, alguma cousa do corpo da «historia» e narro-a aqui, certamente muito desfigurada, sob a chrisma de:

 
S. Ex.ª
 

O Ministro saiu do banquete, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquelle momento. Anceiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as attitudes e os pasmos olhares dos circumstantes. Por isso, entrára no «coupé» apressado, um tanto avoado, soffrego, sem mesmo reparar se de facto era o seu.

Vinha absorvido e tangido por uma chusma de sentimentos attinentes a si mesmo que quasi lhe falavam a um tempo na consciencia: orgulho, força, valor, satisfação propria, etc, etc.

Não havia um negativo, não havia n’elle uma duvida: todo elle estava embriagado de certeza do seu valôr intrinseco, das suas qualidades extraordinarias e excepcionaes de conductor de povos. A respeitosa attitude de todos e a deferencia universal com que o cercavam, reaffirmadas tão eloquentemente n’aquelle banquete, eram nada mais, nada menos, que o signal certo da convicção dos povos de ser elle o resumo do paiz, vendo nelle o solucionador das suas difficuldades presentes e o agente efficaz do seu futuro e constante progresso.

Na sua acção, repousavam as pequenas esperanças dos humildes e as desmarcadas ambições dos ricos. Era tal o seu inebriamento que chegou a esquecer as coisas feias do seu officio... Elle se julgava e só o que lhe parecia grande entrava nesse julgamento. As obscuras determinações das cousas, acertadamente, haviam-no erguido até alli, e mais alto leval-o-iam, visto que, só elle, elle só e unicamente, seria capaz de fazer o paiz chegar ao destino que os antecedentes delle impunham... E o ministro isolado sorriu, quando essa phrase lhe passou pelos olhos, inteirinha, em letras de imprensa, como se elle a estivesse lendo em um livro, em uma revista, ou mesmo em um jornal. Occorreram-lhe algumas palavras do seu discurso de ha pouco...

«Na vida das sociedades, como na dos indivíduos...» Não lhe ficara inteira aquella tirada philosophica, mas a admiração que advinhou nos olhares dos circumstantes, fiava bem o assombro que ella causou. E o successo d'aquelle trecho que provocara innumeros apoiados: « Aristoteles, Bancon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Solon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os philosophos, todos os juristas, affirmam que as leis devem succeder aos costumes.» O olhar, muito brilhante, immovel de espanto, do deputado Kalhuí, opposicionista encapotado, era o mais seguro penhor de que dissera uma profunda verdade, embora elle não tivesse certeza, pois não lhe lerão as obras, de que aquella gente toda houvesse dito tal cousa que a sua boca proferira. E quando terminou... «Senhores, o nosso tempo é de grandes reformas ; estejamos com elle, reformemos, mas conservando...» A cerimonia mal conteve nos circumstantes o enthusiasmo com que foi recebido esse final. O auditório delirou.

As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.

O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se.

O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora, o mesmo minuto da sua saída da festa.

— Cocheiro, onde vamos?

Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.

Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente.

Gritou ao cocheiro:

— Onde vamos? Miserável, onde me levas?

Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O Leão da Birmânia, o Dragão da China, o Lingão da Índia estavam ali, entre todas as outras, intactas.

— Cocheiro, onde me levas?

Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel!

— Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás!

O carro voava e o ministro continuava a vociferar:

— Miserável! Traidor! Pára! Pára!

Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.

O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças...

Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles "libré" e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde, saíra triunfalmente, não havia minutos.

Nas proximidades um coupé estacionava.

Quis verificar bem as cousas circundantes; mas não houve tempo.

Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes...

Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjectamente, como se até ali não tivesse feito outra cousa, indagou:

— Vossa Excelência quer o carro?

Como esta há, na Bruzundanga, muitas outras "histórias" que correm de boca em boca e se transmitem de pai a filho.

Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de encomenda, não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasias de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil-réis o volume.

Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia.

São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por "expoentes" e não há moça rica que não queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar.

O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por "Escola Samoieda".

Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. Digo — "caracteriza", porque, como os senhores verão no correr destas notas, não há na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao âmago das cousas que fingem amar, de decifrá-las pelo amor sincero em que as têm, de querê-las totalmente, de absorvê-las. Só querem a aparência das cousas. Quando (em geral) vão estudar medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exército ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto assim que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do uniforme. Assim também são os literatos que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão, sem querer arcar com as dores, com o esforço excepcional, que elas exigem em troca. A glória das letras só as tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas, como no amor, só é amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com fé cega. Os samoiedas, como vamos ver, contentam-se com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade, umas vezes por incapacidade de inteligência, em outras por instrução insuficiente ou viciada, quase sempre, porém, por falta de verdadeiro talento poético, de sinceridade, e necessidade, portanto, de disfarçar os defeitos com pelotiquices e passes de mágica intelectuais.

