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Os Dois Amores/V

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A velha e o mancebo encontraram-se à porta do templo, e sem se dizerem palavra, dirigiram-se para o "Purgatório-trigueiro".

Irias voltava comovida; Cândido absorto e preocupado caminhava a esmo.

Havia mês e meio que na alma de Cândido se desabotoara sobre uma bela flor, um pensamento novo e brilhante, que desde então sendo o seu eterno companheiro das vigílias do dia, e dos sonhos da noite, nesse momento em que tornava para o "Purgatório-trigueiro", o ocupava exclusivamente.

Esse pensamento se debuxava na alma do mancebo sob a forma de uma mulher formosa.

Até bem pouco, Cândido, que sentia o coração cheio de amor, que pedia incessantemente ao céu sua mãe para saciar nessa mulher, que lhe dera a vida, toda sua ambição de amar e de ser amado, não tinha ainda adivinhado que além do amor filial um outro afeto há, ardente e poderoso, que enche a vida do homem, que lhe desvaira a cabeça e pode fazer dele um herói ou um demônio.

Cândido era uma criatura excepcional, um desses mancebos que tem podido viajar pelo mundo vinte anos sem sentir surgir-lhe em seu caminho a figura de uma mulher formosa que lhe fizesse pagar o tributo gracioso, que enfim o coração do homem paga sempre na vida.

Mas, ao romper de uma aurora, o mancebo lançou por aca­so os olhos através da fresta de uma janela, e viu uma moça que, ao muito, poderia ser sua irmã; e para logo ele compreendeu, que, além de uma mãe, há no mundo uma outra mulher, a quem se pode amar muito.

E desde esse dia, em todos os outros, e à mesma hora, Cândido ia esperar que a "Bela Órfã" descesse ao seu jardim, e em êxtase a adorava, ou descuidadosa passeando por entre as flores, ou negligente repousando no banco de relva do cara­manchão, envolvida na nuvem de suas madeixas.

Amava ele aquela mulher?... Cândido juraria que não. Em seu entender Celina não era uma mulher para se amar; era sim uma bela visão para se admirar extasiado.

No entanto, ele que pensava não amá-la, despertava, ao amanhecer, para contemplá-la; de dia por ela suspirava; dor­mia e a via em sonhos.

A mãe de Cândido tinha já uma rival no coração de seu filho.

Acompanhando Irias ao templo de S. Francisco de Paula, Cândido pagava também o seu tributo de gratidão aos res­tos do homem beneficente; e além disso, rezava pelo pai de Celina.

Mas, quando a órfã soltou seu grito de dor, e caiu de joe­lhos junto do túmulo de seu pai, Cândido, preciso é dizer, esqueceu o lugar onde estava, a multidão que o cercava, e o fim para que ali viera; e de novo ajoelhando-se ele o fez, instintivamente, não para deprecar por um finado, porém só em adoração àquela mulher formosa.

Mal chegou o instante da reflexão, ergueu-se e fugindo do jazigo e encontrando sua mãe adotiva à porta do templo, travou-lhe do braço e levou-a apressadamente pelas ruas.

O coração e a cabeça daquele mancebo estavam em guerra. A pesar dele, a despeito de seus esforços para enganar-se a si próprio, ele amava. E seu coração lhe pedia com ardor a posse dessa mulher encantadora... a primeira que tinha amado.

E sua cabeça lhe mostrava a sociedade despótica e tirânica empurrando-o para longe de Celina, erguendo entre ela e ele um muro de bronze, em cujo cimo estava escrito — impossível — impossível; porque o século pertence ao ouro, e o ho­mem pobre deve abafar suas afeições...

Mas o coração que ama, não crê nessa palavra — impossí­vel —; o coração não sabe que no mundo há ouro; não ra­ciocina para depois amar: o coração ama, porque ama.

E todavia se Cândido fosse cair aos pés da "Bela Órfã", se lhe pedisse seu amor e sua mão, a sociedade teria de per­guntar-lhe:

— Quem és tu?...

— Um pobre rico de honra.

E a sociedade havia de rir-se, e de responder-lhe: — não basta.

E viria depois dele um outro de quem se pudesse dizer — Um rico pobre de mérito.

E a esse responderia a sociedade: — é de sobra.

Atormentado por essas reflexões, que até certo ponto exprimiam nuamente a verdade, o caráter da época atual, Cândido caminhava a passos largos sem ver, sem ouvir, sem atentar coisa alguma.