Tendo convivido com alguns poetas samoiedas, pude estudar um tanto demoradamente os princípios teóricos dessa escola e julgo estar habilitado a lhes dar um resumo de suas regras poéticas e da sua estética.

Esses poetas da Bruzundanga, para dar uma origem altissonante e misteriosa à sua escola, sustentam que ela nasceu do poema de um príncipe samoieda, que viveu nas margens do Ártico, nas proximidades do Óbi ou do Lena, na Sibéria, um original que se alimentava da carne de mamutes conservados há centenas de séculos nas geleiras daquelas regiões.

Essa espécie de alimentação do longínquo príncipe poeta dava aos olhos de todos eles, singular prestígio aos seus versos e aos do fundador, embora pouco eles os conhecessem.

O príncipe chamava-se Tuque-Tuque Fit-Fit e o seu poema Parikáithont Vakochan, o que quer dizer no nosso calão — O silêncio das renas no campo de gelo.

Tuque-Tuque Fit-Fit era descrito pelos "samoiedas" da Bruzundanga como sendo uma beleza sem par e triunfal entre as deidades daquelas regiões árticas.

Tudo isto fantástico, mas graças à credulidade dos sábios do país, só um ou outro desalmado tinha a coragem de contestar tais lendas.

Como todos nós sabemos, a raça samoieda é de estatura baixa, pouco menos que a dos lapões, cabelos longos, duros e negros de jade, vivendo da carne de renas, de urso branco, quando a felicidade lhe fornece um. Tais homens andam em trenós e fazem kayacsde peles de renas ou focas que eles empregam para capturar estas últimas.

As suas concepções religiosas são reduzidas, e os seus ídolos, manipansos hediondos, tocos de pau besuntados de pinturas incoerentes. Vestem-se, os samoiedas, com peles de renas e outros animais hiperbóreos.

Entretanto, na opinião dos poetas daquela república, que dizem seguir as teorias da literatura do oceano Ártico, não são os samoiedas assim, como o contam os mais autorizados viajantes; mas sim os mais belos espécimens da raça humana, possuindo uma civilização digna da Grécia antiga.

Esta Grécia serve para tudo, especialmente na Bruzundanga...

Em geral, os vates bruzundanguenses adeptos da tal escola samoieda, como os senhores vêem, não primam pela ilustração; e, quando se conteste no tocante à beleza de tais esquimós, respondem categoricamente que a devem ter extraordinária, pois quanto mais fria é a região, mais belos são os seus tipos, mais altos, mais louros, e os samoiedas vivem em zona frigidíssima.

Não há como discutir com eles, porque todos se guiam por idéias feitas, receitas de julgamentos e nunca se aventuram a examinar por si qualquer questão, preferindo resolvê-las por generalizações quase sempre recebidas de segunda ou terceira mão, diluídas e desfiguradas pelas sucessivas passagens de uma cabeça para outra cabeça.

Atribuem, sem base alguma, a esse tal Tuque-Tuque a fundação da escola, apesar de nunca lhe terem lido as poesias nem a sua arte poética.

Sempre procurei saber por que se enfeitavam com esse exótico avoengo; as razões psicológicas, eu as encontrei na vaidade deles, no seu desejo de disfarçar a sua inópia poética com um padrinho esquisito e misterioso; mas o núcleo da lenda, o grãozinho de areia em torno do qual se concretizava o mito ártico da escola, só ultimamente pude encontrar.

Consegui descobrir entre os livros de um inglês meu amigo, Senhor Parsons, um volume do Senhor H. T. Switbilter, de Bristol (Inglaterra) — Literature of the Stingy Peoples; e encontrei nele alguns versos samoiedas. São anônimos, mas o estudioso de Bristol declara que os recolheu da boca de um certo Tuck-Tuck, samoieda de nação, que ele conheceu em 1867, quando foi encarregado pela Sociedade Paleontológica de Bristol de descobrir na embocadura dos grandes rios da Sibéria monstros antediluvianos conservados no gelo, como escaparam de encontrar, quase intactos, o naturalista Pallas, nos fins do século XVIII, e o viajante Adams, em 1806. A história do tal príncipe Tuque-Tuque alimentar-se de carne de elefantes fósse, parece ter origem no fato bem sabido de terem os cães devorado as carnes do mamute, cujo esqueleto Adams trouxe para o museu de São Petersburgo; e o príncipe já sabemos quem é.

O Senhor Switbilter pouco acrescenta a algumas poesias que publica; e as que estão no volume, traduzidas, são por demais monstruosas, sempre com um mesmo pensamento denunciando uma concepção estreita da vida e do universo, muito explicável em bárbaros glaciais.

O viajante inglês que conhece o samoieda, entretanto, diz aqui e ali, que elas são enfáticas, sem quantidade de sentimento ou um acento musical agradável e individual, descaindo quase sempre para a melopéia ou o "tantã" ignaro, quando não alternam uma cousa e outra.

Mas não foi no livro do Senhor Switbilter que os augustos poetas da Bruzundanga foram encontrar as bases da sua escola. Eles não conhecem esse autor, pois nunca os vi citá-lo.

Eles, os "samoiedas" da Bruzundanga, encontraram o mestre nos escritos de um tal Chamat ou Chalat, um aventureiro francês que parece ter estado no país daquela gente ártica, aprendido um pouco da língua dela e se servido do livro do viajante inglês para defender uma poética que lhe viera à cabeça.

Esse Chamat ou Chalat, Flaubert, quando esteve no Egito, encontrou-o por lá, como médico do exército quedival; e ele se ocupava nos ócios de sua provável mendicânça em rimar uma tragédia clássica, Abdelcáder, em cinco atos, onde havia um célebre verso de que o grande romancista nunca se esqueceu. É, o seguinte :


"C'est de la' par Allah! qu' Abd-Allah s'en alla".

O esculápio do Cairo insistia muito nele e esforçava-se por demonstrar que, com semelhante "harmonia imitativa" como os antigos chamavam, obtinha traduzir, em verso, o sonido do galope de cavalo.

Havia mais belezas de igual quilate e outras originalidades. Não obstante, quando apareceu, foi um louco sucesso de riso muito parecido com o do Tremor de Terra de Lisboa, aquela célebre tragédia do cabeleireiro André, a quem Voltaire invejou e escreveu, entretanto, ao receber-lhe a obra, que continuasse a fazer sempre cabeleiras —"toujours des perruques", Senhor André.

Chalat afrontou a crítica e não podendo defender-se com os clássicos franceses, apelou para a poesia em língua samoieda, que conhecia um pouco por ter sido marinheiro de um baleeiro que naufragou nas proximidades da terra desses lapões, entre os quais passou alguns meses. Não desconhecia o livro do Senhor Switbilter, como tive ocasião de verificar nos fragmentos de um seu tratado poético, citado na tradução da obra de um seu discípulo basco por onde os "samoiedas" da Bruzundanga estudaram a escola que verdadeiramente Chalat ou Chamat fundara.

O seu desafio à crítica, escudado na poética e estética das margens do glacial Ártico, trouxe-lhe logo uma certa notoriedade e discípulos.

Estes vieram muito naturalmente, pois, dada a indigência mental daquela espécie de esquimós, a sua pobreza de impressões e sensações, a sua incapacidade para as idéias gerais, os hinos, os cânticos, os rondós dos mesmos, citados pelo medicastro, facilitavam muito o ofício de fazer verso, desde que se tivesse paciência; e a facilidade seduziu muitos dos seus patrícios e determinou a admiração dos bardos bruzundanguenses.

Os discípulos de Chalat ou Chamat tiraram da sua obra regras infalíveis para fazer poetas e poesias e um certo até aplicou a teoria dos erros à sua arte poética.

A instrução do grosso dos menestréis bruzundanguenses não permitia esse apelo à matemática; e contentaram-se com umas regras simples que tinham na ponta da língua, como as beatas as rezas que não lhes passam pelo coração, e outros desenvolvimentos teóricos.

Era pois essa poética e essa estética que dominavam entre os literatos da Bruzundanga; era assim como o seu dogma de arte donde se originavam as suas fórmulas litúrgicas, o seu ritual, os seus esconjuros, enfim, o seu culto à tal harmonia imitava, que tanto prezava Chalat.