Irias acompanhava a custo, e como que espantada, ao ardente moço. Tendo-lhe, como foi dito, caído a mantilha ao pé do túmulo de Paulo Ângelo, quando de novo nela se envolveu, colocou-a mal, e uma porção de seus longos cabelos brancos ficou flutuando sobre ela. E Cândido, levando-a estouvadamente, e caminhando sem reflexão, ora com Irias se esbarrava contra os que vinham, ora deixava que a pobre velha se salpicasse de lama.

Indiferente a tudo isso, surdo à voz de Irias, todo entregue a seu pensamento único, foi somente ao aproximar-se de sua pobre casa que Cândido se sentiu despertar por um grito de escárnio.

— Bruxa!... bruxa!... bradavam de todos os lados.

Entretanto também Celina se retirara da igreja de S. Francisco de Paula em companhia de seu avô e sua tia. A carruagem, em que vinha o velho e as duas senhoras, parou no alpendre do "Céu cor-de-rosa", e quando os três acabavam de apear-se, foram atraídos pelos gritos, que de todas as partes soavam.

Cândido e Irias viam-se cercados por uma chusma de garotos, que tomavam a velha para alvo de suas zombarias.

Como os cães que, em nossa terra, investem de preferência contra os negros, porque sentem o desprezo que se vota a essa classe desgraçada, a escória da sociedade, imitando os grandes, escarnecia da pobreza daquela mulher.

Jacó e Helena riam-se daquela cena de escândalo, como se ela fora uma cena de prazer público; e ambos eles excitavam, em voz baixa, os garotos que passavam perto de suas jane­las, a continuar em seus insultos e redobrar os gritos que soltavam.

— Bruxa!... fora a bruxa!... bradavam uns.

— Lá vai a velha bruxa!... clamavam outros.

Alguns já tinham ousado chegar-se a suas vítimas, e a mantilha da velha estava feita pedaços.

Irias agarrava com suas duas mãos emagrecidas e nervosas o braço do mancebo que, tremendo de raiva e de vergonha, esquecia-se do que era, e queria lançar-se contra a canalha; e ao mesmo tempo que a velha, que o sustinha à força, ape­nas demonstrava o seu furor em um sorrir de desprezo, que deixava ver duas ordens de dentes iguais, alvos e brilhantes, e nas vistas de fogo de seus olhos verdes que simulavam do gato observado em noite escura.

— Minha tia! exclamou Celina, aquela é a velha Irias, e o moço, que a acompanha, o mesmo que orou junto do tú­mulo de meus pais.

— Sim... creio que sim, respondeu-lhe Mariana.

— Pois então nós não podemos consentir que sejam assim maltratados.

— Mas que faremos?

— Eu vou acompanhá-los... à casa da velha Irias... é tão perto...

— Louca!... exclamou o velho.

Os gritos redobravam. As duas vítimas não podiam dar um passo. Irias empregava todas as suas forças para suster o mancebo.

— Eu corro a socorrê-los, meu avô, disse outra vez a moça com interesse.

— Não; não! Manda antes o criado.

— Eles não respeitarão a um boleeiro.

— E crês que terão respeito a uma menina?...

— Respeito não; mas talvez que tenham piedade.

Nesse momento uma pedra veio cair aos pés de Irias. Celina escapou-se do braço de sua tia, correu e colocou-se ao lado da velha.

O escárnio cessou como por encanto.

Pôde-se mesmo notar que aquela gente pervertida, sem moral nem educação, que ainda há pouco gritara furiosa, parecia como que arrependida de o haver feito. Se pudesse, lançaria agora flores sobre a velha que acabava de ape­drejar.

Jacó e Helena foram os únicos que murmuraram entre si daquele proceder da moça.

Celina acompanhou Irias e Cândido até a porta do "Purgatório-trigueiro".

— Minha mãe, disse a moça beijando a mão de Irias, eu lhe agradeço as orações que rezou junto do túmulo de meus pais.

E depois voltando-se para Cândido, continuou:

— Obrigada, senhor.

Cândido, pálido como um finado, estava em pé porque se agarrara à velha rótula.

Celina voltou-se para se retirar; e então Irias pôs suas duas mãos sobre a linda cabeça da moça, e disse:

— Proteja Deus a filha dos pais dos pobres.

Quando Celina desapareceu no alpendre do "Céu cor-de-rosa", Jacó foi à janela onde estava Helena e apontando para a casa da moça, e depois para o "Purgatório-trigueiro", disse:

— Helena, ali há coisa que é preciso descobrir.