Além desta deusa, havia outras divindades: o ritmo, o estilo, a nobreza das palavras, a aristocracia dos assuntos e dos personagens, quando faziam romances, conto ou drama e a medição dos versos que exigiam fosse feita como se se tratasse da base de uma triangulação geodésica. Ninguém, no entanto, podia sacar-lhes da cabeça uma concepção geral e larga de arte ou obter o motivo deles conceberem separados da obra d'arte esses acessórios, transformando-os em puros manipansos, fetiches, isolando-os, fazendo-os perder a sua função natural que supõe sempre a obra literária com o fim. É ela, a sua concepção, a idéia anterior que a domina e o seu destino necessário, que unicamente regulam o emprego deles, graduam o seu uso, a sua necessidade, e como que ela mesma os dita.

Todos os samoiedas limitavam-se quando se tratava dos tais assuntos, a falar muito de um modo confuso, esotericamente, em forma e fundo, com trejeitos de feiticeiros tribais.

Não nego que houvesse entre eles alguns de valor, mas os preconceitos da escola os matava.

A maioria ia para ela, porque era cômodo no fundo, pois não pedia se comunicasse qualquer emoção, qualquer pensamento, qualquer importante revelação de nossa alma que interessasse outras almas; que se dissesse usando dos processos artísticos, novos ou velhos, de um pouco do universal que há em nós, alguma cousa do mistério do universo que o nosso espírito tivesse percebido e determinasse transmiti-la; enfim um julgamento, um conceito que pudesse influir no uso da vida, na nossa conduta e no problema do nosso destino, empregando os fatos simples, elementares, as imagens e os sons que por si sós não exprimiriam a idéia que se procura, mas que se acha com eles e se vai além por meio deles.

Isto de Hegel, de Taine, de Brunetière, não era com os samoiedas; a questão deles era encontrar uma espécie de tabuada que lhes fizesse multiplicar a versalhada. Como as tais regras poéticas do suposto príncipe eram bem acessíveis à sua paciência de correcionais, adotaramnas como artigos de fé, exageraram-nas até ao absurdo.

Convinham elas por ir ao encontro da sua falta de uma larga inteligência do mundo e do homem e facilitar-lhes uma crítica terra-a-terra de seminaristas mnemônicos.

Para mais perfeito ensinamento dos leitores vou-lhes repetir um trecho de conversa que ouvi entre três dos tais poetas da Bruzundanga, adeptos extremados da Escola Samoieda.

Quando cheguei, eles já estavam sentados em torno da mesa do café. Acabava eu de assistir uma aula de geologia na Faculdade de Ciências do país; o meu espírito vinha cheio de silhuetas de monstros de outras épocas geológicas. Eram ictiossauros, megatérios, mamutes; era do sinistro pterodáctilo que eu me lembrava; e não sei por quê, quando deparei os três poetas samoiedas, me deu vontade de entrar no botequim e tomar parte na conversa deles.

A Bruzundanga, como sabem, fica nas zonas tropical e subtropical, mas a estética da escola pedia que eles se vestissem com peles de urso, de renas, de martas e raposas árticas.

É um vestuário barato para os samoiedas autênticos, mas caríssimo para os seus parentes literários dos trópicos.

Estes, porém, crentes na eficácia da vestimenta para a criação artística, morrem de fome, mas vestem-se à moda da Sibéria.

Estavam assim vestidos, naquela tarde, quente, ali naquele café da capital da Bruzundanga, três dos seus novos e soberbos vates; estavam ali: Kotelniji, Wolpuk e Worspikt, o primeiro que tinha aplicado o vernier para "medir" versos.

Abanquei-me e pude perceber que acabavam de ouvir uma poesia do poeta Worspikt. Tratava de lua, de iceberg, — descobri eu por uma e outra consideração que fizeram.

Nenhum deles tinha visto um iceberg, mas gabavam os ouvintes a emoção com que o outro traduzira em verso o espetáculo desse fenômeno das circunvizinhanças dos pólos.

Num dado momento Kotelniji disse para Worspikt:

— Gostei muito desse teu verso: — "há luna loura linda leve, luna bela!"

O autor cumprimentado retrucou:

— Não fiz mais do que imitar Tuque-Tuque, quando encontrou aquela soberba harmonia imitativa, para dar idéia do luar—"Loga Kule Kulela logalam", no seu poema "Kulelau".

Wolpuk, porém, objetou:

— Julgo a tua excelente, mas teria escolhido a vogal forte "u", para basear a minha sugestão imitativa do luar.

— Como? perguntou Worspikt.

— Eu teria dito: "Ui! lua uma pula, tu moo! sulla nuit!"

— Há muitas línguas nela, objetou Kotelniji.

— Quantas mais, melhor, para dar um caráter universal à poesia que deve sempre tê-lo, como ensina o mestre, defendeu-se Wolpuk.

— Eu, porém, aduziu Kotelniji, conquanto permita nos outros certas licenças poéticas, tenho por princípio obedecer às mais duras e rígidas regras, não me afastar delas, encarcerar bem o meu pensamento. No meu caso, eu empregaria a vogal "a" para a harmonia em vista.

— Mas Tuque-Tuque... fez Worspikt.

— Ele empregou o "e" no tal verso que você citou, devido à pronunciação que essa letra lá tem. É um "e" molhado que evoca bem o luar deles, mas...

— E com "a", como é? indagou Wolpuk.

— O "a" é o espanto; seria ai o espanto do homem dos trópicos, diante da estranheza do fenômeno ártico que ele não conhece e o assombra.

— Mas Kotelniji, eu visava o luar.

— Que tem isso? Na harmonia em "a" também entra esse fenômeno que é o provocador do teu espanto, causado pela sua singularidade local, e pela hirta presença do iceberg, branco, fantástico, que a lua ilumina.

— Bem, perguntou o autor da poesia; como você faria, Kotelniji?

— Eu diria: "A lua acaba de calar a caraça parva".

— Mas não teria nada que ver com o tema da poesia, objetou Wolpuk;

— Como? O iceberg toma as formas mais variadas... Demais, há sempre onde encaixar, seja qual for a poesia, uma feliz "imitativa".

— Você tem razão, aplaudiu Wolpuk.

Worspikt concordou também e prometeu aproveitar a maravilhosa trouvaille do amigo de letras.

Kotelniji era considerado como um grande poeta "samoieda" e tinha mesmo estabelecido com assentimento de todos eles, as leis científicas da escola perfeita, "a samoieda", que ele definia como tendo por escopo não exprimir cousa alguma com relação ao assunto visado, ou dizer sobre ele, pomposamente, as mais vulgares banalidades.

Dentre as leis que estatuía, eu me lembro de algumas. Ei-las:

1.ª — Sendo a poesia o meio de transportar o nosso espírito do real para o ideal, deve ela ter como principal função provocar o sono, estado sempre profícuo ao sonho.

2.ª —A monotonia deve ser sempre procurada nas obras poéticas; no mundo, tudo é monótono (Tuque-Tuque).

3.ª —A beleza de um trabalho poético não deve ressaltar desse próprio trabalho, independente de qualquer explicação; ela deve ser encontrada com as explicações ou comentários fornecidos pelo autor ou por seus íntimos.

4.ª —A composição de um poema deve sempre ser regulada pela harmonia imitativa em geral e seus derivados.

E muitas outras de que me esqueci, mas julgo que só estas ilustram perfeitamente o absurdo da qualificação de leis científicas da arte. Alhos com bugalhos!

Denuncia tal denominação, de modo cabal, a sua incapacidade paragrupar idéias, noções e imagens. Que pensaria ele de ciência? Qual era a sua concepção de arte? Será possível decifrar essa história de "leis científicas da arte"? Qual!

Era assim o grande poeta samoieda.

Além de uma gramaticazinha que nós aqui chamamos de tico-tico e da arte poetica de Chalat augmentada e explicada com uma logica de gafanhotos, não possuia elle um acervo de noções geraes, de idéas, de observações, de emoções proprias e directas do mundo, de julgamentos sobre as cousas, tudo isso que forma o fundo do artista e que, sob a acção de uma concepção geral, lhe permite fazer grupamentos ideaes, originalmente, crear emfim.

A importancia do vate lhe vinha de redigir «A Kananga», órgão das casas de perfumarias, leques, luvas e receitas para doces, onde alguns rapazes, sob o seu olhar cioso, escreviam, para ganhar os cigarros, algumas cousas ligeiras.

O bardo samoyeda tomava, entretanto, a cousa a serio, como se estivesse escrevendo para a Revue de deux mondes uma formula de mãe-benta; e evitava o mais possivel que alguem tomasse pé na pueril «A Kananga». Era essa a sua maxima preoccupação de artista.

De todos os postiços literarios, usava, e de todas as mesquinhezas da profissão, abusava.

Era este de facto um samoyeda typico no intellectual, no moral, no physico. Tinha fama.

Poderia mais esclarecer semelhante escola, os seus processos, as suas regras, as suas superstições; mas não convém fazer semelhante cousa, porque bem podia acontecer que alguns dos meus compatriotas a quizessem seguir.

Já temos muitas bobagens e são bastantes.

Fico nisto.